quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Mulheres na região de colonização italiana

 

Defendi tese de doutorado a respeito da Igreja Católica numa região de colonização italiana (no caso, na região central do Estado, no município de Santa Maria, o qual, no final do século XIX, abrigou um núcleo de colonização, denominado Quarta Colônia, hoje dividido em vários municípios). Assim, durante muito tempo, frequentei eventos acadêmicos relativos aos estudos de imigração. Assisti a painéis, comunicações e palestras muito interessantes, mas do que lembro com mais intensidade são as conversas ao final dos encontros. No bar, em torno de xícaras de café, ou nas alamedas dos campis universitários, batendo pernas e falando a respeito de como viviam os colonos.

Imigrantes italianos na Serra Gaúcha.
Fonte: mulhersingular.com.br/2015/12

Um tema recorrente era o do papel da mulher nessas regiões de colonização (na Serra Gaúcha, em especial), a inserção feminina no modelo de economia centrado na pequena propriedade rural (que os colonos tinham acesso pela política de colonização e que pagavam a longo prazo). Lote de terra que exigia exploração intensiva para garantir a sobrevivência familiar, com uso de mão-de-obra constituída por pai, mãe e quantos filhos eles pudessem ter.

Nesse projeto, então, a mulher tinha um papel fundamental. Em primeiro lugar, cabia a ela prover a família de filhos, no maior número possível. Em segundo, garantir a sobrevivência dos mesmos e manter unidade da família com o seu trabalho.

Nos anos 90 orientei um trabalho a respeito do trabalho feminino nos primórdios da Quarta Colônia e me surpreendi com os dados que o aluno trouxe. Como as mulheres trabalhavam! No serviço doméstico, na roça, na horta, no estábulo de animais. E ainda pariam um filho atrás do outro: oito, dez, doze e até vinte. Um número que não estava na conta das suas mães e a avós, na Itália, pois lá as condições não eram propícias para uma família numerosa.

As autoridades civis e religiosas aprovavam tal projeto de economia e sociedade assim como o papel da mulher nesse modelo. Até a década de 1960 houve bonificação estatal para as crianças até os três anos de idade e a Igreja, por sua vez, dava reforço à estrutura familiar e estabelecia as normas morais, tanto exaltando a família numerosa quanto colocando a atividade sexual restrita à reprodução. Que os casais tivessem filhos, sim, muitos, mas que não se refestelassem com as delícias da carne.

As conversas das quais eu lembro eram justamente sobre isso: os desdobramentos comportamentais da adoção desse modelo de colonização. Muitos dos meus interlocutores tinham o pé na colônia, com avós e pais nascidos na região e, muitas vezes, até eles mesmos com vivência infantil nas colônias. Então falavam de suas famílias com muitos irmãos e nas mães se queixavam e se orgulhavam da quantidade de filhos. Contavam da trabalhareira, das diversas atividades domésticas e como as mães dividiam esses afazeres entre as crianças (as irmãs mais velhas se responsabilizando pelos mais novos, por exemplo), assim como do trabalho produtivo, comandado pelo pai.

A tirania dos pais era assunto recorrente (mas não abordado nos trabalhos acadêmicos apresentados nos congressos), um autoritarismo repartido entre pai e mãe. Muitas vezes, cabendo à mãe o exercício do poder de forma mais crua, isto é, era ela quem surrava, ficando ao pai algo simbólico de ser o suporte dessa estrutura doméstica.

Recordo em especial de uma pesquisadora esbelta e refinada relatando as surras monumentais que as mães praticavam no lombo dos filhos (em especial das filhas mulheres), enquadrando-as no serviço doméstico, para aliviá-las das tantas tarefas que eram obrigadas a exercer. Surras nas quais uma vara de marmelo muitas vezes era o instrumento. A pobre da menina apanhando da mãe e o pai ali perto, distante, como se isso não tivesse relação com ele. Afinal o mundo doméstico era espaço do poder feminino e o homem pouco se intrometia nessa esfera.

