segunda-feira, 8 de abril de 2024

A professora e o fazendeiro

 

A história é a da professora divorciada, 47 anos, sem filhos, que encontra o fazendeiro viúvo, 70, duas filhas casadas, e se apaixona perdidamente, refazendo fantasias antigas, que achava perdidas para sempre. O homem lhe oferece uma vida de princesa, na fazenda, longe da cidade onde ela sempre viveu, longe da escola que sempre foi o eixo da sua vida, e ela hesita. “Quero te colocar no centro da minha vida”, ele afirma, “mas aqui, aqui no meu mundo”, ele enfatiza, apontando o campo ao redor de sua casa avarandada.

Ela diz para as colegas de escola que um dia vai largar tudo, mas tem medo. Ele é carinhoso, atencioso, não quer que ela se desgaste indo e vindo da cidade para a fazenda, da fazenda para a cidade, quase 120 quilômetros, que ela percorre de 15 em 15 dias, pois é difícil ele largar o controle das terras, a supervisão dos empregados. “É o olho do dono que engorda o gado”, ele diz e ela repete. As colegas babam de inveja. “Na nossa idade, chegando aos 50, isso não acontece mais, aproveita”, diz a amiga mais próxima, com a xícara de café fumegando entre as mãos. “Nenhum homem mais nos olha”, comenta outra. “Não seja boba, ele tem dinheiro, larga tudo”, insiste uma terceira, que recém chegou na sala dos professores.

O ex-marido, 50 anos, igualmente professor, escuta a mulher e diz que ela tem sorte. “Sorte?”, a ex-esposa pergunta. “Ora, uma paixão com um homem próspero é sempre uma confusão a menos”, ele explica, “comigo isso não acontece, é só bucha.” “Mas ele é tão tradicional, tão arraigado a nesse mundo da Campanha que nós lutamos tanto para nos desvencilhar”, ela argumenta. “O machismo”, ela acrescenta, “está ali, vivo, sem um esforço consistente de ser superado, e eu me assusto.” O ex-marido ri, se debruça sobre a mesa, pega um guardanapo de papel e começa a dobrá-lo em diversas partes (eles estão numa cafeteria de shopping), e diz que isso faz parte do pacote. “Nem tudo é perfeito, ora bolas”, arremata. E inicia uma frase articulando a reforma agrária que não chegou ao campo com outros projetos progressistas no sentido da modernização da sociedade, das relações entre os sexos inclusive. A ex-mulher arregala os olhos e quase grita: “Agora não, não mete política no meio. Tô falando da minha vida, de um novo casamento, de romper com meu estilo de vida, e tu me vem com esse esquerdismo insuportável?!” “Tá bom, ele diz”, arrumando-se para ir embora, se levantando. “Não vamos começar... Eu só quero que tu te dê bem. Ele é um partidão e tu gostas dele, estás toda derretida inclusive, e é isso que importa”, enfatiza, dizendo depois que a conta é dele e seguindo na direção do caixa, enquanto ela pega o celular, pois entrou uma mensagem e ela acha que ele, é ele, quem sabe perguntando se já se decidiu.

A história é da professora, 47 anos, divorciada, que andava desesperançada e encontra o fazendeiro viúvo capaz de acender antigas fantasias: a de casar com um homem que a acolhesse e garantisse cuidar da sua vida. “Eu mereço isso”, ela diz, vendo o ex-marido andar pelo corredor do shopping, o marido que apenas lhe ofereceu uma vida amorosa juntos, compartilhando contas, aflições, sem nenhuma largueza financeira, sem possibilidades de grandes voos. A história é essa. Ou, ao menos é essa a história que ela conta para si mesma: “posso dar esse passo de bailarina, jogar para o alto tudo o que construí e cair nos braços de um velho rico? Sim, um velho rico”, ela repete para si mesma. “Posso?”

domingo, 7 de abril de 2024

Mundo gringo

Torre da igreja do Vale Vêneto, um dos núcleos
da Quarta Colônia de Imigração Italiana.

             Estou em casa e recebo a visita inesperada de um amigo. Abro uma garrafa de uma vinícola da Serra Gaúcha e, quando a coloco sobre a mesa, ele lê o rótulo em voz alta e diz:

– Conheço o proprietário dessa vinícola e te garanto: ele não bebe esse vinho que ele produz. Não esse vinho caro. Bebe os mais baratos. É um mão de vaca. Trabalha aos finais de semana e usa um carro tão velho que tu não vais acreditar.

– Só pensa em juntar dinheiro – eu digo. Conheço a cantilena do meu amigo em relação ao mundo gringo, do qual ele é proveniente, e coloco um pouco de vinho nas nossas taças para juntos iniciarmos o ritual.

– Que tal o aroma? – eu pergunto.

– Promete – ele responde. – Vamos esperar mais um pouco – ele fala. E logo comenta que namorou uma das filhas do dono. – Logo a que gosta mais de dinheiro – ele acrescenta, rindo.

O universo dos descendentes de italianos é um dos nossos temas, pois ambos descendemos dessa “tribo”. Os seus antepassados vieram no final do século XIX, tiveram acesso a pequenas propriedades rurais que pagaram com sacrifício e “a família nunca conseguiu tirar toda a terra que se encrustou debaixo das unhas”. Eu também tenho antepassados imigrantes, mas eles não viveram em colônia, fizeram outra trajetória e cedo se tornaram urbanos. Quando falamos a respeito das nossas histórias, ele acentua que essa é a diferença crucial que nos separa.

– Tua família não se enraizou na colônia. Mundo gringo verdadeiro tem que ter terra, bosta de vaca e pé encardido.

Seu pai viveu na colônia, trabalhou no cabo da enxada, mas aos vinte anos largou tudo e veio para Santa Maria trabalhar e estudar. Tornou-se professor universitário, mas nunca renegou as “raízes”.

