terça-feira, 10 de maio de 2022

Roteiro pelotense (3)

           Pelotas se transformou num território mítico para mim. Deixei a cidade com onze anos, em 1967, e toda vez que volto tenho surpresas. Muito bom rever a cidade e perceber que ela se modifica, mas alguma coisa permanece a mesma, eterna... Vá entender.

No início da década de 1980, recém casado, fui passear na cidade e me hospedei na casa de meus avós maternos. Lembro que tirei uma foto da minha mulher (Maria da Graça) numa das janelas da casa, com uma almofada apoiando os braços, olhando a rua, tal e qual eu vira na infância.  Naquela época, mulheres olhando a rua da janela de suas casas era uma cena comum na Zona do Porto, a região da cidade dos meus avós, a região da cidade onde vivi quando criança. Uma foto que não sei onde está, preciso encontrá-la.

Rever a cidade naquele ano foi uma experiência e tanto, importante para a nova etapa que eu estava encarando: a do casamento. Pouco tempo depois meu avô morreu, eu me tornei pai de uma menina, minha avó foi morar em Porto Alegre com a sua mãe e, na sequência, esclerosou. Esse o diagnóstico da época: esclerose. Não se falava em Alzheimer.

Trinta e poucos anos depois voltei para os noventa anos de uma tia (irmã do meu pai) e era outra cidade. Ou melhor, eu é quem era diferente. Me tornara pai de dois filhos (eles foram à festa comigo), estava casado com outra mulher (Rose) e Pelotas se desenhou de outra maneira. Passear na cidade com meus filhos e a Rose foi uma vivência tremenda e rimos muito. Eu queria contar o que tinha vivido ali e alguma coisa soava estranho e engraçada ao mesmo tempo. A casa de esquina em que minha família morara permanecia de pé, eu mostrava isso para os meus filhos, mas acho que era outra coisa que eles viam...

A cidade mudara. Como mudou também nos últimos anos, conforme constatei quando estive lá, dias atrás. A mesma Praça Coronel Pedro Osório com o Chafariz das Nereidas, mas outra coisa. E, quando passei por dentro da praça, bem junto ao chafariz, acompanhei um episódio que me virou ao avesso.

Presenciei uma cena de mãe e filho comovente. O menino tinha uns sete anos e quis brincar com um cachorro que não era seu. Alguma coisa aconteceu entre os dois que fez o guri se assustar e ele correu chorando para o colo da mãe. A mulher examinou o filho com carinho, procurando sinal de mordida (levantou a blusa, abaixou as calças), mas não constatou coisa alguma. Enquanto isso, o rapaz que era dono do cachorro tratava de mostrar para o guri que o bicho não quisera fazer mal algum. Ao final, o menino passou a mão na cabeça do cachorro, parou de chorar e eu respirei aliviado.

Aquele local da praça também foi meu território de brincadeiras e me identifiquei com o guri, com o susto que ele levou. Na década de 1960, meus pais se sentavam num daqueles bancos no entorno do chafariz e meus irmãos e eu corríamos pela praça. Nunca houve um episódio em que me assustei e me refugiei no colo da mãe, mas acho que foi isso que senti: eu poderia ser aquele menino. Seu choro, o medo que ele sentiu, me cortaram a alma.

Chafariz das Nereidas (foto s/ autoria, encontrada em sítio sobre Pelotas).

Uma vivência que só Pelotas consegue me proporcionar. Sinceramente não sei entender. Mas desconfio que as ninfas do mar (as nereidas representadas em bronze no chafariz da praça) têm alguma responsabilidade nisso. São figuras da mitologia, não dão bola para o tempo nem para a racionalidade alguma, e às vezes enfeitiçam os visitantes distraídos.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Roteiro pelotense (2)

           A casa-grande da Charqueada São João não tinha o formato retangular, com pátio interno, que possui atualmente. Quando foi construída, em 1810, a casa formava uma espécie de C, com o pátio interno aberto, e só mais tarde (ainda no século XIX) foram feitas as ampliações que cercaram essa área aberta, um local que (não sei por qual motivo) me provoca uma sensação muito boa.

Pátio interno da Charqueada S. João.

É sempre com prazer que adentro esse pátio e a mesma emoção se repetiu duas semanas atrás, quando lá estive. Vá entender.