Lembro dessas conversas. E também do espanto que tive quando descobri que minha colega professora estava relatando também a sua vivência infantil: mulher que na infância foi surrada pela mãe, com a complacência do pai. Experiência de criança que sofreu os desdobramentos do modelo econômico da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Tudo em prol da pequena propriedade rural, base de um projeto socioeconômico exitoso!

 Nem sei os danos que isso acarretou para a guria. Nem sei que feridas (emocionais) ela carregou o resto da vida, mas tenho a certeza de que elas ficaram sem cicatrização por muito tempo. Se é que um dia cicatrizaram. Não esqueço a sua expressão, o que seus olhos gritavam.

– As coisas eram assim naquele tempo – dizia ela. – Minha mãe foi criada desse jeito. O pai, idem. Todos apanharam. E eles seguiram batendo nos filhos. Ninguém achava isso ruim. Meus irmãos até hoje me olham feio, quando eu digo o contrário. Eles dizem que desmereço a criação dada pelos nossos pais, que tanto se sacrificaram pelos filhos.

sábado, 25 de novembro de 2023

Ouvindo os alunos

 

Meu batismo de fogo no Magistério Estadual foi com as crianças do Ensino de 1º Grau, em Alvorada e Canoas.[i] Em 1983, no entanto, com minha aprovação em Concurso Público do Estado e a nomeação nas escolas porto-alegrenses Ana Néri (Bairro Minuano) e José Feijó (Bairro Rubem Berta) passei a lidar com outra clientela: a dos adolescentes e jovens adultos.[ii] Se antes ouvia os alunos falarem dos pais trabalhadores, agora escutava os próprios. Uma gurizada que trabalhava em supermercados (como empacotadores, carregadores ou, um caso excepcional, como gerente), nos escritórios (como boys ou nas atividades de limpeza), em serviços gerais (supervisionando a descarga de arroz), no trabalho doméstico (como empregadas e babás) e até no jogo do bicho.

Muitas vezes, na Escola Feijó, durante o horário do recreio, dava preferência a ficar no pátio com os alunos ao invés da sala dos professores, com meus colegas de ofício. O Feijó era uma escola de 2º Grau, frequentada por adolescentes de Alvorada, Parque dos Maias e Rubem Berta, e eu gostava de ouvir suas histórias. Além das atividades no mundo do trabalho, as histórias das suas vidas: os bailes comportados em salões paroquiais, a pregação severa dos pastores evangélicos e os namoros de sofá com vigilância familiar (que eu imaginava não existirem mais), assim como as histórias de namoros mais ousados, a dificuldade de acesso à métodos contraceptivos, pílulas anticoncepcionais tomadas de forma errada e temores em relação à possíveis gravidezes... Histórias variadas que me permitiam olhar o mundo de outra maneira.

Uma manhã (eu lecionava apenas no turno da manhã no José Feijó) um aluno narrou a sua atividade de entregador de bebidas na Sogipa (Sociedade de Ginástica Porto-Alegrense) e me espantei quando ele disse:

– Um clube de burguês. Só gente rica lá dentro.

Ele descreveu a sua entrada de Kombi pelo portão dos fundos do clube, os engradados de refrigerante e cerveja que ele descarregava no bar em frente às quadras de tênis e os tenistas, todos eles, vestidos de roupas brancas.

– As gurias e até as coroas com umas saias curtinhas mostrando até as calcinhas. Uau!

Uma realidade que eu conhecia bem, pois fora sócio do clube desde 1967 (quando chegara a P. Alegre com meus pais e irmãos). No início dos anos 70 até jogara tênis naquelas quadras, com roupa branca e tudo mais, e conhecera de perto a formosura das tenistas de saias curtas. No entanto, nunca me dera conta de que era um “clube de burguês”, apesar de ter ouvido um diretor da entidade afirmar (por volta de 1980), que não havia mais necessidade de um grande número de sócios com mensalidade baixa, pois a nova sede já estava concluída e o clube precisava reconfigurar o perfil dos associados, aumentando as mensalidades e privilegiando as classes A e B.

Nessa reconfiguração dos associados da Sogipa, claro, eu dancei. Deixara de ser dependente do pai (como fora nos anos 60 e 70), tornara-me sócio titular e não aguentei o valor das mensalidades com meu salário de professor. Abandonei o clube sem nunca regularizar minha situação na secretaria – envergonhado com a minha precariedade financeira, devo acrescentar.

