quinta-feira, 30 de março de 2023

Almoço com sonhos

 

Um dia, quando lecionava em Canoas, fui almoçar na casa de dois alunos na Mathias Velho. Dois irmãos, um guri e uma guria, alunos de séries diferentes (quinta e sexta, se não me engano) e muito pequenos, menores que seus colegas da mesma idade (acho que sofriam de nanismo). Ele, com um sorriso maroto e muito conversador; ela, com uns olhos de cachorrinho pidão e tímida. Insistiram no convite diversas vezes, eu protelei o que pude, até que não deu mais.

Eles moravam numa casa de madeira, erguida um pouco acima do chão (três ou quatro degraus) para enfrentar a água das enchentes. A terra era muito escura ao redor da casa e eles me mostraram a horta. Explicaram que a terra não era boa, mas o pai e a mãe insistiam, pois “sempre foram de plantar”. Depois apontaram para umas gaiolas pequenas, com alguns coelhos, e disseram que a criação dos bichos era “invenção do pai”. Os animais, espremidos nas gaiolas, pareciam assustados.

Não, eles não me serviram carne de coelho, naquele dia. Os pais estavam “no serviço, na cidade”, eles próprios tinham preparado a comida e colocaram as panelas com muito orgulho sobre a mesa. Acho que comemos arroz e feijão, com verduras da horta, e eles falaram muito a respeito dos seus planos de crescerem e fazerem sucesso na TV. Ela seria apresentadora de noticiário de TV; ele, o jornalista que “escreveria as notícias”. Hoje, tenho a impressão de que o motivo do convite era este: me perguntar se este sonho era possível. Eles, filhos de uma família do campo, recém chegados ao mundo da cidade, tinham chance de fazer sucesso na televisão? Menti com toda a delicadeza que estava ao meu alcance.

– Sim, bastava estudar. A televisão estava crescendo. Na verdade, os meios de comunicação em geral se expandiam, exigiam muitos profissionais... Vai surgir uma oportunidade pra vocês.

De modo algum falei algo que murchasse a bola das crianças. Pelo contrário. Eu cursara alguns semestres de Jornalismo, trabalhara numa rádio de Porto Alegre e conhecia alguma coisa da área de Comunicações. Hoje, acho que devo ter falado sobre isso na sala de aula e eles me pegaram para conferir.

Preconceituosamente ou não, achei os seus sonhos mirabolantes. Mas quem vive no mundo escolar geralmente participa do ideário de que “se a pessoa quer, basta estudar, se esforçar” e eu segui o roteiro.

Ao final da refeição, caminhamos juntos até a escola e eles me pareciam felizes. Talvez eu dissera o que eles queriam ouvir e o almoço fora um sucesso, do ponto de vista deles. Mas eu estava incomodado. Não tinha sido honesto e não gostara. Sabia que professor é, muitas vezes, uma espécie de ator de radionovela – “Está bem, Maria Augusta. Se isso que você deseja, farei tudo para que dê certo.” –, mas eu ainda não estava conformado ao papel. No fundo, queria ser o professor que “desenvolve o espírito crítico dos alunos”, uma cantilena que me acompanhou por décadas.

quarta-feira, 29 de março de 2023

O personagem

 

Releio as últimas crônicas do blog (a respeito do início da minha trajetória de professor) e percebo que falta definir melhor o personagem que eu fui. Uma história não fica boa, se o personagem não é bem apresentado.

Pois bem, esse professor era um jovem recém formado, magro, cabeludo e barbudo. Vestia calça de brim, camiseta, e calçava tênis. No verão, sandálias franciscanas. Muitos usavam bolsas de couro, mas ele sempre preferia as pastas. Não sei quando descobriu as pastas com alças. Ou quando elas ficaram mais acessíveis e ele passou a usá-las.

O personagem nas areias da Praia Grande.
Itapuã, Viamão / RS.

Quanto ao universo mental, acho que a nota principal era a posição contrária “aos militares e a todas as formas de autoritarismo”, a começar pela “estrutura autoritária da tradicional família brasileira”. Anticapitalista, desconfiava do modelo soviético e apostava em possíveis reformas. Neste sentido, a criação do Sindicato Solidariedade configurou-se numa espécie de norte, isto é, uma esperança de democratização do sistema soviético ou algo assim.

Tinha uma admiração desbragada pela Revolução Cubana, em especial quanto ao seu caráter anti-imperialista, mas fazia ressalvas quanto ao modelo político (que, na verdade, não compreendia).[i] Neste aspecto, o modo como o PT se construía, rompendo com a esquerda tradicional (o PCB e o PCdoB) caia feito uma luva nas esperanças e ingenuidades do jovem professor. Um novo partido que era tema para discussões intermináveis.[ii]

Acho que isso dá o tom da cabeça desse personagem que pegava o ônibus para Alvorada, de manhã cedo, e ia lecionar numa escolinha de madeira, na beira da estrada, nos anos 1978 e 79.

