segunda-feira, 16 de novembro de 2020

As voltas que o mundo dá (memórias de professor).

        As primeiras greves do Magistério Estadual, entre 1979 e 1987 tinham uma dinâmica que depois se perdeu. Durante o período em que as aulas estavam paralisadas, havia uma agenda cultural para os professores, dentro das escolas, feita de palestras e debates. Isso se perdeu após 87, quando o Governo Pedro Simon rasgou o acordo que estabelecia o piso de 2,5 salários mínimos para a categoria e colocou o Magistério de joelhos. Nunca mais a categoria foi a mesma. Nem as greves. 
        A partir daí, os professores descobriram que eram assalariados e não “mestres” como muitos ainda se consideravam. Não vamos governar apenas para atender as demandas do Magistério, me disse um peemedebista na época. As greves se tornaram restritas às reivindicações salariais e não me recordo de agendas culturais a partir daí. Ou, pelo menos, até 1991, quando deixei de lecionar no Magistério Estadual. 
       Digo isso porque lembrei de uma palestra que fui escalado a dar, numa das greves dos anos 80. Lecionava na Escola Estadual Ana Néri, no Parque Minuano, em Porto Alegre, no turno da noite (Supletivo de 1º Grau), e nos dividíamos para cumprir um roteiro além da pauta econômica. Era uma escola modesta, constituída por pavilhões de madeira, bem ao estilo das antigas brizoletas. O tema que me coube era “o socialismo” e me utilizei de um livro do sociólogo Paul Singer – O que é socialismo, hoje (Editora Vozes, 1ª ed. 1980) – para estruturar a conversa.


       Resumindo, o socialismo não era mais entendido como no tempo do Manifesto, voltado prioritariamente para atender às demandas materiais dos trabalhadores, e, nos dias atuais, incorporava novas reivindicações como as liberdades democráticas e os direitos políticos. Não bastava atender às necessidades materiais, era necessário democratizar os processos de decisão e reduzir o autoritarismo (existente nos modelos soviético, chinês e cubano). 
       Acho que o essencial era isso. Mas não sei se tive competência para apresentar com clarezas essas formulações. Lembro que era uma noite de outono, ficamos reunidos em círculo numa sala de aula (com chão de madeira gasto e paredes e teto com pintura desbotada) e terminei a conversa empolgado. O que faltou de clareza conceitual, compreensão mais ampla das lutas político-sociais do século XX, na certa compensei com entusiasmo. 
       Houve algum debate e, ao final, um colega e eu saímos caminhando pela rua e continuamos a discussão. A parada de ônibus era logo na esquina da escola, mas seguimos a pé várias quadras, para termos mais tempo de conversa. Meu colega e amigo era sociólogo, tinha vocação para filósofo, e era rigoroso quanto aos conceitos, os argumentos e a lógica dos debates. Muito mais qualificado do que eu teoricamente, ele ponderava a respeito das tarefas para a concretização do almejado socialismo. 
       – E o que a esquerda brasileira – ele perguntava – faz em relação a isso? 
       Eu não sabia o que responder e me sentia desafiado. Não era militante de partido político, apenas um sindicalista (se bem que, na época, o CPERS ainda não era sindicato) e eleitor entusiástico do PT. Achava que o partido estava comprometido com o socialismo e dizia o que se falava na época: 
       – Ora, não há tarefas específicas, não há um projeto claro. Há uma luta e as coisas vão se dar ao longo desse processo. 
       Eu dizia essas coisas vagas, mas que pareciam indicativos de um caminho a trilhar. Que conversa!         Não perdi o contato com esse amigo, mas mudamos. Em meados dos anos 90, nos reencontramos professores universitários – numa universidade do interior do Rio Grande do Sul – e ele não estava mais preocupado com o socialismo e se distanciava do assunto torcendo o nariz. 
       Dois anos atrás, na nossa última conversa, ele era um intelectual que equiparava nazismo com socialismo, vaticinava que a esquerda alimentava um projeto totalitário de Estado e seguia nessa toada. Era um cruzado na defesa da democracia e eu ri. Cadê o intelectual rigoroso com os conceitos do tempo de Magistério Estadual? Agora, eu era um esquerdista totalitário e ele, um autêntico democrata.
       Que diferença daquela noite em que saímos de uma escola de madeira, no Parque Minuano, e caminhamos quadras e quadras para encompridar a conversa! Discussão animada a respeito do socialismo, suas possibilidades ou não, e que hoje ele reduz a um projeto totalitário e ponto final. 
       As voltas que o mundo dá – penso até hoje, tentando entender o andar das carroças, como as abóboras vão se acomodando e vamos nos reposicionando na vida.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Althusser e sala de aula (memórias de um tempo de formação)

           O filósofo marxista Althusser era muito lido no tempo em que cursava História, na UFRGS, nos anos 70. Seus livros não faziam parte da bibliografia de nenhuma disciplina nem eram citados em sala de aula, mas liamos. O DAIU (Diretório Acadêmico dos Institutos Unificados) certa vez mimeografou um dos seus ensaios e o debatermos num grupo de estudos, aos sábados, pela manhã.

O curso de História funcionava próximo ao Parque da Redenção, o AI-5 estava em vigor e tínhamos um colega agente do DOPS, que acompanhava as atividades do diretório. Ele não participava desse grupo de estudos sobre Althusser, mas nos observava com atenção (lia o mural de avisos do diretório) e nos sinalizava a respeito do lugar que ocupávamos no mundo (não sem alguma ironia ou mesmo deboche).

Meu entendimento de Althusser não era dos melhores, eu seguia com dificuldade aquela conversa toda, mas nem por isso com menos entusiasmo. Encerrada a leitura daquele ensaio (não recordo o título, mas era sobre a leitura de O Capital), iniciei a leitura de um de seus livros mais famoso: Os aparelhos ideológicos do Estado (que comprei na CEPAL, uma cooperativa de estudantes que havia na Avenida André da Rocha).

O texto foi outra pedreira difícil de enfrentar, mas creio ter entendido o sentido geral, especialmente o que se referia à escola, essa instituição para a qual eu me preparava para atuar. O desânimo foi total. Se Althusser estava correto na sua abordagem, o que eu iria fazer como professor: ser mero reprodutor da ideologia do Estado burguês? Isso não estava nos planos.

Um dia, o professor Elmar Manique da Silva nos ouviu conversando sobre isso em sala de aula, num trabalho de grupo (a respeito da Revolução Industrial, o estabelecimento do modo de produção capitalista), puxou uma cadeira, sentou entre nós e disse e repetiu para que entendêssemos bem:

– A escola não é uma instituição fechada como Althusser entende. Não é simplesmente um aparelho de reprodução dos valores capitalistas e nós, professores, meros instrumentos para a perpetuação do domínio do Capital.

E continuou:

– A escola é uma instituição aberta a tensões e lutas entre as mais diversas forças ideológicas, nem todas em sintonia com status quo, e há muito o que fazer dentro da escola.

Foi um alívio.

Quando iniciei a lecionar (em 1978, num grupo escolar em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre), Althusser ainda era uma referência, mas já desconfiava que a escola era muito mais do que um aparelho ideológico monolítico.

Levei mais alguns anos a entender, de fato, a dimensão da instituição da qual estava inserido – e professor de História ainda por cima, isto é, de conteudos carregados de ideologia. Constatava que não era uma simples engrenagem de um maquinário de reprodução dos valores capitalistas e, sim, alguma coisa viva, atuante, e os alunos igualmente. A gurizada (era para a quinta série do primeiro grau que eu lecionava) revelava-se portadora de um universo próprio e reagia ao que era solicitado (leituras, exercícios, prova). Alguns faziam cara feia, protestavam, e eu ia me ajustando ao ritmo que eles propunham (e também às orientações da direção da escola, claro). Me ajustava e aprendia.