Como assalariado, eu  vivia um “processo de proletarização” (mesmo na condição de professor concursado) e, na fala daquele aluno (negro e entregador de bebidas), estava bem colocado que aquele não era mais um clube para mim. Um aluno, por sinal, muito participativo em sala de aula, com intervenções preciosas a respeito do conteúdo. Um aluno a me indicar outros modos de olhar o mundo, assim como de me reposicionar na estrutura social.



[i] Fiz parte da legião de professores que ingressou no Magistério Estadual por meio de pistolão e ficou aguardando concurso para se tornar efetivo.

[ii] Em Canoas, tive alunos adolescentes. Mas, na minha lembrança, é a partir das escolas de P. Alegre que eles se impõem. É como se fosse um corte. O período nas escolas de Alvorada e Canoas ficou marcado pelo predomínio das crianças.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Pensar a revolução brasileira

 

As turmas de supletivo da Escola Ana Néri, constituídas por jovens adultos, foram uma batalha inglória. Sim, eu era um professor treinado apenas para atuar com alunos em idade regular. Não, eu não tinha preparo para lidar com jovens adultos, estudantes de mais de 18 anos que não haviam concluído o 1º Grau e que tinham com enormes dificuldades para ler e escrever.

Nessas condições, não era raro eu interromper uma explanação devido à dificuldade dos alunos em compreende-la, ficar parado no meio da sala e pensar: “E agora, o que eu vou fazer?” Os alunos não estavam entendendo coisa alguma e eu não sabia como continuar a aula, isto é, como tornar o conteúdo mais acessível.

Então olhava um aluno – um rapaz cansado, vindo do interior, do interior do município de Camaquã, boy num escritório do centro da cidade, almejando um emprego melhor – e sentia a necessidade de encontrar um jeito de continuar. Voltava ao quadro verde, escrevia com giz as palavras chaves – latifúndio, lavoura do café, economia de exportação, oligarquias centrais e periféricas, república oligárquica –, explicava cada uma delas e, juro, achava que estava resolvido. Estava pelada a coruja!

Quando terminava o turno, descia as escadas em direção à rua (a escola ficava bem acima do nível da calçada) e caminhava com um colega em direção à parada de ônibus. Às vezes encompridávamos o trajeto para conversarmos melhor. Ele e eu muito instigados pelo desafio de lecionar para aquela gurizada.

Ele, um professor um pouco mais moço que eu e muito melhor preparado, com melhor formação teórica. Nós dois nos achando pouco qualificados para o ensino de jovens adultos e pensando em como melhorar o nosso desempenho.

Numa noite em que resolvemos encompridar o caminho até a parada de ônibus porque a conversa estava boa, enveredamos para um papo de política (o que não era raro, educação e política sempre se embricavam na nossa perspectiva) e, dessa vez, com alguma irritação de parte a parte. Ambos acompanhávamos sem entusiasmo o modo conciliador como se dava a transição do Regime Militar para a Democracia. A derrota da emenda das eleições diretas para a Presidência nos incomodara, a escolha de Tancredo pelo Colégio Eleitoral não nos empolgara e o governo do Sarney, então, nos parecia patético.

Naquela noite divergíamos quanto aos rumos que a oposição petista devia tomar e então, de repente, meu amigo afirma:

– Assim não dá. É preciso pensar a Revolução Brasileira.

Eu me viro para ele e vejo seu rosto voltado para o alto. Olho na mesma direção, não enxergo coisa alguma e penso em perguntar se ele está falando sério. Mas não digo nada, escuto seus argumentos a respeito do “caminho revolucionário” e não sei o que dizer. No fundo, também achava que assim não dava. Mas era um delírio, um delírio completo, pensar em Revolução.

Alcançamos a parada, vimos o ônibus chegar e subimos. Passamos a roleta, sentamos no mesmo banco, e ele continuava nas alturas, isto é, falando das condições objetivas, as condições subjetivas, a correlação de forças entre a burguesia e o proletariado, as tarefas de um partido que se propõe a transformar a realidade...