– Tu conheces o Velho – ele diz. – Conhece línguas, viajou para o exterior, mas não adianta. Se prestares atenção, é igual ao meu avô, um colono de enxada e trator. A muito custo aprendeu a tomar vinho de qualidade – acrescenta.

Eu rio, pois muitas vezes ele já contou essa mesma história: o pai dele comprando vinho de melhor qualidade para beberem no almoço de domingo, os dois conversando na mesa, terminado a garrafa e o Velho dizendo:

– Se o padre me visse com esse vinho, desse preço, diria que era um luxo desmedido. Um luxo, um verdadeiro pecado. Eu me criei assim. O padre falava, meus pais repetiam e assim girava a roda do mundo.

– Era um mundo de muito trabalho – eu comento. – Meu pai era assim. Neto de imigrante, precisava trabalhar e ascender. Só isso importava.

– Mas teu pai sabia aproveitar.

– Sim, sabia. Aprendeu.

– E a filha do dono da vinícola, aquela que foi minha namorada por um tempo, ela também sabia. Gostava de coisa boa. Achava que merecia. Que tinha nascido para isso. Mas sabia que as coisas boas não caem do céu e é preciso labutar. Assim como se associar a quem trabalha também.

Meu amigo caminha pela sala do meu apartamento, pega um CD, coloca no aparelho, escuta os primeiros acordes e diz:

– Um dia ela chegou no meu apartamento, me viu lendo um romance, acho que era O primo Basílio, eu saboreando cada frase, e me perguntou: tu não tens que terminar a tese? Eu respondi: tenho. Tu não achas que estás perdendo teu tempo com esse livro?, ela disse. Mas é o Eça, eu respondi. Ela então fez uma cara de nojo, uma cara tão feia, que acho que foi ali que tanto ela quanto eu vimos não servíamos um para o outro.

– O primo Basílio foi o ponto de virada de vocês – eu digo. E, lembrando as características do personagem, acrescentei: – Será que ela te viu demasiado aventureiro e cínico, um reles conquistador?

Mas meu amigo não me responde. Muda de assunto. Pega a garrafa, lê novamente o rótulo e comenta:

– Doze meses em barris de carvalho francês e americano não é pouca coisa.

Depois diz que a moça encontrou um fazendeiro da Campanha e se acertou com o dito cujo.

– Já tirou duas crias com o sujeito. Às vezes se queixa que o homem é grosso, muito tradicional, machista, mas não esquece que ele tem dinheiro e sabe fazer mais dinheiro.

– E não perde tempo com Eça de Queirós, não é mesmo? – eu pergunto, provocador.

Meu amigo me olha de longe, muito longe, e não me responde. Eu comento que ele precisa escrever as suas histórias (todos temos que escrever nossas histórias, outro dos nossos temas) e ele fala que cansou.

– Essa eu deixo pra ti – ele fala. – Pode usar.

E é o que estou fazendo, alinhavando mais um registro do mundo gringo, esse curioso universo no qual trabalho & dinheiro têm uma centralidade brutal e às vezes corrói os viventes sem que eles percebam.

sábado, 6 de abril de 2024

Na Vinícola Campestre

 

No domingo de Páscoa fiz uma visita guiada a Vinícola Campestre, em Vacaria, e fiquei admirado com a beleza do local. Andei pelos parreirais, pelos espaços da produção, pela adega, finalizando com uma degustação de seus vinhos finos, muito bons. Mas fui informado que o carro-chefe da empresa são os vinhos de mesa, mais populares, com uma produção de garrafas muito superior ao dos vinhos de qualidade que bebi.

A vinícola também oferece um sofisticado salão para festas (300 pessoas sentadas) e muitos casamentos são comemorados ali. Por exigência das noivas foi construída uma capela, com uma pequena torre e um sino. Sino este que a guia liberou para quem quisesse tocar e eu me escalei para dar umas badaladas.

Quando tinha 10 e 11 anos de idade fui coroinha na Igreja do Porto, em Pelotas, e recordei isso ao tocar o sino. Nós, os coroinhas, subíamos até o coro da igreja, onde estavam as cordas dos sinos, e lá nos dependurávamos (literalmente) nas cordas para fazê-los soar, sem grande preocupação de ritmo. Tocávamos chamando os fiéis para a missa de domingo de manhã e nunca ouvi o padre reclamar da falta de precisão das badaladas. Às vezes um sacristão mais experiente dizia como a coisa devia ser feita – o modo correto, controlando o badalo para dar um ritmo mais rápido ou mais lento – e nós, os pequenos, procurávamos aprender.

Na visitação à vinícola tentei controlar o badalo, mas não obtive bom resultado. Seja como for, voltei a ser um guri... como era na Igreja do Porto, em Pelotas.

As igrejas foram parte importante da minha infância & juventude e reviver isso não é ruim. Fui coroinha na infância, integrante de grupo de jovens entre os 15 e 17 anos, e durante anos não perdi missa de domingo.

Meses atrás estive em Pelotas, fui passear na Zona do Porto e de repente me vi dentro da igreja onde fui coroinha, assistindo a uma missa. Não fui até o final (atualmente sinto cansaço enorme com as cerimônias religiosas), mas devo dizer que me emocionei.

Quando saí da igreja, senti como se um manto de tecido grosseiro fosse colocado sobre meus ombros, o manto “da minha culpa, minha máxima culpa”, e me senti rezando o Ato de Contrição, pedindo perdão por não sei quais pecados... Caminhei meia dúzia de quadras revivendo antigos tormentos e sentindo que eles ainda são capazes de pesar dentro de mim. Ao final, após alguma ginástica mental, me livrei daquele manto, daquela lembrança opressiva, e respirei aliviado.

Tocar os sinos da Igreja do Porto, aos domingos, podia ser divertido, mas viver aquele mundo católico não era fácil. Era o meu mundo, no entanto.