Creio que naqueles dois anos em Alvorada alguma coisa foi mudando dentro de mim. Os textos de Althusser continuavam guardados na estante, sempre incomodando, querendo me reduzir a um autômato do filme Metrópolis (do Fritz Lang, 1927), os operários que marcham e trabalham, sem expressão alguma no rosto, meras engrenagens de uma grande cidade soturna. 

Cena do filme Metrópolis.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Dando uma banda na Champs Elysées

Alguém já escreveu que a viagem continua, mesmo depois de voltarmos para casa. Acho que foi o poeta Celso Gutfreind. Eu continuo viajando. Há um ano atrás, dei uma banda pela Avenida Champs Elysées e até hoje lembro o que vi, o que senti.

Cheguei a Paris vindo de Roma, enturmei com um grupo de professores e alunos da UFN (Universidade Franciscana) e cumprimos um extenso programa de visitas a locais de moda e de arte (o objetivo da excursão). O museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vitton, o Louvre, o D’Orsay, uma exposição sobre Maria Antonieta, outra sobre Van Gogh, o Palácio de Versalhes e assim por diante. A Catedral de Notre Dame estava fechada, devido ao incêndio do ano passado.

No primeiro dia, após a visita ao antigo atelier do estilista Yves Saint Laurent, saímos pela margem do Sena – Bebeto, Rose, Elsbeth, Lia e eu – a ver o que a cidade oferecia, naquele ensolarado e frio dia de outono. Guiados pelo professor Bebeto, o único que conhecia Paris, fomos descobrindo a cidade. A ponte Alexandre III sobre o Sena, a Avenida Winston Churchill (de um lado o Grand Palais; do outro, o Petit Palais) ocupada por sofisticados carros de food truck, com mesas e bancos sobre o asfalto. Já passava do meio-dia e a fome bateu.

Escolhemos pratos de frutos do mar (com camarões, salmão, ostras) e champanhe em taças de plástico. Nada mal para brindar a Cidade Luz, que cada um de nós enxerga a partir de um imaginário infinito, aonde cabe uma trilha sonora de Stravinsky, outra de Gershwin, um romance de Balzac, outro de Sartre ou Françoise Sagan, um filme de Godard, outro do Woody  Allen, e por aí vai.

Terminada a refeição, seguimos em direção a Champs Elysées e lembrei do filme Paris está em chamas, filmado em P&B, uma ficção ambientada no final da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados chegam a Paris... Com cenas de documentário: Charles de Gaulle, cercado pela multidão, caminhando pela famosa avenida. Vá entender as lembranças de um professor de História! Filme assistido na década de 60, quando eu era guri de ginásio e cantava a Marselhesa nas aulas de francês.

Mas viajar é assim: a imaginação vai junto; os filmes, os livros e os discos também. E apesar de vibrante, fascinante, a Avenida Champs Elysées é também assustadora. A riqueza grita. Lojas de grifes famosas escancaram suas vitrines (Dior, Louis Vitton), há pequenas filas para entrar, e os seguranças (engravatados) acompanham atentos o movimento. E logo ali, quase vazia, uma perfumaria árabe (Arabian Oud), a respeito da qual a Rose me explica:

– Aqui se vendem frascos de mil dólares.

Paramos na vitrine, o vigilante até parece não nos ver, olhamos, rimos (“Isso não é pra nós”) e seguimos adiante. E vemos, ajoelhada na calçada, o corpo estendido, a cabeça coberta, uma mendiga estender um copo de café e pedir esmolas. Chocante. A Rose pega minha máquina fotográfica e registra a cena. A presença sombria daquilo que os estudiosos franceses apontam: a desigualdade social se multiplica, Paris se torna um território dos muitos ricos (decorrente da globalização, da desindustrialização, da diminuição dos setores médios) e a massa dos muito pobres se expande, alcançando dimensões que o Estado do Bem Estar Social desconhecia.

Mas não estávamos ali para fazer sociologia. Apenas passear, flanar como personagens baudelairianos (“De que valem as leis do que é justo ou injusto?”, escreveu o poeta, em "Lesbos"), e arrisco dizer que éramos como o lírico Baudelaire, escolhidos pelos deuses para cantar os encantos do mundo.

Peregrinamos até o Arco do Triunfo, devidamente embasbacados como convém a quem chega a Paris, e depois regressamos pela mesma calçada da Champs Elysées. As mesmas vitrines, cafés. As mesmas árvores, mendigos. Voltamos a Avenida Winston Churchill (o Grand Palais de um lado, o Petit Palais do outro), a ponte Alexandre III, e compramos bilhetes para navegar no Bateau Mouche.

Mas isso já é outro passeio, outro filme, outras impressões. Uma crônica para outro dia.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Escola partida

           Não é um livro fácil, esse que o professor Ronai Rocha escreveu: Escola partida: ética e política na sala de aula (Editora Contexto, 2020, 160 p.). E a dificuldade não vem da linguagem nem da apresentação dos argumentos. Afinal, é livro de linguagem clara, elegante e precisa quanto aos conceitos, com tiradas de humor e também de poesia. Uma leitura deliciosa, que, ao menos no meu caso, provocou inusitadas gargalhadas. Difícil não rir de certas provocações do autor direcionadas aos educadores progressistas.

A dificuldade vem da disposição inicial do autor: escutar os argumentos do Escola sem Partido e leva-los à sério. Mesmo considerando equivocadas as premissas do movimento (o modo de articular moral e religião), o autor considera o Escola sem Partido um sintoma do que ocorre na escola brasileira: a presença excessiva do debate político na sala de aula. Uma presença que provoca chateação em alguns pais de alunos e coloca uma questão urgente: a de discutir a respeito da ética e da política em sala de aula e, dessa maneira, a de pensar um código de ética do professor, capaz de resguardar as crianças e os adolescentes da presença desse assunto que deve ser exclusivo dos adultos: a política.

Um verdadeiro terreno minado, esse em que o autor entra. Ora dar ouvidos a um movimento sabidamente instrumentalizado pelo neofascismo! – escutei numa livraria. Ora querer afastar a política da sala de aula e fazer da escola um campo alheio às discussões que incendeiam o País!

“O Brasil está partido”, afirma o autor, e é “no meio dessa tragédia que estamos vivendo”. Essa divisão envolve a escola, adentra a sala de aula e o autor entende que foi longe demais. Política é tarefa de adultos em relações de igualdade e não entre adultos-professores e crianças-alunos, em relações claramente assimétricas. A partir daí, Ronai Rocha postula a defesa da escola como “um território neutro, imparcial, porque o coração das crianças é sempre grande demais para abranger apenas uma igreja ou uma pátria”.

Em defesa da sua proposta, o autor se vale das palavras inspiradas de Cecília Meireles (que militou a favor da Escola Nova, nas décadas de 1930 a 50): “a escola tem de ser o território mais neutro do mundo. Pode ser que os homens de hoje tenham o direito de combater outros homens de hoje. Mas, porque assim é, não vai se admitir que as crianças de hoje devam preparar-se, desde já, para, quando forem grandes, continuarem as lutas que seus pais não tiveram tempo de concluir”.

