quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Ruínas maias


Na Península de Yucatán, a 160 km da rede hoteleira de Cancún, encontra-se um dos mais famosos sítios arqueológicos maias: o de Chichén Itzá. Local da igualmente famosa Pirâmide de Kukulcan, dedicada a um deus com forma de serpente emplumada. Pirâmide de 30 metros de altura, ela própria é uma representação do calendário maia e, dessa maneira, uma das expressões máximas dessa civilização: os estudos astronômicos.


Até o ano de 2017 era permitido aos visitantes subirem as dezenas de degraus da pirâmide, mas isso deixou de ser possível devido às novas normas de preservação. Segundo o guia que conduziu meu grupo de visitantes, o grande número de turistas estava desgastando as pedras do monumento e colocando em risco a integridade da pirâmide. Além da proibição de escalar os degraus das pirâmides, também ficou proibido o ingresso nos templos. Agora, é só passear por entre os monumentos e olhar, embasbacado.

Talvez realizar o mesmo papel da antiga população maia. Afinal, a subida ao alto das pirâmides e o ingresso nos templos não era para qualquer um. Era um privilégio dos sacerdotes encarregados do culto e também dos guerreiros soberanos que detinham o poder local.

Como escreveu o historiador Paul Gendrop, os soberanos maias encenavam sua ascensão ao trono num “acontecimento revestido de caráter histórico e cósmico”. Subir os degraus da pirâmide fazia parte do ritual, dava o caráter cósmico da teatralização do poder histórico. Um ato (o de escalar até o cume do templo) que distinguia o sacerdote e o soberano dos mortais comuns – tanto dos integrantes da aristocracia quanto do povo em geral, especialmente dos camponeses. Camponeses que deviam ser subjugados regiamente, para melhor a elite abarcar o excedente da sua produção agrícola.

Ao chegar a Chichén Itzá, acho que quis imitar o sacerdote ou o soberano maia e, súbito, fui reduzido a minha condição plebeia. Levei um tempo para assimilar o impacto da notícia e a frustração.

Felizmente minha estadia em Cancún foi de uma semana e deu para explorar outros sítios arqueológicos. Fiz um outro passeio – até antiga cidade de Cobá – e lá encontrei a Pirâmide Nohoc Mul, a qual ainda é permitida escalar. Antigo espaço sagrado de 42 metros de altura, 138 degraus, com um minúsculo templo no alto. Ao contrário da Pirâmide de Kukulcan, os degraus e as paredes não estão restaurados e quadro é de ruína mesmo. Cenário de uma civilização que se desagregou, construção cercada pela floresta subtropical, lembrando as fotos tiradas pelos primeiros arqueólogos, quando eles descobriam esses monumentos, esquecidos pelos próprios descendentes dos antigos maias... Mais um elemento para fascinar o visitante.


Com todo o cuidado – e sem a performance elegante dos sacerdotes e guerreiros que subiam esse lugar sagrado com os corpos eretos – escalei os 138 degraus às vezes com ajuda das mãos e cheguei ao topo. Nenhuma sensação de ter executado uma cena cósmica, mas, sem dúvida, de ter realizado um sonho antigo, desses de leitor, de estudante de história, de professor, e percorrido o caminho das figuras históricas lidas e estudadas nos livros.

Observei a copa das árvores, abaixo de mim, e lembrei que isso fazia parte do projeto acalantado pela elite político-religiosa da antiga civilização maia: erguer suas construções acima das árvores. Criar templos monumentais e evidenciar aos membros da comunidade a sua insignificância frente aos deuses. Insignificância tão grande que até o seu sangue deveria ser dado em sacrifício aos deuses. Sangue derramado na base da pirâmide, por exemplo.
E justo quando lembrava disso, um casal fazia uma sessão de fotos na minha frente, na borda do alto da pirâmide. A moça abria mais um botão da sua blusa, insinuava uma doce sensualidade ao fotógrafo na sua frente (talvez seu namorado) e os dois pareciam em êxtase. Acho que um antigo sacerdote maia jamais entenderia essas novas apropriações do seu espaço sagrado...



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Cidade do Panamá


Passei pela Cidade do Panamá dias atrás. Passagem rápida. Desci no aeroporto da cidade, a caminho de Cancún, apenas para passar um dia. No caminho para o hotel, minha companheira acertou com o motorista do “táxi” um tour pela cidade e lá fomos nós. Primeira parada, a Estação Miraflores, a estação de uma das eclusas do famoso canal, próxima ao Oceano Pacífico. Junto à estação, um enorme prédio para visitantes, com museu a respeito do canal e uma enorme sacada para acompanhar a passagem dos navios. Minha visita se limitou a esse prédio, o museu e a sacada, mais o acompanhamento da passagem de dois navios. Uma visita de turista. Uma visita impressionante.



Escrevo essa crônica para organizar o impacto que o passeio causou. Fui professor de História da América Contemporânea durante vários anos e o Canal do Panamá sempre foi um tópico importante. O “duvidoso negócio”, como escreveu o historiador norte-americano John Chasteen a respeito da construção e administração do canal pelos Estados Unidos. Afinal, o ponto de partida do canal foi um acordo, em 1903, no qual não participou nenhum panamenho nativo. Pelo Panamá, assinou o engenheiro francês Philippe Varilla (responsável pela companhia francesa que havia iniciado a construção do canal décadas antes) e o recém-criado governo panamenho teve de aceitar as cláusulas do tratado imposto pelos norte-americanos. O Panamá transformado num protetorado norte-americano e o canal sob controle absoluto dos Estados Unidos. Um dos exemplos clássicos do chamado neocolonialismo. Só na década de 1970, após muita luta, os termos do tratado foram revistos.