Ao ensaiar as badaladas na capela da Vinícola Campestre, porém, não revivi nenhuma angústia. Nem manto grosseiro nem tormento algum me alfinetando. Segui a visita prestando atenção a guia, compartilhando pequenos comentários com minha companheira, com meus colegas de excursão e, na hora da degustação, apreciei cada gole dos vinhos oferecidos.

Mas reconheço: o mundo católico está dentro de mim. Nem precisa cavar muito. Volto e meia a coisa vem à tona e estou dialogando com elementos desse universo religioso. Com uma história de santo, um quadro religioso ou com alguma lenda de milagre ou aparição. E, como num poema de Alphonsus de Guimaraens, volta e meia escuto um sino gemer em “lúgubres responsos” ou algum outro “dobrar num torreão” abandonado.

Momento da visitação: a guia oferece uma taça
de sauvignon blanc tirada diretamente da pipa.


quarta-feira, 3 de abril de 2024

São Francisco de Paula

            Dias atrás visitei a cidade de São Francisco de Paula na Serra Gaúcha. Fiz um tour pelo local, passei pela Igreja Matriz e a guia destacou a existência de uma relíquia do santo (colocada numa das paredes do templo) assim como a sua estátua, erguida no lado de fora da igreja. Tudo isso me fez lembrar da Catedral de Pelotas, dedicada ao santo, que tantas vezes visitei, desde criança.

A Catedral pelotense fica defronte ao Colégio Gonzaga, no qual fiz a quinta série do Primário, e muitas vezes, antes ou depois das aulas, andei pela igreja instigado pelos afrescos dedicados ao santo, pintados por Aldo Locatelli. Certamente vem desse tempo o meu interesse por essa figura religiosa.

A Caridade de São Francisco de Paula.

O afresco principal do altar mor é denominado “A Caridade de São Francisco de Paula” (representando o santo entre os doentes) e não há católico pelotense que não tenha, ao assistir uma missa na Catedral, contemplado a pintura com algum interesse. A cúpula também é ornamentada com afrescos dedicados ao santo, no caso referindo-se ao episódio da sua apoteose, com o santo chegando aos Céus e os anjos tocando instrumentos musicais e cantando. Isso sem contar um outro afresco, que trata da visita do santo a corte do rei Francisco de Aragão, em Nápoles, onde realiza um milagre.

Apoteose de São Francisco de Paula.

Histórias é que não faltam para alguém que se criou frequentando a catedral pelotense e ouvindo a sua mãe falar do impacto que Aldo Locatelli causou na cidade, quando veio da Itália realizar as pinturas na igreja, no final da década de 1940.[1]

Pois lembrei do santo justamente do modo como ele não é representado tanto por Locatelli, que o pinta como um homem robusto, quanto pela hagiografia católica, que o exalta pela “prática heroica da Caridade, da Humildade e da Penitência”. Lembrei o jovem Francisco que, por volta dos 18 anos, se enfurnou numa gruta nas montanhas e foi mortificar o seu corpo. Um religioso extremado que se esmerou no “lento suicídio do ascetismo”, prolongando a sua existência com o propósito de sofrer privações, como indicam os psicanalistas ao analisarem o comportamento dos santos. Um religioso que se dedicava a jejuns prolongados, vivendo numa “quaresma perpétua”, o que na certa não lhe garantia uma compleição forte e saudável como Locatelli apresenta e que só a arte religiosa, com sua tendência à idealização do ascetismo, é capaz de fazer.

Lembrei desse santo que tanto maltratou o seu corpo e, como outros ascetas da Igreja, ocupou espaço privilegiado no meu imaginário. Acho que nunca, como nesses últimos dias, desejei tanto me afastar desse modelo de vida. Tive até vontade de sentar na beira da calçada e chorar de raiva – o que seria um exagero, claro, mas expressivo do modo como hoje percebo o mundo.

Fui moldado na tradição católica e demorei a me dar conta do modo como a hagiografia e a arte religiosa embalam a trajetória dos santos, “ornamentando-as com as mais altas dignidades e aspirações”, escondendo as mazelas dos processos de autodestruição.[2] Nunca me senti tão distante desse modelo de santidade.

Dizem os psicanalistas que não há cultura que não tenha elementos de encorajamento das tendências autodestrutivas da humanidade, não sendo essa uma primazia da Cristandade. Mas foi dentro desta cultura religiosa que me criei e é com ela que dialogo. Desde criança andei pelo interior da Catedral de Pelotas e aquele robusto São Francisco de Paula, pintado no fundo do altar, certamente foi uma armadilha, da qual hoje desejo me livrar. Um herói da mortificação, moldado no exercício da “quaresma perpétua”, do sofrimento constante.

 

Obra consultada: BRAMBATTI, Luiz Ernesto. Locatelli no Brasil. Caxias do Sul / RS: Belas Letras / Instituto Vêneto, 2008.



[1] Junto com Locatelli (pintor) vieram Emilio Sessa (decorador) e Adolfo Gardoni (estucador e dourador), os três contratados pelo bispo D. Antônio Zatterra, que conhecera os artistas na Itália. Com a chegada desses artistas toma fôlego e é criada a Escola de Belas Artes de Pelotas.

[2] Muitos santos morreram cedo, completamente debilitados, como São Francisco de Assis, aos 44 anos, cego inclusive. São Francisco de Paula morreu aos 91 anos e certamente não fugiu à regra quanto ao seu estado de saúde, dado que era famosa a sua disposição ao jejum, comendo (muitas vezes) apenas uma vez por semana.  

terça-feira, 2 de abril de 2024

Pedagogia da surra (2)

 

Volto ao tema das surras, de histórias que me impressionam muito, apesar de eu nunca ter apanhado pra valer. Apenas algumas palmadas.

Meu pai era um homem alegre, brincalhão, mas às vezes extremamente furioso. Na minha lembrança (ele morreu quando eu tinha 22 anos) talvez caiba dizer que era um homem de paixões extremas e várias vezes presenciei tanto a sua alegria contagiante quanto a sua raiva “desmedida”, que ele controlava com muito esforço.[1]

Meu pai foi criando num contexto familiar no qual a surra era um instrumento pedagógico e chegamos a conversar sobre isso. Seus pais achavam impossível educar sem utilizar o castigo físico – por meio de cascudos, tapas, chineladas e até mesmo com cinta - e acrescentava que cresceu pensando assim até conhecer “a mãe de vocês”.