Uma proposta polêmica, que tanto incomoda os professores progressistas (que entendem a educação como ato político) quanto os conservadores (que almejam as afirmações da moral e religião dominantes norteando a escola). Uma proposta muito distante da sensibilidade atual, tanto à esquerda quanto à direita, mas nem por isso menos necessária – caso se pretenda uma escola que cumpra o seu papel essencial: o de transmitir os conhecimentos necessários para o jovem adentrar no mundo adulto. Uma escola que ensine e eduque, antes de politizar as questões do seu tempo. Uma escola capaz de acolher as crianças e os adolescentes de diferentes orientações religiosas, morais e políticas.

sábado, 26 de setembro de 2020

O poeta John Keats (crônica de viagem e cinema)

          Assisti ao filme Brilho de uma paixão, de Jane Campion, que aborda a relação amorosa vivida entre John Keats e Fanny Brawne, e lembrei de Roma, isto é, da casa em que o poeta morou em Roma. Um prédio de três andares na Piazza di Spagna, ao pé direito da Scaliata di Spagna (Escadaria Espanhola). Nessa casa, Keats viveu os últimos meses de sua vida (de novembro de 1820 a fevereiro de 1821). Tinha 25 anos quando morreu.

Piazza di Spagna. Ao fundo, a Scaliata di Spagna. À direita, o prédio onde morou John Keats.

Atualmente, funciona no local o Keats-Shelley Memorial House. Segundo o texto de divulgação do Memorial, o seu quarto é um “santuário” dedicado à sua trágica história e extraordinário talento. Um santuário recriado, pois nenhum dos móveis é original do período em que o poeta ali esteve – doente e acamado na maioria dos dias, devido à tuberculose.

Não visitei a casa. A Piazza di Spagna era um dos meus caminhos, mas quando decidi entrar, estava fechada. Não acertei o horário. Deu, no entanto, para ir ao Caffè Greco, ali perto, que o poeta frequentou. O café (em funcionamento desde 1760) é muito requisitado por turistas (vi dezenas de japoneses fazendo fila na porta) e aprendi a esperar o final do dia para frequentá-lo, hora em que diminui consideravelmente o público. Tomava café no balcão, acompanhado de um doce delicioso que não lembro o nome.

Caffè Greco, na Via Condotti.

O filme de Jane Campion é uma reconstituição belíssima (e ficcional, claro) da relação entre Keats e Fanny e me foi indicado (num curso virtual sobre história da arte) como exemplar do ideal de amor romântico: platônico e idealizado. Keats conhece Fanny em 1818 (ele com 22 anos; ela, 18) e o rapaz acaba de publicar Endymion. Os poemas provocam profundo impacto na moça e ela lê, extasiada, versos como esses:

“O que é belo há de ser eternamente

Uma alegria, e há de seguir presente.

Não morre; onde quer que a vida breve

Nos leve, há de nos dar um sono leve

Cheio de sonhos de calmo alento.”

Keats não era de família rica, havia deixado a Medicina para se dedicar à literatura e não tinha rendimentos para sustentar uma família. A mãe de Fanny avisa a filha da condição do poeta, desencorajando-a de se afeiçoar ao rapaz. Mas a moça insiste e a mãe deixa rolar. Um amigo também avisa o poeta que ele não tem dinheiro para casar (para prover a moça de renda francesa, segundo o personagem do filme), porém não é ouvido. O jovem casal se deixa embalar pelas afeições, amores (sempre platônico), idealizações de felicidade, muita poesia e não tem volta. É comovente.

A mãe, da sua parte, manobra ternamente a filha, protela o casamento para depois da viagem do poeta a Roma (tudo isso segundo o filme, mas de acordo com o que indicam os biógrafos), intuindo que o rapaz de saúde delicada não durará muito tempo.

No filme, o poeta não parece muito frágil de saúde (está até bem corado), mas, em 1820, quando noiva secretamente com Fanny, a tuberculose está avançada e os amigos temem o pior. Tanto é verdade que são esses amigos que financiam sua viagem e estadia em Roma, com esperanças de que o inverno menos rigoroso da Itália ajude o rapaz.

Doce ilusão dos amigos. A doença avança durante a viagem e a poeta morre quatro meses depois. No filme, nenhuma alusão à consumação do casamento e a ultrapassagem da barreira platônica. Na cena final, num plano geral da Piazza di Spagna, quatro homens de roupas escuras carregam um caixão sobre os ombros, descem alguns degraus da Escadaria Espanhola e conduzem o corpo até um carro fúnebre.

Na Piazza di Spagna, caminhando entre o Memorial dedicado a Keats e o Caffè Greco, eu imaginava que o poeta fora um desses ingleses que gozaram as delícias das viagens culturais pela Itália, o famoso Grand Tour... Ledo engano. Eu só conhecia a sua poesia e o filme me deu outra visão da sua trajetória.

Em Roma, Keats pouco gozou os prazeres da cidade. Definhou (passou boa parte do tempo, acamado), escreveu e sonhou. E talvez tenha escrito uma daquelas cartas maravilhosas endereçadas a Fanny, que certa vez escutei uma colega de mestrado (numa disciplina de Teoria da Literatura) se referir.

 

Obs.: O filme Brilho de uma paixão tem como título original “Bright Star” e remete a um poema de Keats, endereçado a Fanny. O roteiro e a direção (primorosos) são Jane de Campion, com Abbie Cornish e Ben Whishaw nos papéis principais. Austrália / Reino Unido, 2009, 119 min. No catálogo do Now, dublado.

Os versos de John Keats citados na crônica são tradução de Augusto de Campos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Rua da Praia

             David Coimbra produziu uma bela crônica sobre a Rua da Praia de décadas atrás – “Uma nostalgia de Porto Alegre” –, na edição de Zero Hora do último final de semana (dias 12 e 13 de setembro). Suas lembranças de menino passeando com a mãe, professora do Magistério Estadual, no centro da cidade e os dois indo lanchar nas Lojas Americanas, por volta de 1970. Comer um sanduíche cortado em triângulos e beber o suco de laranjas espremidas na hora.

Naquela época, a escada rolante das Americanas ainda era novidade, a Galeria Malcon, um local chique (“onde as gatinhas ondulavam de minissaia”, diz o cronista), a Casa Masson tinha fama de classuda e a Livraria do Globo reunia os intelectuais ilustres da cidade.

Acho que conheci essa Rua da Praia glamurosa que o cronista descreve. Cheguei a Porto Alegre em 1967, com onze anos de idade e me embasbaquei com tudo isso. Cumpri o roteiro obrigatório de todos os interioranos e fui conhecer a escada rolante das Americanas. Passeei pela Rua da Praia com pai, mãe e irmãos, tal qual fazíamos em Pelotas, na Rua XV de Novembro, mas logo meus pais perceberam que as duas cidades tinham ritmos diferentes. Não dava para repetir os mesmos hábitos.

Porto Alegre ganhava um novo padrão urbano e os porto-alegrenses logo nos avisaram disso. Em 1970, a Carris retirou os bondes de circulação e penso que esse foi um ponto de virada. Os bondes indicavam uma Porto Alegre tradicional, provinciana, e não se adequavam aos ares de metrópole que a cidade pretendia.

“Uma cidade que não existe mais”, conclui David Coimbra. Existe uma outra Porto Alegre, acrescento, não menos fascinante. Diferente, isso sim. Uma Porto Alegre e uma Rua da Praia que eu acompanhei mudar ao longo dos anos 70 e 80.

Vim para Santa Maria em 1991 e penso que essa distância me permitiu ver a Capital com olhos de simpatia. Sem viver o seu cotidiano, me tornei um visitante ocasional e sou desses que não perdem a oportunidade de descer “a colina da Praça Dom Feliciano” (expressão usada pelo cronista) e cruzar a Rua da Praia até a Casa de Cultura Mário Quintana.