Segundo Rosa Maria Moura e Andrey Schlee, há três motivos que fazem da Charqueada São João um lugar especial: o fato de ser erguida por Antônio José Gonçalves Chaves, ter hospedado Auguste de Saint-Hilaire (em 1820) e ser “o mais belo e íntegro dos exemplares da arquitetura do ciclo do charque”.[i] Não é pouca coisa. Nos últimos anos, com o fato da Rede Globo ambientar algumas das suas produções no local – a minissérie A Casa das Sete Mulheres (2003) e uma versão cinematográfica da obra-prima de Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento (2013) –, a charqueada parece que mudou de status. Está diferente. É muito mais que um exemplar da arquitetura do charque. É um emblema da história gaúcha, cenário de suas sagas.

A visita guiada inicia com um vídeo, no qual ganha destaque as produções globais e seus atores famosos, dos quais Tarcísio Meira (que interpretou o Capitão Rodrigues em antiga minissérie da Globo, na década de 1980) é superado por Thiago Lacerda, o Cap. Rodrigo da última versão cinematográfica de O Tempo e o Vento, da década de 2010.

Conversando com meus colegas de viagem, cheguei a citar Tarcísio Meira, eles estranharam minha referência e, por momentos, me senti velho, extremamente velho. Demorei a lembrar que há uma versão mais recente do épico de Érico Veríssimo... que assisti no cinema, mas esqueci.

O filme Concerto Campestre (2004) também entra no repertório utilizado para narrar a história das charqueadas pelotenses e o vídeo de apresentação se utiliza de cenas que recriam (com bastante realismo) a produção do charque, no século XIX, com mão-de-obra escrava e tudo mais.[ii] No livro que dá origem ao filme a estância onde se passa a história se localiza “a margem direita do rio Santa Maria” (localizado na Campanha, entre Livramento e São Gabriel) e me causou surpresa a ambientação em paisagem pelotense. É na “vastidão deserta do pampa” que se dá o romance entre a bela Clara Vitória e o Maestro, mas foi o próprio autor quem fez o roteiro e devo concordar que ficou impactante (brutal, a última cena, lindíssima).[iii]

As formas de narrar e relembrar o passado pelotense vão mudando conforme o “andar das carretas” e isso é um fenômeno interessante de acompanhar. Um historiador local (José Antônio Mazza Leite) me disse, poucos anos atrás, que o filme Concerto Campestre despertou a atenção dos pelotenses em relação ao passado da cidade e dinamizou as atividades do Museu do Charque. Os filmes e séries de TV (com maior alcance de público do que os livros) têm tematizado a história gaúcha e isso é muito bom (se bem que às vezes me desconcerta). Um público maior se vê envolvido pelas tramas que formaram a sociedade sul-rio-grandense, demanda mais informação a respeito e é isso que assistimos na Charqueada São João.

Charqueada S. João: espaço entre a casa-grande e a senzala.

O local se faz um espaço de memória que vai além da história da casa de um charqueador e o vídeo apresentado aos visitantes concretiza isso. Para um professor de História como eu, uma experiência e tanto. Quando a guia da Charqueada conduziu o meu grupo até a sala onde os peões que vinham de longe faziam as refeições, senti vontade de me sentar ao redor da mesa para ouvir as explicações. Mas é proibido se sentar e escutei de pé a guia falar a respeito dos cuidados que eram tomados para que os rudes peões (quem sabe os estabanados visitantes também) não tivessem contato com as moças da casa (nem danificassem os móveis e objetos que ali estão para relembrar o passado gaudério).



[i] MOURA, Rosa Maria; SCHLEE, Aldyr. 100 imagens da arquitetura pelotense. Pelotas: 1998.

[ii] CONCERTO CAMPESTRE. Direção de Henrique de Freitas Lima, roteiro de L.A. de Assis Brasil. 2004. 100 min.

[iii] BRASIL, Luiz Antonio de. Concerto Campestre. P. Alegre: L&PM, 1997.

terça-feira, 3 de maio de 2022

Roteiro pelotense (1)

            Pelotas é uma cidade com muita história. Não é a mais antiga do Rio Grande do Sul, mas se formou na primeira metade do século XIX como um centro produtor de charque, este produto se tornou o principal item de exportação da então Província de São Pedro e a cidade passou a ter um papel importante na região.

