quinta-feira, 29 de março de 2018

Maria Madalena


A Bíblia é a narrativa central da nossa civilização. Isto é, se entendemos que a nossa civilização é construída tendo como referência básica a tradição judaico-cristã, não há como escapar das histórias bíblicas, sejam verdadeiras ou não. Suas histórias estão no eixo do nosso imaginário e tanto as aprendemos nas cerimônias religiosas, quanto na escola, nas ruas, nos museus e, especialmente, no cinema. Entre essas histórias, sem dúvida, está a de Maria Madalena, figura citada nos quatro evangelhos de forma sucinta e que gerou diversas interpretações e lendas.

No filme A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, ela é a adúltera que vai ser apedrejada e que Jesus salva da morte. Uma cena belíssima de uma linda mulher jogada no chão, já estropiada, sangrando, e que ergue os olhos, agradecida, ao seu Salvador. O filme recria a passagem do Evangelho de João  8, 1-11, no qual uma adúltera é apresentada a Cristo para que ele se pronuncie a respeito da Lei de Moisés (que ordena o apedrejamento de tais mulheres). Jesus enfrenta o questionamento lançando um desafio – “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” – e livra a moça do castigo. O evangelista não nomeia a mulher, mas alguns exegetas medievais a identificaram como Madalena e a interpretação colou, se difundiu e chegou até o cinema do século XXI.

Outro trecho dos Evangelhos que serviu para identificar Madalena como pecadora é a que trata da mulher que lava os pés de Cristo na casa de um fariseu (Lucas 7, 36-50). Nesse episódio, uma pecadora anônima banha os pés de Jesus com suas lágrimas, depois seca-os com seus cabelos, cobre-os de beijos e os unge com perfume. Novamente o evangelista não nomeia a mulher e alguns estudiosos a identificaram como Madalena. Uma mulher que “entregou-se completamente aos prazeres carnais” e depois se arrependeu, conforme está na Legenda Áurea, um dos mais famosos livros sobre santos, escrito por Jacopo de Varazze no século XIII.

Na Contra-Reforma essa versão da trajetória de Madalena foi reforçada e serviu como instrumento de propaganda católica para construir o modelo da mulher arrependida, que passa pela confissão, a penitência e alcança a salvação. É dessa maneira que ela ganha a tradição popular e, até hoje, quando pesquisadores vão à campo, recolhem depoimento de homens e mulheres de todas os níveis sociais que repetem a versão da adúltera e da pecadora.

Mas o assunto nunca deixou de ser polêmico entre os estudiosos e, durante o Concílio Vaticano II (na década de 1960), a Igreja acatou e consolidou um “novo entendimento” a respeito de Madalena: a de que ela não é a adúltera que Cristo salvou do apedrejamento nem a pecadora que lavou os seus pés. A Igreja resgatou o que se encontra no texto dos Evangelhos e passou a afirmar que ela era, isso sim, uma das integrantes da “companhia feminina de Jesus” (expressão usada por Lucas para designar as mulheres que acompanhavam Cristo e os doze apóstolos) e, principalmente, a primeira pessoa a ter contato com o Cristo ressuscitado (a "apóstola dos apóstolos", segundo Tomás de Aquino).

Em junho de 2016, o Papa Francisco elevou “a memória de Madalena [...] ao grau de festa pela Congregação para o Culto” (colocando-a no mesmo patamar dos doze apóstolos consagrados pela história eclesiástica) e deste então se tornou mais visível o esforço da Igreja Católica em restabelecer a história de Maria Madalena nos termos em que ela foi descrita pelos evangelistas. Junto com isso, também se revelou o polêmico esforço de mudar o papel das mulheres “na missão de Cristo e na Igreja”. No entanto, na tradição popular, permanece a versão criada no medievo e reafirmada na Contra-Reforma da pecadora arrependida.

Agora, Hollywood se engaja nesse projeto do Vaticano e produz o filme Maria Madalena, lançado no Brasil em março desse ano. O filme tem roteiro de duas mulheres (Helen Edmundson e Philippa Goslett), a direção de Garth Davis (o mesmo de Lion: uma jornada para casa, premiado no Oscar de 2017), e produção da Universal Pictures.