Frequento o café do segundo andar da antiga Livraria do Globo (hoje o prédio é ocupado por uma filial das Lojas Renner) e gosto de observar a rua através das suas janelas. Observar, lembrar e constatar: Porto Alegre se reinventa.

A fauna humana continua variada e tanto se vê os apressados, os molambentos quanto os que caminham calmamente (talvez flanando como antigamente) e os engravatados, as senhora bem vestidas, as jovens faceiras. Na esquina da Rua da Praia com a Borges – a Esquina Democrática (ainda se usa essa expressão?) – pode-se observar o vendedor ambulante e o militante político, ambos vendendo o seu peixe. E arrisco dizer que tudo continua acontecendo na rua da Praia. Inclusive crianças de mãos com a mãe ou o pai, embasbacadas com o movimento, os prédios, as vitrines, sonhando com um sanduíche e um suco de frutas... numa lancheria que eu sequer faço ideia.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

A eterna Inês de Castro (crônica de viagem)

           Em 2017, visitei o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e fiquei impactado com o quadro “Súplica de Inês de Castro”, de Vieira Portuense, um pintor lusitano. Uma tela que tematiza um dos episódios do caso político-amoroso vivido por Inês de Castro e D. Pedro, no século XIV. 

"Súplica de Inês de Castro", de Vieira Portuense.

Na tela, Inês suplica ao rei Afonso IV (avô de seus filhos) pela vida das crianças. Essa é a explicação colocada ao lado do quadro. Inês é amante do príncipe herdeiro (D. Pedro), vive em Coimbra (no Paço de Santa Clara) e tem três filhos. Na cena do quadro, ela não pede pela sua vida, pois na certa entende que foi considerada uma ameaça à Coroa, sua morte está decidida (pelo rei e seus conselheiros) e dessa ela não escapa.

A pintura é de 1803, “afetada” por uma “teatralidade quase operática” (texto da legenda do quadro, no museu), as roupas e a mobília não correspondem ao período dos acontecimentos (o século XIV, o ano de 1355), mas a dramaticidade é tocante.

Os olhos e as mãos de Inês são veementes, o rei está comovido, e ao fundo dois homens sombrios observam a cena. Provavelmente dois aristocratas, conselheiros do rei, que, com suas espadas, darão cabo da vida da mulher. Os filhos serão poupados.

Não sei o motivo desse quadro ter me impressionado tanto e de não o esquecer esses anos todos. Talvez porque represente uma das histórias mais famosas do repertório lusitano. Dessas que escutei na juventude (no colegial, na universidade) e sobre a qual conversei com minha mãe (neta de português e que muito cultivava as coisas do mundo luso).

Parei diante do quadro e a comoção que vivi deve ter sido semelhante à que os portugueses experimentaram, quando a tela foi reapresentada em Lisboa, depois de décadas sumida. O quadro constou entre os tantos objetos que a Família Real levou para o Brasil e ficou por muito tempo no palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, inclusive durante o reinado de D. Pedro II. Depois sumiu.

Reapareceu em Paris, num leilão, e foi arrematado pelo Estado português pelo valor de 257 mil euros. Quando foi exposto pela primeira vez no Museu de Arte Antiga, em 2009, teve 8.200 visitantes no primeiro mês - o que bem revela a permanência da comoção dos portugueses com o destino da infeliz amante.

Essa semana, li o romance de João Aguiar, Inês de Portugal, que aborda o episódio e lembrei do quadro. É mais uma das tantas obras de ficção (desde Os Lusíadas) que tematiza o caso. Adquiri o livro de João Aguiar logo após sair do museu e não tinha lido até então.

Romance curto, enfoca a fúria de D. Pedro já estabelecido como rei (com o título de D. Pedro I), disposto a vingar a morte da amante e obrigar a corte (a mesma corte que concordou com o assassinato) a reconhecer Inês como rainha. O translado do corpo da amante de Coimbra a Alcobaça, o enterramento em local oficial de reis e rainhas, a perplexidade dos poderosos de então, os aristocratas e o alto clero. Mas sem a cena do beija-mão do cadáver (episódio talvez improvável).

          Trágica história, belo livro! Foi como se voltasse ao Museu Nacional de Arte Antiga. E até mais do que isso, como se conversasse com minha mãe, escutasse novamente meus professores e dialogasse, enfim, com todos aqueles que me revelaram a cultura lusitana. Um mundo fascinante, de riquezas intermináveis.

Livro citado: AGUIAR, João. Inês de Portugal. Alfragide: Leya / Bis, 2008. 112 p.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Capa Preta, o Coisa Ruim: Satanás

             Em 1972 tive um encontro com Satanás. Ou melhor, o Coisa Ruim surgiu diante de mim como uma possibilidade real.

– O Demônio existe – me disse a Irmã Janete numa conversa privada, no pátio do Colégio Santa Clara, em Porto Alegre.

Ela me contou como ele tentara diversas freiras num convento da região colonial do Rio Grande do Sul. Ele, o Capa Preta, até deixara alguns arranhões nas religiosas. Mas não lembro se a Irmã Janete fora uma delas. A conversa era séria. A irmã estava falando para o meu bem, ela garantiu diversas vezes. Me avisando dos perigos da vida. Que eu não me arriscasse em questionar a existência das entidades malignas.

Naquele tempo eu recém completara 17 anos e há pouco mais de um ano integrava um grupo de jovens que se reunia nos fundos da igreja São Pedro, no bairro Floresta, em Porto Alegre. A Irmã Janete e o Padre Candinho eram os responsáveis pelo grupo; ela, representando a Igreja tradicional (freira do Colégio Santa Clara, que ficava na rua atrás da igreja), o Padre Candinho, a Igreja progressista.

A Irmã Janete com um discurso onde cabia o Satanás como representação do Mal e agente sobrenatural que se intromete entre os homens para os tentar e desencaminhar. O Padre Candinho, por sua vez, citando as resoluções da Conferência de Medellín (1968) e indicando uma teologia que se confrontava com a da Igreja tradicional. Uma teologia que refletia os dramas das sociedades latino-americanas (as desigualdades sociais, a opressão às classes populares, a existência dos regimes militares) e na qual o Mal não ganhava a representação do Satanás. O Mal era constituída pelas estruturas político-sociais que obstaculizavam a libertação dos homens.

O grupo de jovens a que eu pertencia se formara no final dos anos 60, no vácuo criado pela desestruturação das antigas organizações de juventude católicas (JOC, JUC, JEC) devido ao embate com o Regime Militar. Essas organizações se posicionaram contra o Golpe de 64, os governos militares e por isso foram desmanteladas. Nessa conjuntura surgiu o Movimento Estudantil Floresta (MEF), despretensioso grupo de jovens, sem maiores vinculações político-religiosas além da sua ligação com a paróquia São Pedro.

Segundo a Irmã Janete eu apresentava indícios de estar me desencaminhando e me chamara para uma conversa séria (sábado de tarde, no pátio do Colégio Santa Clara). Não recordo os detalhes da sua fala (o que ela entendia como o meu desencaminhamento) e ficou apenas a história do Coisa Ruim tentando as freiras e a ameaça de que ele bem poderia aparecer para um adolescente que estava questionando o caminho do bem.

Resisti bravamente à conversa da Irmã e nem sei como fiz isso. Lembro apenas que prendi o olho em algum ponto do pátio do colégio, iluminado pela luz da tarde, e ouvi calado. Não aceitei os argumentos da freira, mas não refutei. Saí de lá zonzo, as pernas bambas.

E talvez tenha sido ali a minha ruptura com a juventude católica e, com o tempo, com a própria Igreja.