Professora formada na Escola Complementar de Pelotas, como ela gostava de destacar, minha mãe não tinha o castigo físico como parte do seu repertório educacional. Quando o pai se alterava conosco (especialmente com o meu irmão mais velho), ela protestava e essas situações geravam embates terríveis entre eles. À muito custo o pai se continha.

Meu irmão mais velho certamente foi o que apanhou mais (não lembro direito), eu levei uma palmada e outra e acredito que meu irmão menor também. Com clareza, lembro apenas das brigas acaloradas que o pai e a mãe mantinham a respeito do modo de repreender e até castigar os filhos... Nessas discussões, minha mãe chorava, abraçada ao filho caçula, e meu pai parecia sair de si, contendo-se para não surrar os filhos desobedientes, malcriados, petulantes ou coisa semelhante.

“Impossível educar sem bater”, os seus pais diziam, nascidos em famílias camponesas na Itália, com passagem por fazendas de café paulistas, no Brasil, e depois uma lenta migração para o mundo urbano. Mas sempre a brutalidade do mundo rural os acompanhando...

Meus avós paternos tiveram catorze filhos e o castigo físico foi um instrumento (talvez o único ao seu alcance) para “colocar os filhos nos eixos”, como muitas vezes ouvi meu pai e seus irmãos e irmãs comentarem.

“Teu pai foi criado dessa maneira e foi difícil fazê-lo mudar de ideia”, minha mãe contava.

Poderia escrever sobre isso apenas como se registrasse uma característica das famílias de matriz camponesa e italiana, mas não consigo. É uma lembrança que ainda incomoda,

Estou lá, dentro da casa em que vivi com meus pais na década de 1960 (em Pelotas), e revivo tudo com os mesmos sentimentos infantis de fragilidade e onipotência. Em pânico com o que assistia, me colocava como uma peça fundamental para que aquilo acontecesse, isto é, me colocava culpado pela cena: a fúria do pai, o desespero da mãe.

Sessenta anos me separam desses episódios e eu sou capaz de revivê-los. Tudo é extremamente vivo. Eu ainda não completara dez anos de idade e a vida me parecia impossível de suportar. Escandalosamente contraditória e dramática.



[1] A referência à raiva de meu pai como desmedida é certamente um exagero. Mas não vou corrigir, apenas colocar a palavra entre aspas.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Pedagogia da surra (1)

           No meu círculo de relações, de gente nascida nas décadas de 1950 e 60, é comum escutar histórias de surras. Às vezes dadas pelo pai; outras vezes, a mãe. Não dá pra dizer quem batia mais. Muitas vezes os pais usavam um chinelo para executar a “tortura”, mas na maioria das vezes era a palma da mão mesmo – e não necessariamente na bunda, mas em qualquer parte do corpo. Em raros casos, a cinta servia de instrumento e, mais raro ainda, o relho ou um galho de árvore.

Alguns têm lembranças tristes desses episódios, um e outro até sente dificuldade em lembrar e ainda há quem fale com lágrimas nos olhos. Mas, de modo geral, a coisa está assimilada. “Era o modo como nossos pais encaravam a difícil tarefa de educar e a coisa não foi tão ruim” – parece ser a conclusão. Somos velhos, estamos na faixa dos 60, alguns entraram nos 70, e nessa idade as coisas que nos fizeram sofrer já não doem tanto (na maioria das vezes).

– Eu aprontava muito – me disse um amigo – o velho não sabia o que fazer e sapecava o relho no meu lombo. Acho até que ficava mal com o troço. Mas eu aprendi. Ah, se aprendi.

Uma amiga, porém, até pouco tempo atrás precisava segurar o choro ao falar da mãe surrando-a com qualquer coisa que estivesse a mão.

– Ela ficava fora de si, completamente fora de si – explicava, complementando que a mãe não sabia o que estava fazendo. – A vida dela degringolava, nada dava certo e acho que ela descontava em mim.

Uma geração que foi moldada por uma pedagogia que colocava a surra como instrumento de educação. Coisa que as novas gerações nem sabem o que é.

Minha mãe, que era professora primária – formada pela Escola Complementar de Pelotas, no início da década de 1940 – contava que era difícil dizer para os pais dos alunos não baterem nos filhos.

– Castigos físicos não educam – ela costumava me falar – só causam ressentimento. Meus pais nunca me bateram e depois eu aprendi na escola que essa era a atitude correta. O pai de vocês foi criado a base de surras (prática costumeira entre famílias de imigrantes italianos) e sempre me opus a isso. Ele demorou muito a mudar, mas mudou. Foi um sacrifício para ele, mas entendeu.

           Eu lembro do meu pai surrando meu irmão mais velho, uma ou outra vez erguendo a mão para me bater... e não sei mais se ele me batia ou não. Parece que só ameaçava. Mas essa ameaça eu sou capaz de recordar como uma verdadeira surra. Pois dói, dói muito, lembrar o rosto do pai atormentado pela raiva, uma raiva direcionada a mim.      