Na primeira metade do século XX a cidade ainda mantinha bom desempenho econômico, abrigando um significativo setor industrial, mas declinou consideravelmente a partir do final da década de 1950. O eixo Porto Alegre – Caxias do Sul disparou quanto ao crescimento da indústria e até a agropecuária da Campanha, da qual Pelotas ainda funciona como escoadouro, foi superada em produtividade pela da região norte do Estado.

Segundo os dados do IBGE para 2018, Pelotas é o quarto município do estado em número de habitantes e o nono quanto à contribuição ao PIB estadual. Foram-se os áureos tempos dos quais os pelotenses tanto se ufanam, mas restaram muitos vestígios desse período.

Fundos da Charqueada São João.

  Estive em Pelotas dias atrás e faço esse preâmbulo para melhor pensar a cidade. Meu roteiro foi turístico (com guia local inclusive) e estive na Charqueada São João, na Praça Coronel Pedro Osório e seu entorno (no Museu do Doce, dessa vez), na Catedral e no Mercado Central. Tudo muito bonito – a grandeza dos antigos charqueadores, a opulência dos casarões, a sofisticação artística da Catedral, o requinte do Mercado –, mas preciso dizer que Pelotas não é apenas isso. É uma cidade com um rico patrimônio histórico, sim, mas em acentuado declínio econômico (quando comparado com os dez maiores municípios do Estado), com bastante pobreza e alta concentração de renda. Um território intrigante para quem nasceu na cidade (como eu) e nela viveu a infância (entre 1955 e 67).

Estive na Charqueada São João quando criança de colo, a Praça Coronel Pedro Osório foi meu local de brincadeiras aos domingos (correr de pega-pega, jogar miolo de pão aos marrecos) e diversas vezes acompanhei o pai ao Mercado Público, quando ele ia comprar peixe ou camarão. Inesquecível a cena da abertura da peixaria (às cinco horas da tarde) com os carregadores virando os sacos de peixes e camarões em mesas arredondas (com a base e as bordas de cimento, os tampos de azulejo). Os peixes e camarões deslizavam em cima dos azulejos das mesas, alguns siris saiam correndo, um verdadeiro espetáculo.

Quando a guia colocou o meu grupo de turistas nos bancos de uma capela lateral ao altar da Catedral e começou a explicar uma tela de Aldo Locatelli (Sagrado Coração de Maria), lembrei das conversas da minha mãe. Ela falava do bispo D. Antônio Zattera, responsável pelo projeto de decoração do interior da Catedral e do quanto isso mexeu com a população da cidade. A mãe era moça solteira, professora de grupo escolar, e acompanhou a chegada de Locatelli (1948), os seus trabalhos na igreja, inclusive a utilização de figuras locais como modelos para as pinturas.[i]

 Lembranças confusas, devo dizer, mas muito vivas. Naquele momento, foi como se eu escutasse minha mãe e sentisse o seu entusiasmo... Quando quis comentar com a guia as informações que minha mãe passava (o nome das pessoas que serviram de modelo), embaralhei tudo. Bem podia ter ficado calado. No entanto visitar Pelotas é assim: as lembranças se sobrepõem umas às outras e nem sempre é fácil organizá-las.

Ao sair da Catedral e me deparar com a chegada dos convidados do casamento que iria ocorrer naquele final de tarde, parei à calçada (junto com minhas colegas de viagem) observando as mulheres com seus vestidos longos e esvoaçantes. De certa forma, era o mesmo que vivi nos anos 60: a Catedral abrigando casamentos elegantes ao entardecer. Homens e mulheres chegando com roupas de festa (alguns descendo de "carros de praça", como era o caso da minha família) e minha mãe cuidando para que o vento não desmanchasse o penteado, entrando depressa na igreja. E eu, menino de calças curtas, olhando para todos os lados, admirado.



[i] A maioria dos trabalhos de Locatelli foram de pinturas feitas diretamente nas paredes do interior da Catedral e a tela intitulada Sagrado Coração de Maria, na capela à direita do altar, foi uma das poucas que o artista fez para a igreja. Talvez a única. Havia o projeto de uma outra tela, para a capela à esquerda do altar, mas essa não chegou a ser finalizada.