No ano seguinte, 1973, o Padre Candinho deixou a paróquia, veio um novo sacerdote, Padre Zeno, que não se afinou com o que ainda existia do grupo de jovens da paróquia. Eu não participava mais e ouvia as notícias de longe.

Era um padre conservador e entrou em conflito com os jovens remanescentes. Deixou o grupo morrer, como escreveu mais tarde: “Era um grupo que já não servia mais e que era impossível reformar. Aplicamos a técnica da eutanásia (...) fizemos o grupo morrer lentamente, sem dor.”

No meu entendimento, era a Igreja tradicional que estava ocupando o espaço. Uma Igreja mais afinada com aquela que a Irmã Janete representava. Uma Igreja que talvez encampasse o discurso da existência de Satanás e o utilizasse como instrumento pedagógico.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Na sacristia da Catedral de Toledo

Um dos grandes quadros de El Greco, “O espólio” ou “Desnudamento de Cristo” (1579), se encontra na sacristia da Catedral de Toledo. O Cristo com uma túnica vermelha, cercado por figuras pouco amistosas, sendo preparado para o despojamentos das vestes e o início do processo de tortura e morte a que foi condenado pelo governador romano.
Sacristia da Catedral de Toledo.
Um quadro impactante. Quando entrei na enorme sacristia, minha atenção foi atraída pela tela. Como fazia visita guiada, logo foi indicado o título do trabalho, feita uma breve explanação a respeito e a pintura se tornou inteligível. O momento em que o Filho de Deus vai sofrer a espoliação dos trajes, da dignidade e “morrer por nós”.
Com meu passado de coroinha, imaginei a cena que tantas vezes se reproduziu naquela sacristia majestosa: a dos sacristãos se aprontando para o ritual da missa... Como eles se sentiriam diante do quadro? Que pensamentos, que reflexões?
Recordei a modesta sacristia em que exerci minhas funções de coroinha na infância (modesta em relação a da Catedral de Toledo) e revivi a gravidade com que experimentava aqueles instantes que antecedem ao ritual da missa. Menino de dez anos de idade, aquele era um momento especial. Não havia quadros na sacristia da minha igreja (apenas uma folhinha com imagem religiosa na parede ao lado da mesa da secretária), mas o mobiliário de madeira escura já era o suficiente para emoldurar o ambiente. Nós, os coroinhas, vestidos com sobrepelizes brancas, auxiliando o padre a ajeitar os paramentos litúrgicos.
O que sentiria o coroinha que eu era, se visse um Cristo tão sofrido, com uma fulgurante veste vermelha (que parece representar todo seu corpo e seu sangue), pouco antes de participar da “cerimônia incruenta da missa”? Não sei. Mas ficaria abalado. Emocionado.
A visita a sacristia da Catedral de Toledo foi rápida. Era visita de turista e segui o guia por outros caminhos dessa portentosa igreja, riquíssima em arte de diversos períodos: gótico, renascentista, barroco e outros. A impressão vivida diante do quadro de El Greco ficou em algum desvão da memória e a recuperei dia desses. Estava lendo sobre o artista, sua relação com Toledo, e lembrei do quadro na sacristia da Catedral. Junto, a cena imaginária dos sacristãos da igreja e a associação com meu passado de coroinha.
Hoje, quando pouca coisa resta da fé católica que embalou minha infância e juventude, chega a ser estranho lembrar (e lembrar com satisfação) os tempos de coroinha. Dessa vivência católica – na família, na escola e na igreja – restaram alguns vínculos com as crenças que fundam a Cristandade, em especial o Catolicismo, e também a nossa Civilização.
Na sacristia da Catedral de Toledo, não me deslumbrei apenas com a arte de El Greco. Foi o menino católico que reagiu diante da narrativa central da Cristandade: a Paixão de Cristo, o seu sacrifício pela Humanidade. O menino que um dia acreditou nisso tudo que a Igreja apresenta. O menino que cresceu e desaprendeu o que lhe foi ensinado.
Hoje, por onde anda minha cabeça? “Por onde vagam teus pensamentos?”, diria minha mãe. Não faço ideia. Mas sem dúvida ficou alguma coisa. Um vínculo, uma ponte, que me liga às crenças que emolduraram minha infância e que vêm de longe, muito longe, conquistando impérios, reinos e estados nacionais, forjando trajetórias de mártires e santos, construindo igrejas e catedrais, inspirando artistas de diferentes ofícios.
Catedral de Toledo.

Agora somos todos mascarados

Em janeiro, eu estava hospedado num hotel de Copacabana, olhava distraído o noticiário de TV e não levava à sério as notícias sobre a epidemia na China. Não que desacreditasse na letalidade do novo vírus, nada disso. Considerava, isso sim, muito remota a possibilidade da doença ganhar o mundo, adquirir o estatuto de epidemia e muito menos o de pandemia.
Janeiro, verão, Copacabana... Minha companheira e eu não estávamos preocupados com o mundo, mas com os passeios agendados no CCBB, Museu do Catete, Museu Nacional de Belas Artes, Mosteiro de São Bento, lugares já conhecidos, mas que seriam visitados com guias especializados em turismo cultural. Um desses guias, por sinal, meu ex-aluno no Curso de História da UFSM.
Um mês depois, em março, já em Santa Maria, o noticiário de TV me delineou um outro entendimento das coisas. A nova doença atravessou, sim, as fronteiras da China, ganhou o mundo, recebeu o estatuto de pandemia e me obrigou a alterar os planos. No caso, cancelar uma viagem a Porto Alegre para assistir a um espetáculo no Teatro São Pedro (a atriz Cássia Kis recitando Manoel de Barros). O espetáculo foi cancelado na véspera (12 de março) e tratei de ir na rodoviária tratar da devolução do valor das passagens. Gentilmente um funcionário me entregou o dinheiro das passagens e imaginei que tudo isso (a interrupção da vida normal) fosse durar apenas algumas semanas.
A vida mudava e eu não me dava conta do tamanho da confusão. Desconfiei das avaliações de mais de 100 mil mortos no Brasil e encarei o início do isolamento social com um otimismo descabelado. Aceitei as novas regras, me fechei no apartamento, mas sempre considerando que a situação era por pouco tempo. Tudo vai se resolver logo, cheguei a dizer.
No dia em que a Prefeitura Municipal determinou o uso de máscara para entrar no supermercado, bati com o aviso na porta do mercado e logo me dirigi a farmácia. Uma funcionária (de máscara) me orientou quanto ao modo de colocá-la no rosto e um outro me disse, rindo:
– Bem vindo a gangue. Agora somos todos mascarados.
Eu ri também e pensei que estava vivendo uma história de ficção científica. Um replay do filme Contágio, que assistira naquela semana. Um filme de 2011 a respeito de uma epidemia causada por vírus, que inicia em Hong Kong, se alastra pelos Estados Unidos (onde a trama é ambientada) e pelo mundo inteiro. Mas que tem final feliz: a vacina é logo descoberta, produzida e tem distribuição eficaz.
Saí pela rua mascarado (como continuo desde então ao andar pela cidade) sem desconfiar que o “filme” que eu estava / estou protagonizando avançaria até metade do ano (ou mais da metade do ano, o filme ainda não terminou). As previsões que considerava pessimistas se confirmaram e os dias passados em Copacabana agora pareceram um sonho. Sim, aqueles dias de verão no Rio de Janeiro, despreocupado, visitando uma exposição de peças do antigo Egito (do acervo do Museu Egípcio de Turim), no CCBB, andando pelas salas do Museu do Catete e ouvindo um ex-aluno descrever e analisar a decoração de inspiração greco-romana do antigo palacete do século XIX, tudo isso se transformou em marcas de um passado remoto, um estilo de vida que não sei quando voltarei a usufruir.