domingo, 24 de março de 2024

Mundo rural

        Nasci e cresci em Pelotas. Sempre vivi em zona urbana. Minha mãe teve os primeiros sinais do parto quando estava no Cineteatro 7 de Abril e ela e o pai saíram na metade do filme e foram para a Santa Casa. O médico dissera que seria feito cesariana e não repetiria o que fizera no nascimento do meu irmão mais velho, isto é, tentar um parto normal. “Um parto muito mais tranquilo”, a mãe acentuava, sem o sofrimento da primeira vez. 
       Morei na Rua Uruguai, esquina com Santa Cruz, na Zona do Porto, até os onze anos. Vivia numa casa com quintal a meia dúzia de quadras do Canal São Gonçalo e passear no cais do porto (visitar os navios da Marinha), tomar banho no Canal (no Clube Regatas) e ir ao cinema aos finais de semana eram o meu roteiro habitual. 
       Lembrei disso outro dia, enquanto ouvia a conversa de duas colegas de trilha (ambas por volta dos 60 anos). Caminhávamos pela região serrana (próximo a Santa Maria, onde moro atualmente) e elas falavam das suas vivências no mundo rural, na infância, bem ao contrário de mim que sempre fui urbano. Uma nasceu em casa, a outra no hospital. E tiveram infância com banhos em sanga e arroio, sem cinema nem TV. Hoje vivem em Santa Maria e revivem as lembranças da infância com nostalgia e algum alívio. 
       – Minha mãe teve o primeiro filho em casa e foi tudo muito trabalhoso – disse uma delas. – Quando eu nasci, estava tudo arranjado para o parto ser no hospital. Nem a mãe nem o pai queriam repetir o sofrimento vivido no nascimento do primeiro filho. 
      Elas lembravam as dificuldades da vida no campo (o pai de uma plantando arroz na Campanha; o da outra, batatinha, na região da Colônia), olhavam para e mim e repetiam que eu não sei nada disso. 
       – Não, não sei – concordei. – Meu pai era bancário; minha mãe, professora primária. E quase nasci num cinema – acrescentei. 
       Elas riram e contaram que até os onze/doze anos o cinema era coisa rara em suas vidas, “só nas férias e olhe lá”. Depois os pais desistiram das lavouras e vieram para a cidade. Um abriu comércio em Santa Maria, o outro foi ser representante comercial (viajando muito pelo estado) e a vida melhorou. 
     – No geral melhorou, mas foi difícil também – uma delas falou. E contou que hoje namora um viúvo, pequeno proprietário rural nas imediações de Santa Maria, e dirige mais de hora para chegar até a fazenda onde ele mora e trabalha. Passa pelas imediações das terras em que um dia foram do pai e ora sente saudades ora alguma tristeza. 
     – O pai penou muito, quis manter a propriedade deixada pelo meu avô, mas não aguentou. Vendeu tudo num dia em que estava agoniado com as dívidas no banco e acho que se arrependeu. Às vezes escuto meu namorado contando o que passa para manter a propriedade funcionando, rendendo... e lembro dele. Parece que conheço tudo aquilo. 
      É uma realidade que desconheço, sei apenas o que leio nos livros (o mundo rural é sempre presente na literatura, em Lopes Neto, Cyro Martins, Érico Veríssimo), e vou juntando dados para uma ficção que não sei se um dia realizarei. O drama de pequenos e médios proprietários rurais e suas famílias, dialogando com as heranças deixadas pelos avós. Às vezes conseguindo mantê-las, e outras tantas perdendo tudo, mas nunca a memória, a lembrança de um poço, de um campo ou de um pai mirando o horizonte, no qual o Sol acabou de se pôr e o céu está vermelho feito uma poça de sangue.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Dona Alice

 

Quando dona Alice soube que o filho caçula havia batido na mulher, achou que era hora de intervir. Isto era final da década de 1980, já existiam as delegacias da mulher e dona Alice temeu que a nora levasse o caso à polícia.

– Mas foi só um tapa no rosto – disse o irmão mais velho. – O Alfredo perdeu a cabeça e já se arrependeu. Não vai repetir

– Eu conheço teu irmão e sei que ele é incapaz de matar uma formiga, quanto mais bater na esposa. Mas sei bem que quando fica furioso, tal qual como o pai de vocês, ele perde a cabeça. E a Suzete, eu já vi, faz ele enlouquecer. Por isso te peço, encarecidamente, leva o teu irmão para o Rio de Janeiro e põe ele a trabalhar no restaurante que tu tens.

– Mas eles são casados! Eu não vou terminar esse casamento.

– Deixa comigo. Teu irmão está pensando em se separar e falei que eu pego o Pedrinho pra criar. Esse problema está resolvido, já disse pra ele. Tenho a pensão do teu pai e posso bancar essa despesa.

O diálogo acima é imaginário, mas a situação não. Dona Alice era minha colega numa escola estadual (no final dos anos 80, em Porto Alegre) e um dia ela desabafou comigo. E registrei o seguinte: o irmão mais velho de Alfredo tinha um restaurante em Copacabana, na Rua Xavier da Silveira, e foi nesse local que o Alfredo refez a vida. Ou deve ter refeito, sei lá. Me hospedei num hotel dessa mesma rua, dias atrás, passei uma semana como turista em Copacabana, e lembrei da história...

Na verdade, só lembrei de dona Alice (professora de Ciências, vigorosa e altiva, boa leitora de romances policiais) que mexeu com os pauzinhos (como ela dizia), acertou a separação do filho e a vinda dele para o Rio, para trabalhar com o irmão. Uma mulher capaz de fazer a roda do mundo girar ou, ao menos, intervir diretamente na vida dos filhos. Armou a separação de um, colocou o outro na obrigação de proteger o irmão, neutralizou uma nora pegando o neto para criar, e assim foi ajeitando as coisas como ela achava melhor. Recordo que ela me disse:

– O Alfredo está morando agora num apartamento pequeno em Copacabana e nem pensa em voltar. A Suzete morre de raiva de mim. Diz que eu armei tudo e eu falo que ela não conhece o marido que teve.

Conheci a Suzete numa manhã em que ela veio deixar o filho com a sogra, na escola, e confesso que não vislumbrei nenhum traço de mulher capaz de infernizar o marido. Era uma mulher de corpo bem torneado por roupas justas, muito ágil e determinada, bem simpática. Conversamos porque coube a mim receber o filho (eu era diretor da escola) e o guri ficou desenhando na minha sala até a avó terminar as aulas e vir pegá-lo para irem para casa.

