quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Roma Antiga & infância


Meninos gostam de histórias de guerra. Eu gostava. Meninos desconhecem a crueldade das batalhas e veem apenas a coragem, a ação, a habilidade com as armas. Eu era assim. Meninos são assim.

Legionários em campanha militar. Coluna de Trajano.
Guri nos meados dos anos 60, eu frequentava as matinês com meu pai todos os finais de semana e os filmes ambientados no Mundo Antigo estavam entre os preferidos. Por meio deles eu tomava conhecimento dos Argonautas, de Rômulo & Remo e da expansão do Império Romano. Quando o filme terminava, voltávamos a pé para casa, e eu cravava meu pai de perguntas. Queria saber mais. Principalmente se o tema nas telas fora a história romana.

Numa dessas conversas, ouvi pela primeira vez a respeito do combate entre os irmãos Horácios e os irmãos Curiáceos. Um episódio que aconteceu no tempo em que Roma ainda era um povoado de pastores, no governo de Túlio Ostílio, o terceiro rei romano.

Túlio Ostílio declarou guerra a Alba Longa e enfileirou seus soldados diante das tropas inimigas. Os dois reis conversaram e estabeleceram que os seus campeões decidiriam o resultado do confronto. Da parte de Roma, se apresentaram os três irmãos Horácios; de Alba Longa, os três irmãos Curiáceos; e iniciou a luta. A briga foi violenta e ao final restou apenas um Horácio. Roma venceu.

A história tem mais detalhes, mas o essencial é esse: restou apenas o campeão romano, os guerreiros de Alba Longa ficaram mortos no campo de batalha. Alba Longa foi destruída e a sua população incorporada à romana.

Relembro essa história lendária e revivo as emoções do menino que eu fui. Que gostava de histórias de guerra, que não sabia o que era crueldade, que não entendia a complexidade humana. Apenas um menino, com a pureza e a ignorância típicas da infância saudável.

Depois aprendi que essa fórmula narrativa - centrada nos heróis - é apenas um modo de contar a história. Os acontecimentos político-sociais, as guerras inclusive, não cabem em esquemas tão simples. Principalmente, entendi a respeito da crueldade humana e minha compreensão do mundo mudou.

Meninos, no entanto, não entendem nada disso. Meninos gostam de histórias de guerra. Gostam de lendas e heróis, simples e brutais. Eu gostava. Muitas delas aprendi com meu pai, conversando sobre cinema.

Às vésperas de embarcar para Roma e passar nessa cidade duas semanas, reencontro essa história lendária a respeito da Roma Antiga e me emociono. Revivo o entusiasmo do menino que eu fui. Revejo uma das tantas camadas de história que a Roma atual é capaz de proporcionar aos seus visitantes - as ruínas do Monte Palatino, por exemplo, o local da primitiva Roma dos pastores - e tremo de emoção. Uma explosão de emoções conflitantes. A sedutora possibilidade de reencontrar o menino, a infância, o pai.

sábado, 14 de setembro de 2019

Visita ao campus


Fui ao campus da UFSM dias atrás (precisava de um documento do setor de pagamentos, na Reitoria) e escrevo para registrar essa visita. As universidades federais passam por cortes de verbas bastante rigorosos e foi nisso que pensei o tempo inteiro. Na Reitoria, fui atendido por um rapaz que desconfiei fosse um estudante bolsista e perguntei a respeito. Ele respondeu que sim e acrescentou que cursava Tecnologia de Alimentos.  

Depois que me atendeu, conversamos a respeito da universidade e ele disse que os laboratórios do curso já estão com o funcionamento prejudicado por conta dos cortes orçamentários. Falou sem indignação e imaginei que as precariedades do sistema educacional brasileiro não abatem o seu ânimo. Está calejado ou (hipótese mais provável) está muito satisfeito com a sua condição de aluno de um curso que entende que o prepara para um futuro promissor. Falou da indústria de alimentação em crescimento, da necessidade de profissionais qualificados e deu a entender que se imagina um desses profissionais.

Um rapaz otimista, um rapaz preparado para a dureza do mundo, pensei, que talvez o governo – com o seu projeto de desmantelamento da universidade pública como a conhecemos – não consiga esmorecer.

Mas isso não acontece com todos. O custo humano da política governamental – suspendendo concessão de novas bolsas para alunos de pós-graduação, por exemplo – já se faz sentir, ceifando projetos e sonhos. Semanas atrás, soube de uma estudante que foi classificada em um programa de mestrado, iniciou o curso, contava com a concessão da bolsa devido à sua pontuação, mas foi informada que novas bolsas não serão concedidas.

Conheço essa situação muito bem, vivi algo parecido em 1990, com o Governo Collor. Ingressara no Mestrado em Letras, na PUC/RS, e também as bolsas foram suspensas. Cheguei a cursar as disciplinas dois meses, entusiasmadíssimo, mas logo a coordenação avisou que o Governo cortara as bolsas, recebi os boletos das mensalidades e cai fora.

Felizmente, nesse meu caso, a situação foi concertada um ano e meio depois. A coordenadora me chamou (sua secretária me ligou – telefonema inesquecível), o curso voltara a ter bolsas de estudo e retornei à sala de aula. Em dois anos conclui as disciplinas, realizei a pesquisa e defendi a dissertação. Um passo fundamental na minha trajetória profissional e também pessoal.

Hoje, não imagino o que possa acontecer com os estudantes que passam por situação semelhante, isto é, que vivem na carne a suspensão das bolsas e o aniquilamento de projetos arduamente construídos. Não sei qual será o desdobramento dessa política agressiva do Governo Bolsonaro em relação às universidades federais. É certo que a nova orientação econômica – excessivamente neoliberal – não tem interesse algum na expansão do ensino público superior. As notícias desses últimos dias apontam para um retorno da concessão de bolsas, mas apenas para os programas de pós-graduação com notas entre cinco e sete. Os cortes orçamentários, dessa maneira, passam a reconfigurar os programas de pós-graduação e a fazer os mestrados e doutorados dançarem a música do governo. E, em relação a juventude, fazem a garotada piar fino, calar projetos e sonhos, e replanejar suas vidas.

Voltei do campus melancólico, naquele dia. Não tive coragem de visitar meus antigos colegas e escrevo essa crônica para registrar esse momento de incertezas. Restou, porém, o consolo do otimismo do bolsista. Provavelmente o guri não está se deixando abater. É um forte, imagino, e só os fortes suportarão o vendaval neoliberal que vivemos.

Detalhe do mural "Quinhentos anos da invasão da América", de Juan Amoretti, nas paredes do CAL. Cena do massacre provocado pelo avanço da civilização europeia.