Obs.: crônica postada na página da SEDUFSM (Seção Sindical dos Docentes da UFSM), em 20/07/2020.

domingo, 5 de julho de 2020

O rei Silco, da Nobádia

O rei Silco viveu no século V d.C. Era um soberano do Reino da Nobádia, na região da Núbia.
Tomei conhecimento desse rei numa visita ao Templo de Kalabsha, a 50 quilômetros ao sul de Assuã, no Egito. Estava fazendo um cruzeiro pelo Lago Nasser e a visita a esse templo era parte do roteiro. O navio parou no meio do lago, lanchas nos pegaram e nos conduziram até o local.
O santuário originalmente não estava ali. Com a construção da represa e a formação do Lago Nasser, nos anos 1960, o prédio seria coberto pelas águas e então foi transplantado pedra por pedra e reconstruído no local onde hoje se encontra. Coisas da engenharia do século XX, sob coordenação da UNESCO.
Um templo egípcio dedicado a um deus solar núbio, construído no início da dominação romana, no padrão tradicional dos templos egípcios (padrão estabelecido no Novo Império). O pilote (pórtico), o pátio, a sala hipostila (salão com colunas) e o santuário ao fundo.
Pátio interno do Templo de Kalabsha e porta de entrada da sala hipostila.

Numa das paredes, o guia mostrou-nos o desenho do rei Silco grafitado na pedra e fotografei. Uma espécie de pichação dos tempos antigos. Desenho escavado na parede. O soberano montado num cavalo, vestido ao estilo romano, abatendo um inimigo com a lança, e uma divindade coroando-o.

Grafite do rei Silco.

Na hora apenas registrei que se tratava de um soberano da Núbia durante a Antiguidade Tardia. Depois, em casa, bisbilhotando no Google, juntei mais informações: o rei se chamava Silco, soberano da Nobádia, e a divindade voando sobre ele era Nice, deusa grega da vitória, festejando-o com uma coroa de louro.
      Silco enfrentou os blêmios, expulsou-os para o deserto oriental e expandiu o território da Nobádia. A deusa Nice veio saudá-lo, glorificando sua vitória sobre os inimigos do reino e alguém tratou de eternizá-lo na parede de um templo.
– O artesão que gravou sua imagem fez isso a mando do rei? – fiquei pensando...
Não encontrei resposta, mas o assunto serviu para me ocupar num desses dias de isolamento social. O covid-19 lá fora e eu às voltas com o rei Silco, soberano da Nobádia, que enfrentou os blêmios nas margens do Nilo, há mais de mil e quinhentos anos atrás.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Histórias de família (última crônica)

Vô Vittorio morreu em 1959. Eu ainda não completara quatro anos de idade e minha memória a respeito dele é construída a partir dos relatos da mãe e da tia Landa (a filha solteira que o acompanhou no final da vida).
Ele era viúvo e ficou acamado muito tempo, talvez meses. Sofria sem grande alarde. Tia Landa cuidava da casa, da limpeza, da cozinha, e se esmerava para que houvesse um ambiente tranquilo para o pai.
Aos domingos, meus pais visitavam o Velho, levavam os três filhos e nós nos reuníamos na cozinha, a última peça da casa, com uma porta que se abria para um pátio comprido, com um galinheiro ao fundo. Tia Landa fazia salada de frutas e servia no meio da tarde. Eu, criança pequena, dizia que queria só o caldinho e ameaçava chorar se não recebesse.
– E tu chorava mesmo, seu porcalhão – a tia Landa contava. E o porcalhão que ele acrescentava se referia ao fato de eu derramar sobre a roupa o caldo da salada de fruta.
– Uma criança manhenta – a tia acrescentava. E a palavra era essa mesmo, manhenta, ao invés de mimada.
Elas, a tia e a mãe, faziam de tudo para eu não criar confusão e incomodar o Velho. Meus irmãos se comportavam melhor. O menor (Marco Antônio), com menos de um ano, se distraia com um chocalho, enquanto o mais velho (Rubens) brincava no pátio. Só eu dava trabalho.
A casa do avô ainda está lá – na Rua Santos Dumont quase esquina com a Avenida Bento Gonçalves. Está fechada. Abandonada. Não houve acerto entre os herdeiros. Um primo advogado (Neno) tentou acertar que um dos netos ficasse usufruindo a casa, mas um outro herdeiro complicou e a coisa emperrou. Uma lástima.
A última vez que passei na frente da casa, notei que havia um rombo na parte de baixo da porta da rua e imaginei que animais devem estar entrando por ali e fazendo misérias lá dentro.
Foi o que sobrou de uma vida que iniciou na região do Vêneto, dá vontade de dizer.
No entanto, sobrou muito mais do que isso. Mais do que uma casa de porta e janela abandonada ou um retrato na parede (como o que eu tenho na parede do apartamento onde moro).
Restou o legado de camponês determinado. Emigrante italiano que cruzou o Atlântico. Rapaz que foi colono em fazenda paulista e terminou engenheiro prático da Viação Férrea. Homem que gerou catorze filhos e os criou ao seu modo rígido e severo, talvez severo demais. E que se radicou em Pelotas, uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, e se fez referência e matriz de uma vasta família de histórias intermináveis.
Um dia, estava com meus filhos (Maria Vitória e João Vicente) em Gramado e fomos visitar um castelo. Lá dentro nos atendeu um casal que fazia pesquisa genealógica e quis nos vender a ideia de que nossa família – os Biasoli ou Biasioli – tinha origem na nobreza italiana. Nobreza de brasão e palacete no norte da Itália, talvez nas margens do Rio Pó. Nós três não embarcamos na fantasia. Minha filha se irritou, meu filho e eu apenas rimos, e por fim fomos embora.
– Ora nobreza de brasão e castelo – fui dizendo para os meus filhos, ao andar pela rua. – Será que essa gente torta não entende que existe grandeza numa família de matriz camponesa, desterrada e ousada, que um dia atravessou o Atlântico para se enraizar no interior do Rio Grande?!

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Histórias de família (16)