Pois hoje o guri deve ter mais de 40 anos e Alfredo certamente é um velho de 72 ou 74 anos, talvez morador ainda de Copacabana. Talvez o homem que me atendeu no caixa de um restaurante onde jantei com minha companheira e bebemos Aperol. Olhei aquele homem bonachão no caixa do restaurante e pensei na hora: é o filho da dona Alice. Escapou de perder a cabeça, bater na mulher, ser denunciado na delegacia da mulher e ter a sua vida enroscada num caso policial.

Rua Xavier da Silveira, Copacabana.

– Meu filho não se perdoaria se batesse na mulher a ponto dela precisar recorrer à polícia – dona Alice me dissera.

Tive vontade de contar o caso a minha companheira, quando saímos do restaurante, mas fiquei desconfiado de que boa parte era fruto da minha imaginação. Seja como for, sempre pensei na minha colega como uma mulher sábia, mãe previdente e poderosa, dessas que os filhos nunca sabem (ou só sabem muitos anos depois) que os seus destinos foram tecidos por mães poderosas.

domingo, 17 de março de 2024

O avesso da pele

 

As secretarias estaduais de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná afirmaram em nota que o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, apresenta “expressões impróprias” e, por este motivo, recolheram o livro das escolas. A obra foi lançada em 2020, premiada pelo Jabuti, e selecionada e distribuída pelo PNLD, do MEC, para alunos de Ensino Médio. No Rio Grande do Sul também houve intenção de retirar o livro das salas de aula, por parte de uma diretora de escola estadual, em Santa Cruz, mas o governo estadual não endossou a iniciativa.

No caso do Rio Grande do Sul, a professora Janaína Venzon (a diretora de escola que se manifestou contra o livro) se justificou com o argumento de que, “nesse momento que a gente vive”, é muito difícil trabalhar uma obra com “esse vocabulário” com alunos menores de idade.

Quem conhece a realidade escolar sabe que a professora não está dizendo bobagem. A abordagem da sexualidade (seja com palavras impróprias ou não) é capaz de causar reboliço numa escola e tontear a vida de um professor. É preciso habilidade & coragem para encarar o assunto. Não estou justificando a censura, apenas comentando a respeito do mundo escolar. Por muito menos, uma novela juvenil de minha autoria (Jorge encontra Lilian, publicada de modo independente) causou um fuzuê numa escola de Ensino Fundamental. O personagem-narrador (a novela é escrita em forma de diário) utiliza a palavra “felação”, a mãe de uma aluna ficou sabendo, foi pra cima da diretora e a coordenadora pedagógica penou para justificar a adoção do livro.

A professora Janaína vive em Santa Cruz e, ao se referir ao “momento em que a gente vive”, certamente está se referindo ao peso do conservadorismo na cidade. Afinal, no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro obteve 60,15% dos votos válidos e, na certa, o moralismo rasteiro a que essa orientação política dá voz deve estar em alta. Assim, se o tema da sexualidade (com linguagem impropria ou não, volto a insistir nesse aspecto) já era complicado de abordar em sala de aula, com o bolsonarismo a coisa ficou muito mais complicada. A defesa da “inocência das crianças e adolescentes” é argumento que está na ponta da língua dessa gente e haja paciência para aguentar.

Dito isso, acrescento que li o romance quando foi lançado e nem lembro das cenas de sexo nem da linguagem que o autor utiliza. O foco da narrativa é o racismo, a violência policial, e isso (além da qualidade literária do texto, claro) é o que importa. No ano do lançamento fiz uma resenha do livro para o boletim do meu sindicato (SEDUFSM), que reproduzo a seguir.


         A temática da negritude está em alta e o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras, 2020, 188 páginas) a atualiza no cenário sul-rio-grandense. Mais especificamente em Porto Alegre, considerada a cidade mais racista do país, segundo o narrador. Um narrador muito original, por sinal. Um personagem de 22 anos, negro e estudante de Arquitetura (cotista, como ele próprio enfatiza) que se dirige ao pai assassinado durante uma desastrada abordagem policial. Uma narrativa em segunda pessoa com uma força impressionante, capaz de conquistar o leitor nas primeiras linhas:

“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim.”

O pai é um professor negro, nascido no Rio de Janeiro em 1971, que se radicou em Porto Alegre por volta de 1980. Veio para o sul com a mãe e as irmãs e foi morar na Vila Bom Jesus, na casa da avó. Sofreu as agruras por que passam aqueles que têm a pele negra, mas só tomou consciência do racismo quando foi aluno de Oliveira Silveira, num cursinho pré-vestibular. Logo com Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do Grupo Palmares (na década de 1970) e uma das principais expressões da poesia que tematiza a negritude. Um professor, militante e poeta, que é referido diversas vezes ao longo do romance, numa clara homenagem ao seu papel no movimento negro (o Grupo Palmares foi quem primeiro propôs o dia 20 de novembro como data da Consciência Negra).

Pois o pai do narrador se faz um professor de língua portuguesa nas escolas públicas da periferia de Porto Alegre e, após vinte anos de magistério, se sente derrotado pelos adolescentes indisciplinados aos quais se propõe a ensinar. É sobre esse pai, então, que o narrador se debruça e o recompõe por meio da memória e da invenção. Um homem negro que foi massacrado não só pelo racismo (em especial aquele que se manifesta nas abordagens policiais), mas também pelo casamento (que se desfez após o nascimento do filho e que não foi superado até o fim da vida) e pela atividade no magistério público (o qual não lhe proporcionou a vida confortável que sonhara). Um homem que muitas vezes se escondia nos próprios pensamentos e que o filho vira ao avesso, num exercício doloroso de busca da sua humanidade. Uma humanidade que está além da cor da pele e que seus assassinos policiais foram incapazes de perceber.