Madalena é interpretada como uma moça frágil, porém decidida, que sabe se impor diante da sua família. O pai e os irmãos querem que ela case, escolhem um noivo para ela, mas a moça tem outras aspirações e os enfrenta. Frágil e delicada, ela tem inquietações religiosas e prefere seguir um profeta (Jesus) que anda pela região. Castamente, se integra aos seguidores de Jesus e, no filme (ao contrário do que é indicado nos Evangelhos), é a única mulher no grupo.

É significativa a cena em que ela aparece puxando uma rede de pesca, pois dessa maneira ela se assemelha aos apóstolos consagrados, os “pescadores de homens”, conforme Jesus os chamou (Mateus 4, 19). Cena simbólica da luta das feministas católicas por um maior protagonismo na estrutura de poder eclesiástico.

Maria Madalena, interpretada por Rooney Mara, no filme Maria Madalena (2018).

Sem dúvida, um filme importante no contexto das tentativas de renovação do papel da mulher nos quadros da Igreja Católica. Mas não me parece que tenha tido grande repercussão e nem empolgado a pequena parcela da população que frequenta as salas de cinemas. Uma avaliação, claro, a conferir. Na sessão em que fui assistir ao filme, aqui em Santa Maria, havia dez pessoas na plateia e não senti entusiasmo – nem em mim nem nos demais espectadores. A Madalena dos filmes de Mel Gibson, de Martin Scorsese, e do romance de José Saramago (O Evangelho segundo Jesus Cristo) ainda são mais empolgantes.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Memorial da Resistência - São Paulo.


Em 1969, um grupo de frades dominicanos foi preso pelo DEOPS/SP por apoiar a luta armada da ALN (Ação Libertadora Nacional). Frei Beto era um deles. Os frades não participavam de operações militares, eram um grupo de apoio tático e foi através deles que os agentes de segurança chegaram até um dos principais líderes da organização, Carlos Marighella, e o mataram.

A história está contada em diversos livros, entre eles Batismo de sangue, de Frei Beto (um dos melhores títulos da memorialística guerrilheira). O livro virou filme (muito bom, também entre os melhores a respeito do tema) e é lembrado numa das paredes do Memorial da Resistência, na cidade de São Paulo.

Os frades foram presos, rezaram uma missa na prisão e a cena (tal qual como representada no filme)  está desenhada numa das paredes do corredor do antigo conjunto prisional do DEOPS, reconstituído em 2007, com o propósito de manter viva a lembrança da resistência ao Regime Militar (1964-1985).



Estive no Memorial no início desse mês. Desci do metrô na Estação da Luz, caminhei meia dúzia de quadras até a Estação Pinacoteca, o prédio onde se encontra o Memorial, e fiquei impactado com os craqueiros atirados na calçada, dormindo em colchões ou sentados em grupo, acendendo seus cachimbos. A área está próxima à Cracolândia e um viajante como eu – vindo do interior do Rio Grande do Sul – não consegue deixar de ficar chocado.

A região é bastante policiada – abriga órgãos do governo estadual e sofisticados espações culturais (entre eles, a Sala São Paulo) – e dizem que os traficantes também auxiliam na segurança, impedindo que os drogados cometam “excessos”. Um lugar tranquilo de caminhar, me avisaram, mas chocante. “Umas das estações do Inferno”, me disse um paulistano.

Eu fui e respirei aliviado quando entrei no prédio. O Memorial ocupa parte do térreo da Estação Pinacoteca - que já abrigou os escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana e depois foi sede do DEOPS, entre 1938 e 1983, e hoje reconstitui parte do conjunto prisional que ali existiu. O museu privilegia um conjunto de quatro celas (mais corredor de acesso e corredor para banhos de sol) e remete o visitante ao período de 1969-71, considerado o mais feroz da repressão política protagonizada pelo Regime Militar. Os vídeos e textos indicam as “atrocidades, desencanto, humilhação e desespero” que ali aconteceram, mas também remetem aos atos de “coragem, fraternidade e sábia resistência” que também ocorreram naquele espaço.
Não é um lugar deprimente. É um espaço de memória, de reflexão – de sóbria reflexão, acrescentaria. E a cena da missa dos frades dominicanos desenhada numa das paredes indica uma das intenções do museu: a de que existe esperança. Ou, ao menos, que se pode encenar a esperança. Mesmo não se acreditando em coisa alguma da simbologia da missa católica ali representada existe a possibilidade de se apostar na solidariedade e na resistência e luta contra regimes de opressão.