Vejo que está chegando a minha parada, me despeço, desço do ônibus, ainda tenho cinco longas quadras para andar até chegar no meu apartamento e faço isso com a cabeça fervendo.

Lecionar no supletivo do Ana Néri foi uma batalha inglória. O confronto entre a formação limitada que recebi na Faculdade de Educação e um duro embate com a realidade daqueles alunos “carentes” (“carentes de formação básica”, era assim que se falava). Acho que diante dessa situação, divagar a respeito da revolução era um sonho que aliviava. Sei lá.

Seja como for, eu não chegava em casa desanimado. Pelo contrário.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Tesouro roubado

 

Entre 1985 e 89, lecionei numa escola da Cidade Baixa, a Escola Estadual de 1º Grau Olintho de Oliveira. Tinha me mudado para o centro da cidade e a transferência de uma das minhas matrículas para uma escola perto de casa não era só uma comodidade, mas também uma economia em passagens de ônibus.

Dessa maneira, comecei a lecionar pela manhã na Escola Feijó (quase no limite com Alvorada) e, à noite, no Olintho de Oliveira, na Rua da República. Uma escolinha que funcionava num casarão antigo, mais um prédio de construção recente (de tijolos vermelhos) nos fundos do enorme pátio. O doutor Olintho (a quem a escola homenageava no nome), além de médico e professor de Medicina, fora um intelectual atuante na vida cultural de Porto Alegre no início do século XX, e isso eu sabia vagamente (devido às leituras da coluna do Aldo Obino no Correio do Povo e de conversas com minha sogra).[i]

O casarão do falecido médico estava em condições tão precárias que não abrigava nenhuma sala de aula (todas as salas de aula estavam no prédio anexo), apenas a direção, a secretaria, o SOE, a cozinha, o refeitório e a biblioteca funcionavam ali.

Uma vez chegaram uns livros do IEL (Instituto Estadual do Livro), enviados pela DE (Delegacia de Educação), e eu me interessei por uma reedição d’O tesouro do Arroio do Conde, de Aurélio Porto. Sentado na frente da mesa da bibliotecária (numa sala do térreo do velho casarão, numa noite chuvosa), comecei a folhear o livro, me inteirar do assunto – um folhetim publicado em 1931, editado pela Globo em 1933, reeditado pelo IEL em 1983, com prefácio elogioso de Barbosa Lessa (Secretário de Cultura do Governo Amaral de Souza) – e a responsável pela biblioteca me disse:

– Leva pra ler em casa, Vítor. Só tu pra se interessar por isso.

E completou:

– Se gostares, fica com o livro. Ninguém vai sentir falta.

Pois eu o trouxe para casa, levei um tempão para ler do início ao fim... e nunca mais devolvi. Até hoje tenho o livro como uma espécie de tesouro roubado desse mundo escolar que frequentei. Um folhetim romântico (de “sabor popular”, diz Barbosa Lessa), na qual uma moçoila de 15 anos, numa estância na região de Guaíba, no ano de 1777, desencadeia paixões em dois marmanjos. Um deles, um contrabandista semibárbaro (filho de Jerônimo de Ornellas); o outro, um tenente do Regimento dos Dragões, educado em Academia Militar e com atos de bravuras na defesa da Colônia de Sacramento. Dois marmanjões caídos de amores por uma guria.

Além dessa trama romântica, uma narrativa da formação da sociedade rio-grandense (a mistura dos bárbaros do campo com os conquistadores europeus, mediados pelo amor de uma donzela) e a tentativa de criação de uma lenda em torno disso. Um resultado sofrível, do meu ponto de vista, mas nem por isso menos interessante.

Com a imaginação povoada por essas fantasias gauchescas e românticas, eu atravessava o pátio entre o casarão e o prédio anexo e ia dar aulas de História para as turmas de 5ª a 8ª séries. Algumas vezes falava do passado sul-rio-grandense – as lutas de fronteiras, a presença dos indígenas, a figura do gaúcho, as primeiras estâncias –, mas nunca sobre O tesouro do Arroio do Conde. Essa estranha preciosidade eu sempre guardei só para mim.