Quando o “táxi” entrou na Zona do Canal e avistei os enormes prédios que antes serviam para a ocupação militar norte-americana, lembrei o episódio dos estudantes panamenhos invadindo a área para colocar bandeiras do Panamá, em maio de 1958. Uma pauleira danada. As tropas de ocupação norte-americana não aceitavam a contestação do seu domínio e revidaram com brutalidade. Essa manifestação estudantil (que hoje tem 60 anos) foi o início de uma luta mais agressiva pelo controle nacional do canal. O motorista, que era de poucas palavras, na hora em que passávamos na frente dos prédios, disse que eles já foram dos norte-americanos e hoje são prédios públicos – um deles uma universidade. Em poucas palavras, ele resumiu a passagem de um período histórico e, talvez, de um ainda vigente orgulho nacional.

Em 1939, o Panamá perdeu a condição de protetorado norte-americano. E, em meados da década de 50, incentivado pelo controle egípcio do Canal do Suez (conquistado por Nasser), o movimento estudantil panamenho abraçou a causa do canal e pouco a pouco a proposta ganhou o conjunto da sociedade e até da sua classe dirigente. Na década de 70, o presidente militar Omar Torrijos forçou a abertura das negociações com os Estados Unidos e, em 1977, um tratado reviu os termos da concessão. Em 1999, enfim, o canal passou a ser administrado por uma agência do governo panamenho, a Autoridad del Canal de Panamá (ACP).

Durante a maior parte da luta pelo controle do canal, um projeto de desenvolvimento nacional empolgou os panamenhos. Um projeto desenvolvimentista (daqueles que se tornaram dominantes na América Latina desde os anos 50) que visava o crescimento industrial, a inclusão dos trabalhadores, muito além da atividade de prestação de serviços ao comércio internacional. A partir de 1990, no entanto, os governos panamenhos passaram a endossar o ideário neoliberal e a argumentar que o país devia se especializar na prestação de serviços, pois essa era a atividade tradicional do país. Junto com isso, políticas de desregulamentação, flexibilização e privatização foram implementadas. O antigo projeto nacional ruiu e, seguramente, o Panamá que eu vi não foi aquele que era almejado nos anos 70, quando o acordo de 1903 passou por séria revisão.

Nos últimos anos, a capital ganhou ares extremamente modernos (ver foto abaixo), a ponto de ser chamada de “Miami da América Central” e/ou a “Dubai das Américas”. Para o turista que passeia pela cidade, um cenário impactante de prédios arrojados e sofisticados shoppings com as grifes mais famosas do mundo. Um território internacionalizado.



Foi essa a Cidade do Panamá que visitei. Encostado na murada da sacada de Miraflores vi passar um veleiro de passageiros e logo depois um petroleiro. No museu, peguei um informativo chamado “El Faro” (Revista Informativa del Canal do Panamá) que propagandeava os recentes acordos com os chineses para os seus navios cruzarem o canal e alcançarem a Europa. Os chineses desistiram de construir um canal próprio (na Nicarágua) e, pelo que entendi, já são parceiros dos grandes negócios que se realizam na capital panamenha. Negócios e mais negócios. Entre eles, a da nova rota da seda marítima unindo a China e a Europa, conforme propôs o presidente Xin Jinping. O Panamá como país neutro, negociando tanto com os norte-americanos quanto os chineses...

Bacana poder assistir aos navios cruzando as eclusas de Miraflores e constatar as mudanças que ocorreram no Canal. As mudanças que não vingaram (aquelas de orientação nacionalista) e as mudanças que foram vitoriosas (aquela de caráter neoliberal e internacionalizante).

Naquele dia, já tarde da noite, terminei o passeio numa mesa de bar, numa calçada da praça Simon Bolívar, junto com o motorista e minha companheira. Tomei uma taça de sangria, o motorista e minha companheira beberam refrescos, e conversamos amenidades sobre a cidade panamenha. Estávamos no território antigo da Cidade do Panamá – um bairro chamado Casca Vieja – com prédios de aspecto colonial muito bem restaurados. Uma paisagem urbana caribenha muito semelhante à de Havana – mas muito melhor conservada. E não pude deixar de lembrar que os projetos nacionais desenvolvimentistas dos anos 50, 60 e 70 não sucumbiram. Nem mesmo o projeto radical instaurado pela Revolução Cubana não deu todos os frutos almejados. Vitoriosa foi essa onda neoliberal que não é favorável às classes populares, tanto do Panamá quanto da América Latina em geral, mas que constrói cenários deslumbrantes para os endinheirados.

Naquela noite, hablando espanhol precariamente, paguei em dólares a conta das bebidas na mesa de calçada de Casca Vieja. No outro dia de manhã, antes de embarcar para Cancún, dei uma banda num enorme shopping center cheio de marcas famosas. E, apenas de longe, avistei o Panamá popular – das habitações populares – que não foi contemplado com a modernização excludente e neoliberal.