É na teia de um conglomerado empresarial militar que vejo o destino de meu pai sendo selado. Meu pai enredado nessa teia. Atormentado. E dando um desfecho dramático a isso tudo. Colocando um ponto final na história com um tiro na cabeça.
Visto na perspectiva do tempo, ganha sentido um comentário de meu primo (Joaquim Luiz), que conhecia as entranhas do mundo financeiro porto-alegrense.
Estávamos num encontro familiar e comentávamos sobre os acontecimentos de 78, as mortes do pai dele, do meu pai, falávamos do ambiente da época. As tensões existentes. As atividades profissionais daqueles dois homens e o quanto o envolvimento deles num projeto mirabolante (as pensões de coronéis para as viúvas do país inteiro – matriz do projeto do MFM) contribuiu para as suas aflições. Para os seus tormentos. Especialmente no caso do meu pai.
– Que vendaval aquilo tudo! – eu disse.
– Era o final de uma época. – Meu primo fala, bebericando num copo de uísque. – Naquele momento, todo o complexo empresarial já tinha ido pro saco.
O complexo empresarial criado por um conjunto de coronéis do Exército, no início dos anos 60, e que ganha fôlego ao longo do Regime Militar. Em 70, absorve o Banco da Província, em 72 cria o Banco SulBrasileiro (a menina dos olhos da organização) e daí se expande numa miríade empresas, investimentos, envolvendo uma ampla gama de atividades. E numa dessas empresas, como simples contador, o meu pai como funcionário.
Eu olho para o Joaquim Luiz e não entendo. Ele sabe de coisas que não sei. Esteve no interior do monstro. Eu não conheço a dinâmica do mundo econômico, muito menos o do financeiro. Sou um simples professor de História e só sei generalidades a respeito da formação social sul-rio-grandense.
Uma prima passa por nós, me vê de testa franzida, e comenta:
– Que cara é essa, Vitinho? Vai lá dar uma atenção pra tia Lêda. Ela está um pouco chorosa.
Eu faço sinal para o meu primo e vou ver minha mãe. Nunca mais retomo a conversa com ele. Por sinal, pouco conversamos a partir daí.
Visto dos dias de hoje, com o acúmulo de informações que estão disponíveis – as matérias de jornal publicadas a partir de 1985 (data da intervenção do Banco Central no SulBrasileiro e posterior liquidação judicial) –, é possível dizer que no final dos 70 o projeto mirabolante do MFM se escancarou como inviável. Os diretores sabiam disso. A troca de diretoria que ocorreu no início de 79 é emblemática da crise, aponta o jornalista econômico Delmar Marques.[i]
O que isso tudo poderia afetar e tumultuar a vida de um simples funcionário (um contador) desse conglomerado? Não sei. Contadores não decidem nada. Eles cumprem ordens. Muitas vezes são os operadores de maquiagens contábeis determinadas por diretores.
Conversando com o pai na mesa da copa – onde, aos domingos, muitas vezes ele aprontava algum balancete para uma empresa ou outra –, um dia ele me explica o quanto era obrigado a ocultar gastos, despesas e investimentos fracassados das empresas para as quais prestava serviço. E como tudo isso (os balancetes) ficava plausível, lógico, redondo.
Teria sido essa a função do pai, na teia do conglomerado? Maquiar alguma operação destrambelhada, alguma incompetência ou mesmo maracutaia? Não sei. Alguma coisa o atormentou, o afligiu e o levou ao desfecho trágico que deu fim a sua vida.
Minha mãe sabia que suas aflições (ou parte delas) tinham sua matriz no ambiente de trabalho. Ela pediu que ele resolvesse isso. No último dia de sua vida, ele saiu de casa dizendo que iria na empresa resolver esses problemas.
Depois soubemos que ele não foi. Passou o dia caminhando pela cidade.
Naquela festa familiar em que meu primo falou a respeito da debacle do conglomerado (que só se escancarou anos depois) eu terminei fazendo companhia pra mãe.
Durante anos ela e eu reviramos ao avesso o que sabíamos a respeito do vendaval de 78, que mudou definitivamente nossas vidas.
Da minha parte, não sei se entendi grande coisa. Mas senti que o vendaval passou. Calaram-se os raios, cessou a chuva, abriu o tempo e veio o Sol. De uma alguma maneira se fez a bonança, como ocorre na Sinfonia Pastoral, de Beethoven, que aprendi a escutar na eletrola de nossa casa em Pelotas.
O pai colocava o disco e comentava os movimentos da sinfonia. O quarto movimento, “A tempestade”, sempre causava apreensão. Mas o quinto movimento, “O hino de ação de graças dos pastores”, restabelecia a tranquilidade que a natureza também sabe comportar. Nem tudo é agonia.




[i] MARQUES, Delmar. Caso MFM / SulBrasileiro – ascensão e queda dos coronéis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

sábado, 23 de maio de 2020

Histórias de família (15)

Meu pai foi um leitor de literatura de ficção e cedo descobriu que eu era interessado no assunto. Por meio dele descobri autores como Balzac, Maupassant, Gogol e Conrad. E também Júlio Verne e Mika Waltari.
Dos seus livros, guardo muito poucos. Um deles, O Aventureiro, de Mika Waltari (Editora Brasileira, 1956, 450 páginas), que li na semana passada. Um autor finlandês muito famoso nas décadas de 1940 e 50 (e até hoje editado no Brasil). No caso, uma narrativa ambientada no século XVI, com o herói (um jovem finlandês) indo estudar na Universidade de Paris, viajando pela Alemanha (tomando contato com Thomas Müntzer) e se envolvendo nas guerras entre o Imperador do Sacro Império e o Papa, no território italiano.
Lá pelas tantas, o herói descobre umas cartas que revelam um complô do Papa contra o Imperador e conclui que pode intervir na disputa entre os poderosos. Consegue uma entrevista com o Imperador e fica sabendo que nada do que ele conta é novidade. O Imperador está por dentro da falsidade de seu adversário e ele, o herói da narrativa, não passa de um soldadinho das tropas de um condottiere.
Em diversos momentos, ao ler o romance, era como se eu conhecesse a história. Caminhando pelas ruas de Pelotas, na infância, escutei o pai falar sobre casos semelhantes (talvez essa história mesma do romance de Waltari). Almoçando num restaurante no entorno do Lago Negro, em Gramado, conversamos sobre histórias de Papas e guerras contra o Sacro Império. Percorrendo as prateleiras da antiga Livraria do Globo, na Rua da Praia, em Porto Alegre, buscamos livros que esclarecessem a respeito dos conflitos entre Roma, Florença e Milão, nos séculos XV e XVI.
Quando fui conhecer o auditório do Banco da Província, em Porto Alegre, e passei a mão no mármore frio e esplendoroso (vindo de Carrara, na Itália), que decora o ambiente, era o mundo grandioso da Roma dos Papas e de Michelangelo que eu buscava. Sentir a cor e a textura da mesma pedra que o artista renascentista usara nas suas esculturas de figuras bíblicas: o Moisés (para o túmulo do Papa Júlio II), a Virgem Maria (na Pietà).
Diante do conjunto escultórico Moisés, na igreja San Pietro in Vincoli, em Roma, foram esses fios que juntei e que reúno até hoje. Fios que passam pela infância e juventude e que me conectam às histórias do pai, seus desejos e ambições, que me ligam à teia familiar de matriz imigrante e me aproximam de grandes histórias. Fios (ou correntes) constituídos por livros e filmes, conversas animadas, caminhadas e almoços.
Túmulo de Júlio II, na igreja de San Pietro in Vincoli.
Calado, em silêncio – atento às figuras do conjunto escultórico de Michelangelo –, foi isso que vivi na igreja de San Pietro in Vincoli: encontrar a minha perplexidade de adolescente diante do mundo. Perplexidade que ainda acompanha o homem velho que me tornei. A perplexidade e a grandeza de estar vivo, mesmo reconhecendo minha insignificância diante do mundo - dos Papas e de suas guerras com o Imperador do Sacro Império (para utilizar a trama romanesca de Mika Waltari).
Meu pai era um leitor de literatura de ficção, de romances capa-e-espada inclusive. Um pouco desse gosto eu herdei. E, como ele, muitas vezes me sinto um reles soldadinho das tropas de um condottiere à serviço do Imperador. Uma existência insignificante, mas que amplifico com os artifícios da literatura.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Histórias de família (14)