“Estou reconstituindo esta história para mim”, afirma o narrador, o filho do pai morto. “Uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé.” O avesso daquela imagem de homem negro, com atitudes suspeitas, que foi abordado por policiais do Batalhão de Operações Especiais, na periferia de Porto Alegre.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Forte de Copacabana

           

Estive no Forte de Copacabana dias atrás. Além da fortificação militar, há um conjunto de bares e restaurantes e até uma filial da Confeitaria Colombo. Fui a confeitaria para tomar café com minha companheira, depois de andar 60 minutos (cravados no relógio) pelo calçadão de Copacabana. Após o café, subimos até a parte externa da cúpula dos canhões para olhar a cidade e o mar. Uma vista e tanto. Com direito a tirar fotos e divagar a respeito da paisagem, dos canhões... e das invasões estrangeiras ao território brasileiro.

Estudante de Ginásio, fiquei fascinado pelas histórias de piratas na região, em especial aquela comandada por Duguay-Troin, em 1711, que ocupou a cidade por dois meses (e que li pela primeira vez num livro do Rocha Pombo). Acho que depois desse episódio não houve outra tentativa de invasão na baía da Guanabara e não sei qual o inimigo que os militares brasileiros imaginaram quando instalaram quatro enormes canhões no forte, antes da Primeira Guerra Mundial. Seja qual for, no entanto, uma obra monumental (das maiores realizadas pela engenharia militar brasileira) e que logo se tornou obsoleta devido ao avanço da indústria bélica proporcionada pela Guerra de 1914. (Grande Civilização Ocidental, nenhuma outra criou armas de destruição tão eficazes como a nossa!)

Na hora (caminhando sobre a cúpula dos canhões) disse para minha companheira que os canhões nunca dispararam contra um inimigo estrangeiro. Nunca houve qualquer tentativa de invasão. Mas descobri depois que os canhões foram utilizados para atingir um cruzador brasileiro na década de 1950. Um episódio estranho, mas corriqueiro na história da República brasileira, de tentativa de golpe de estado liderado por forças conservadoras temerosas pelo avanço de um líder progressista, e que passo a narrar a seguir (e convido o leitor a prosseguir, caso ele tenha interesse a respeito dessas chatices da história brasileira).

Em novembro de 1955, governava o Brasil João Café Filho, que assumira a presidência em agosto do ano anterior, devido ao suicídio de Getúlio Vargas.  Café Filho foi conivente com a oposição a Vargas (aquela mesma que o pressionou, pretendendo a sua queda) e chamou vários políticos da UDN para ocupar ministérios no seu governo. Isto, no entanto, não saciou a sede de poder dos udenistas. Contrariados pela vitória de Juscelino Kubistchek nas eleições presidenciais (em outubro de 55), a UDN e parte das Forças Armadas voltaram a tramar um golpe de estado. Café Filho sentiu a pressão e caiu fora, isto é, inventou um problema de saúde e se licenciou do cargo. (Recordo a professora Helga Piccolo abordando o episódio em alguma palestra, ironizando o modo como Café Filho deixou a presidência e tirando sorrisos da plateia. Uma professora inesquecível.)

Café Filho picou a mula, assumiu Carlos Luz (presidente da Câmara), sintonizado com os golpistas e pronto para concretizar qualquer coisa que barrasse a posse de Kubistchek (a UDN temia que JK retomasse a pauta nacionalista de Vargas). O general Henrique Teixeira Lott (Ministro da Guerra) percebeu a manobra e armou um contragolpe. Os setores legalistas das Forças Armadas apoiaram Lott e Carlos Luz teve que fugir do Rio de Janeiro. Embarcou no cruzador Tamandaré (com políticos udenistas, entre eles Carlos Lacerda, e centenas de militares), partiu em direção ao porto de Santos (de onde pretendia liderar o golpe) e, ao sair da baía da Guanabara, ficou na mira dos canhões do Forte de Copacabana...

Foi nesse momento que as canhoneiras funcionaram. Talvez seu único momento de utilização militar. Os tiros não atingiram o cruzador (que manobrou de forma hábil para escapar dos disparos) e a história teve um final feliz, isto é, não houve mortos na jogada. O Tamandaré chegou ao seu destino, os golpistas foram detidos no porto de Santos pelos militares legalistas, Carlos Luz foi deposto (mas não preso) e JK assumiu no ano seguinte.

Resumindo, os canhões do Forte de Copacabana só funcionaram para amedrontar um golpista e seus comparsas. Talvez um episódio emblemático da nossa história republicana, tão pródiga em golpes (e nem todos fracassados).

Acrescento, no entanto, que meu passeio ao Forte de Copacabana não se resumiu ao um “revival” da nossa história política. Foi um passeio de turista. Momento de se sentir num cenário privilegiado, de encantamento com o mar e com o Rio de Janeiro, e de poder compartilhá-lo com uma pessoa querida. Os canhões, quatro enormes canhões (dois de 305 mm, dois de 75 mm), não passaram de detalhes.


Turistas tirando fotos na cúpula dos canhões do Forte de Copacabana.
Ao fundo, os canhões de 305 mm.

domingo, 3 de março de 2024

As brasas

 

No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem (um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de 1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada. Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele seria morto.

O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro, sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é, se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique, mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor importância”, me parece antológica.)

Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala, rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem (sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.

Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989) é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos (entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por exemplo, foi traduzido da versão italiana.

 

- MÁRAI, Sándor. As brasas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras, 2021. 180 p.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fantasias e delírios

 

Há pessoas para quem a vida não basta e precisam inventar alguma coisa que a melhore ou a torne mais suportável. Outras, de perfil mais realista, se contentam com a vida como ela é e a aceitam, sem grande inquietação. Um poeta é o típico integrante do primeiro grupo, envolto em um mundo de sonhos e imaginação, enquanto o engenheiro é a figura exemplar do segundo, expressão da mentalidade prática, lidando apenas com aquilo que pode ser pesado, medido e calculado.

Lembrei dessas considerações a respeito das mentalidades dominantes ao ter a infelicidade de conversar com um homem prático. Ou, pelo menos, com um homem cuja recente namorada me garantiu que ele era assim.