[i] Aldo Obino (1913-2007) fez crítica de arte no Correio do Povo (de 1938 a 1984) e era uma referência para quem se interessava por arte (mesmo não concordando com sua perspectiva conservadora). Além disso, às vezes historiava a vida cultural porto-alegrense e recordo que num dos seus artigos citou o papel de Olintho de Oliveira (1865-1956) na criação da Academia Rio-Grandense de Letras (1901) e do Instituto de Belas Artes (1908). Minha sogra, dona Célia (nascida em 1912), era leitora voraz do Correio do Povo (das colunas de Obino inclusive) e conversámos muito a respeito da vida cultural da cidade. A partir das suas observações (muitas delas oriundas da sua vivência) fui aprofundando meu entendimento sobre o passado porto-alegrense e, numa das nossas conversas, entrou o doutor Olintho – que ganhou relevo para mim a partir do momento em que comecei a trabalhar na casa onde ele morou algum dia.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Motorista bonita e atraente

 

Peguei um aplicativo na saída do shopping e entrei no carro fazendo comentários a respeito do tempo: as temperaturas altas, as chuvas que não acabam, essas coisas. Banalidades. Mas logo percebi a extrema beleza da motorista – mulher loura de cílios longos, unhas grandes e pintadas, figura de capa de revista – e me calei. Vê só o que pensei: “Ela vai achar que estou dando em cima”. Me aquietei e fiquei olhando pela janela. Sete quilômetros entre o shopping e o meu apartamento.

Tenho escutado tanto a respeito de mulheres que se sentem abusadas, agredidas, humilhadas, que nem sei mais avaliar. Às vezes acho exagero por parte delas, mas vá saber. Melhor estar atento e ter cuidado.

Então ouvi a motorista falando e demorei a entender que não era comigo, mas com alguém num aplicativo do celular fixado no painel do carro. Uma conversa que eu não compreendia, pois o som era baixo, de repente aumentava exageradamente e depois voltava a diminuir. Quando o som aumentou novamente, a voz gritando dentro do veículo, a motorista se desculpou e disse que era coisa do aplicativo. “O som não é bom”, ela falou, “não é equilibrado”. E explicou que era um grupo de motoristas, mais de cem, na cidade e na região, e que eles estavam em contato o tempo inteiro. Se algum fosse assalto e agredido, eles logos socorriam. Se sumisse, por qualquer razão que fosse, eles logo encontravam. Acionavam Deus e o Mundo.

Observei mais uma vez o perfil bonito e atraente da motorista e pensei se ela estava me avisando de alguma coisa. “Tá me tomando por bandido ou abusador?”, pensei. Eu estava de bermudas, barba de três dias, e quis que a viagem terminasse logo. A mulher seguia falando e explicava os cuidados que tinha de tomar, especialmente fazendo horário noturno.

Eram nove da noite e eu só pensava se eu pisara na bola, dissera alguma coisa indevida, sei lá, os protocolos de convívio social se complicaram, as palavras passaram a ser alvo constante de vigilância (para identificar e coibir linguagens racista, machista, discriminatória), eu às vezes não policio minha fala... e bem posso cometer algum deslize.

A motorista continuava a conversa a respeito do grupo, que tinha como símbolo uma caveira e não fazia distinção de sexo, orientação sexual nem raça. “Afinal é tudo igual”, ela dizia, “por trás da pele, do sexo, é só osso e esqueleto, uma caveira, não é mesmo?” E eu respondi que sim e ela emendou, animada: “Um grupo preocupado com segurança de todos”. E fui percebendo que não tinha nenhuma mensagem sub reptícia para mim. Era apenas a fala de uma mulher entusiástica com a sua atividade profissional, certamente feliz por estar na noite, conversando com seus colegas de profissão e criando uma rede de comunicação fraterna sobre o traçado da cidade.

Quando ela estacionou perto do meu prédio, desci aliviado. Era uma motorista bonita e atraente, a mais bonita que já encontrei até hoje. Engraçado eu ter achado que pisara na bola e ela estava dando o troco... Devo andar muito assustado, ressabiado e imaginando coisas.