Na penteadeira da minha mãe, na primeira gaveta à direita, havia uma pequena caixa da Joalheria Silva, do tempo em que ela vivia em Pelotas. Uma caixinha preta, de papelão, com menos de 10 cm de diâmetro. Nos últimos tempos, já estava se desmanchando e a mãe não se desfazia.
Fecho os olhos e vejo a cena: a mãe e eu estamos na sala (na Rua Portugal) e ela diz para eu buscar uma tesourinha na penteadeira. Eu sei o lugar. Vou até o quarto, abro a gaveta indicada, dividida em quatro repartições, tudo muito organizado, encontro a tesoura e vejo a tal caixinha. Volto à sala e pergunto:
– Mãe, aquela caixinha preta, por que tu guardas? Tá muito velha.
Os olhos da mãe ficam marejados, percebo a emoção e trato de mudar de assunto.
Tenho a impressão de que nunca deixei ela contar a história completa dessa embalagem. Mas sempre soube que era um objeto de significado especial. Provavelmente referente a joalheria onde ela e o pai, no final da década de 40, escolheram e compraram as alianças. Ela e toda a sua geração de jovens professoras, formadas pela Escola Complementar Assis Brasil.
Escola Complementar e não Escola Normal, fique bem claro. Um dia tive o azar de dizer que ela fora uma “normalista” e fui prontamente corrigido.
– Nunca fui normalista. A Escola Normal foi criada depois. Quando me formei, isso não existia. Me formei na Escola Complementar.[i]
Corta e volta para os anos 70, no apartamento da Rua Sete de Abril. O pai entra em casa num final de manhã, com um pequeno pacote, e me diz:
– Presente pra tua mãe. Guarda no fundo da minha gaveta, na mesinha de cabeceira, antes que ela veja.
Eu guardo e um dia ele me explica que vinha caminhando pela Rua da Praia, encontra um amigo que lhe deve por um serviço prestado (um balancete), o homem diz que está disposto a pagar e o pai aponta a Joalheria Masson logo adiante.
– Podes comprar uma joia para minha mulher – o pai diz.
Eles entram na joalheira e o pagamento é feito dessa forma: um broche, um anel ou qualquer coisa vistosa e bonita para encantar os olhos de uma mulher.
Essa história é verdadeira? A minha memória está me pregando uma peça? Não sei.
Corta para uma outra cena, em junho de 1978, logo após o suicídio do pai. Meu primo (Joaquim Luís) junto com meu irmão mais velho (Rubinho) reviram as gavetas da pequena cômoda-escrivaninha onde ele guardava documentos. O Joaquim Luís encontra umas notas relativas à compra de joias, estende ao meu irmão e pergunta se ele as identifica.
Rubinho, minuciosamente (e um pouco a contragosto), examina uma por uma e diz que foram presentes para a mãe.
O Joaquim Luís sorri e diz que o Velho está limpeza. Ninguém sabe porque o pai se matou. Meu primo chega a supor história com amante, eu observo de longe, acompanho o exame da papelada e não consigo me envolver.
Eles não encontram coisa alguma que comprometa o pai. Nenhum sinal de amante, negócio escuso, dinheiro sem procedência legal, essas coisas.
Anos depois, escuto minha mãe falar a respeito de cada uma das joias que ela ganhou e sinto não ter prestado a devido atenção. Eu gostava de um broche de ouro, com algumas pedras preciosas incrustadas (diamantes?). Gostava de um pedantife de ouro, com a imagem de Nossa Senhora, que um assaltante arrancou do seu pescoço no centro de Porto Alegre, por volta de 1980.
Nunca soube o que aquela caixinha da Joalheria Silva guardava e até hoje me pego vasculhando na memória o que ela me disse quando eu perguntei...
Não sei. Era uma história de Pelotas, de juventude, dela e do pai, e só lembro seus olhos lacrimenjantes, e ela me olhando, calada.



[i] Em 1940, a Escola Complementar de Pelotas (fundada em 1929) passou a se chamar Escola Complementar Assis Brasil: em 1943, Escola Normal Assis Brasil.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Histórias de família (13)

Histórias de família se perdem. Muitas vezes se desorganizam, se embaralham e vão para o ralo. Minha mãe e eu gastamos horas revirando pequenos episódios familiares e tentando ordená-los. O resultado é cheio de lacunas e imprecisões, mas é o que tenho.
Vô Vittorio cruzou o Atlântico no final do século XIX e até sabemos o ano. Da vó Santa, porém, ignoramos tudo. Deve ter emigrado da Itália na mesma época, chegado na mesma fazenda paulista onde trabalhava o avô e pronto.
– Sair de um país para o outro, ir de um continente para outro – vô Lêdinha ponderava – deve ser muito difícil. – Eu sofri muito quando deixei Pelotas, deixei meus pais e vim morar em Porto Alegre.
E disso eu sou capaz de lembrar. Era menino de 11 anos e ainda vejo a mãe sentada na beira da minha cama, ou na cama de algum dos meus dois irmãos, explicando que iriamos nos mudar para a Porto Alegre, que a nossa vida seria melhor, mas que ela sentia muito. Chorosa, ela explicava que não era para nós nos preocuparmos, que essa tristeza era uma coisa dela. Ela sentia muito deixar de viver próximos aos pais (morávamos no mesmo quarteirão), mas isso ia passar.
O pai, por sua vez, andava garboso pela casa, tomando as decisões da mudança. A mãe não continha o choro e se debulhava em lágrimas pela rua – a ponto de dar origem a um boato curioso.
– O Rubens está traindo a Lêda – passaram a dizer na cidade. – Por isso as lágrimas.
– Lágrimas copiosas – me disse a tia Evany, rindo, anos mais tarde. Tia do lado materno, esposa do tio Joaquim (o único irmão da mãe).
Tia Evany foi ao Rio de Janeiro, visitou alguns parentes e lhe falaram do caso: a traição do Rubens, as lágrimas da Lêda. E então a tia esclareceu o motivo do choro da minha mãe: deixar Pelotas, deixar os pais, para vir morar em Porto Alegre.
Naquela época, na zona do porto em Pelotas (local da cidade onde morávamos), um homem casado mantivera um longo relacionamento com a cunhada, sua vizinha, e a esposa descobriu. As casas eram coladas uma na outra, os pátios não tinham muro, se interligavam, e a mulher enganada caiu em profunda tristeza, chorava pela rua. A história ganhou asas, viajou ao Rio de Janeiro e a mulher traída e chorosa se transformou na minha mãe.
Ela própria me contou diversas vezes o caso. Acho que ela sabia quem eram os personagens reais do drama.
– Pois tu vês como são as coisas – ela dizia. – Eu chorava inconsolável, teu pai não sabia mais o que fazer, e eu virei uma mulher traída para os parentes do Rio.
E como assunto puxa assunto, nós voltávamos para e emigração dos Biasoli, a partida da Itália, o que eles deixaram por lá, o que ela deixou em Pelotas... Nem de longe as duas situações se comparam – processos migratórios completamente diferentes, o professor de História que eu era afirmava – mas em nossas conversas havia algo em comum ligando as duas experiências: a viagem, a travessia, a mudança de moradia e novos horizontes de trabalho e sociabilidade surgindo.
Quando chegamos de mudança em Porto Alegre, em fevereiro de 1967, um apartamento já estava montado (no Bairro Floresta). O pai tinha assegurado um emprego num escritório de importação de máquinas de costura industrial (Pfaff) e a mãe já acertara a sua transferência para uma outra escola estadual (no Passo d'Areia).
Não houve viagem transoceânica nem passagem por uma hospedaria de imigrantes. Dois processos migratórios diferentes, mas com algo essencial em comum: a travessia. O lugar desconhecido. E um inventário de perdas e ganhos.
No caso da minha mãe, a perda da cidade onde nasceu, da proximidade com os pais. A perda de muitas amizades e rotinas e hábitos conhecidos.
– Eu não aguentaria o que os teus avós fizeram – a mãe comentava.
E lembrava os seus bisavôs maternos, que vieram da Alemanha, e principalmente o avô paterno, Joaquim, que veio da Ilha da Madeira. Muitos fios se cruzando na sua memória e imaginação. Fios difíceis de deslindar.