– Um típico engenheiro – ela me disse – lidando apenas com os aspectos práticos da vida e com muito êxito, por sinal.

Ela o conheceu recentemente, nos apresentou num bar da cidade e a conversa foi rápida. Eu mais ouvi do que falei. Minha amiga nos deixou para tratar de alguma coisa e de repente o homem estava falando de política, indignado com a operação da Polícia Federal a respeito do golpe de Estado urdido por Bolsonaro e me explicando a inconsistência das acusações.

– Uma farsa, uma perseguição política – acentuou. – Ora um golpe sem tropas e tanques nas ruas – chegou a dizer, ignorando as peculiaridades da estratégia neofascista em curso no país.

Minha amiga já me dissera que cansou de homens sonhadores e queria alguém pragmático. Foi dessa maneira que me falou dele e me espantei quando o sujeito enveredou para as criações mirabolantes dos bolsonaristas a respeito do 8 de janeiro de 2023, endossando o entendimento de que o quebra-quebra foi uma armadilha da esquerda.

– Os petistas já estavam dentro dos prédios do Congresso, do Palácio Presidencial e do Supremo Tribunal Federal, quando os manifestantes chegaram pacificamente – ele disse, acrescentando que iria me enviar os vídeos, se eu quisesse.

Não, eu não quis. Minha amiga voltou nessa hora e felizmente mudou o rumo da prosa. Certamente não era essa a conversa que ela desejava que eu ouvisse. O pragmático engenheiro que ela me propagandeara estava, naquele momento, enveredando para o campo das fantasias delirantes e não era essa a faceta do homem que ela admirava.

Fiquei calado. Este engenheiro pode ser muito prático para tomar as decisões quanto a sua empresa e colocá-la no mercado, mas, quanto ao resto, é só sonho e fantasia. Mais um adepto da utopia bolsonarista, que se imagina lutando contra o “comunismo petista” e pela afirmação da democracia e da liberdade. Provavelmente um engenheiro bem sucedido, mas incapaz de realismo político.

 A extrema-direita bolsonarista (que não acho mais exagero chamar de neofascista) está num brete e esperneia. Não assume o seu projeto autoritário e muito menos o quebra-quebra em Brasília como tática para um golpe que não conseguiu concretizar. A ideia dos petistas enquanto força maligna, dentro dos prédios antes da chegada dos manifestantes do 8 de janeiro, aguardando a massa bolsonarista para imputar-lhe um vandalismo que ela não desejava fazer, é de uma criatividade impressionante. Haja delírio e teoria da conspiração!

Carreata bolsonarista em Santa Maria, em abril de 2021.

Não sei como me despedi do casal, mas, quando dei por mim, estava com a mão sobre o ombro da minha amiga, penalizado com o que ela precisa suportar. E, sem perceber minha hipocrisia, sai desejando felicidade aos dois.    

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Memórias da pandemia

 

Sou desses que às vezes se espantam com o que vivemos no período da pandemia. Fiz alguns registros a respeito daquele tempo e, ao reler o que anotei em 18 de junho de 2020, achei que valia a pena reproduzir aqui.

Naquela tarde, fui ao médico e conversei rapidamente com o porteiro do prédio. Nós dois de máscaras e distantes um do outro mais ou menos dois metros. Ele revelou a sua contrariedade com as medidas restritivas impostas pelo Governo Eduardo Leite e entendi que não achava necessário restringir a circulação de pessoas para impedir a disseminação do vírus. Naquele tempo ele ainda era um entusiástico do Governo Bolsonaro (posição que mudaria, a partir do adoecimento e morte de familiares pela covid) e navegava nas águas do negacionismo.

Além disso, tive a impressão de que ele estava incomodado com os que podiam se dar ao luxo de fazer o propalado isolamento social, enquanto ele não podia, pois precisava estar ali, na portaria do prédio. Trabalho remoto não era coisa para ele, assim como não era para a maioria da classe trabalhadora.

Naquele mesmo dia a polícia prendera o Queiroz (assessor do senador Flávio Bolsonaro) e eu entendia que era um cerco ao clã Bolsonaro. Ao menos, era o que escutava de alguns comentaristas políticos, que divagavam a respeito de um possível desmoronamento do castelo bolsonarista. Doce ilusão!

Escrevi que estávamos assistindo a um “governo incompetente na gestão de uma das crises de saúde mais graves que o País já vivera”, mas “a coisa estava mudando”. Até a Rede Globo migrara para a oposição, só resguardando o Ministro da Fazenda.

Que tempos! Eu era daqueles que achavam que o Governo Bolsonaro não sobreviveria até o fim do mandato e fui vencido pelos fatos. Bolsonaro se manteve firme e forte e até ensaiou uma insurreição no ano seguinte, em 7 de setembro de 2021. O primeiro ensaio do seu almejado golpe.

Naquele dia, porém, o que me preocupava eram as medidas para administrar a propagação do vírus e como conviver com tudo isso. Como conviver com a pandemia!

Saí do médico (com o qual mantive a devida distância) e fui a lotérica pela primeira vez. Encarei a fila mantendo a devida distância dos outros clientes (todos nós com máscaras no rosto) e exercitei o que se chamava “a nova normalidade”.

Eu frequentava o supermercado no horário dedicado aos idosos (início da manhã) e seguia todos os protocolos. Um amigo me trazia livros de vez em quando, tocava no porteiro eletrônico, eu descia, e conversávamos na porta do prédio, de máscaras e com o devido distanciamento. Era uma prática que esse amigo fazia questão de manter: a troca habitual de livros.

Alguns achavam que os objetos (livros, entre eles) podiam transmitir a covid, mas nós não embarcávamos nessa. Entendíamos que o vírus não sobrevivia na capa ou nas páginas de um livro e seguíamos em frente. Livros para enfrentar o isolamento social, dizíamos, eis o nosso lema.