Só fica faltando indicar o lugar do Catolicismo na sua formação. Afinal, ele foi coroinha quando guri (em Pelotas, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus) e, entre os 15 e 16 anos, integrante da juventude católica (em Porto Alegre, na Igreja São Pedro). No último caso, teve um padre-orientador que citava as resoluções da Conferência de Medelin (aquela da “opção preferencial pelos pobres”), o que o colocou (sem nenhuma contrariedade) nos marcos do Catolicismo reformado a partir do Concílio Vaticano II.

Apesar de ter rompido com a Igreja aos 17/18 anos, sua sensibilidade continuou profundamente católica e só se deu conta disso muito tempo depois. No entanto, volta e meia percebia que seu ateísmo era mais teórico do que qualquer outra coisa.[iii]

Em poucas linhas, penso que está aí o personagem que eu era: um esquerdista de classe média, com tinturas católicas. Entrava em sala de aula, pegava um pedaço de giz e não apenas colocava no quadro as características da nossa formação social – a marca europeia dominante, o combate à população indígena, a escravização de negros africanos – como se indignava com o nosso passado histórico e sonhava com a “transformação radical” do nosso presente.

         – É isso que precisamos compreender – dizia... para uma cambada de crianças das quintas séries, com petulância e ingenuidade, naquela escolinha de madeira, na periferia de Porto Alegre, no final da década de 1970. Depois foi abrandando, abaixando o tom, algo assim.


[i] Não preciso dizer que fui mais um, entre os milhares, de jovens leitores de “A Ilha”, livro reportagem de Fernando Morais a respeito de Cuba (Editora Alfa Omega, 1976).

[ii] Em 79, me integrei de modo informal ao Movimento de Emancipação dos Trabalhadores (MEP) e, por meio dessa organização, participei de reuniões preparatórias do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas isso durou um ano. Logo me dei conta que não tinha perfil para a militância partidária.

[iii] Em 1985 ou 6, ao final das aulas noturnas na Escola Ana Néri, me recordo de dizer a um colega que “devíamos colaborar para a redenção da classe operária”. Ele riu e eu me dei conta: estava na cara a minha disposição religiosa, ainda.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Os leões da Assíria

 

Em 1983, após aprovação em Concurso Público, fui nomeado em duas escolas de Porto Alegre – uma no Bairro Minuano (Escola Estadual Ana Néri); outra no Bairro Rubem Berta (Escola Técnica José Feijó) – e iniciei uma outra etapa como professor. Estava mais calejado e passei a lidar melhor com os alunos. Não lecionava mais para crianças, mas para adolescentes e jovens adultos, e isso me oferecia melhores condições de diálogo. Era possível perguntar e ouvir os alunos sem dar muitas voltas, sem precisar adivinhar o que eles estavam dizendo.[i]

Na Escola Ana Néri, me designaram as turmas da noite (Ensino Supletivo), com um número expressivo de alunos que trabalhavam e chegavam cansados na aula. Não era raro um e outro cochilarem sentados. A maioria com grande dificuldade de leitura e interpretação de texto, mas sempre muito bom ouvi-los falar.

Esses alunos desvendavam mundos e também formas de pensar e sentir que eram uma surpresa para mim. Trabalhavam em lojas, oficinas, bares e hotéis (não recordo de nenhum no mundo fabril), e muitas vezes se sentiam assustados com a realidade que enfrentavam. A grande maioria viera de pequenas cidades do interior do estado, com grandes esperanças (às vezes tremendas ilusões) e Porto Alegre era um desafio enorme. Muitas vezes maior que suas forças, eu tinha impressão. (Havia também alunos vindos da zona rural, mas esses não falavam, sei lá, talvez se intimidassem diante do professor que eu era.)

Pouco sabiam da cidade onde estavam morando, não conheciam os seus prédios importantes (a Catedral, o Palácio Piratini, p.ex.) e muitos ficavam restritos ao trajeto entre as suas casas, o trabalho e a escola. Falavam de jornadas de trabalho extensas, horas cansativas nos ônibus, correria para as refeições e finais de semana nos quais dormiam, lavavam roupa, tentavam estudar e se esparramavam no sofá para assistir televisão (quando havia TV em casa). Às vezes eu ficava espantado com a pequenez de suas vidas.

Leão do palácio de Nimrud (Assíria, séc. IX a.C.)
Museu Glyptoteket (Copenhague)

Uma noite, numa aula de História Antiga, me referi aos leões da Assíria (leões esculpidos nos palácios da Assíria), mostrei a gravura no livro didático (que resumia todo o material visual que eu dispunha) e fiz uma analogia com os leões colocados nas laterais das escadarias da Prefeitura Velha.

– Estes leões estão colocados ali também como símbolos de poder – expliquei. – Vocês já viram quando foram ao centro da cidade?

Ninguém tinha visto, mesmo os que trabalhavam no centro. E acharam estranho eu vincular tempos e realidades históricas tão distantes.

Leão da Prefeitura Velha (P. Alegre)
Fonte: Wikipédia

Não havia celular para acessar o Google e, na mesma hora, todo mundo tomar conhecimento dos leões dos palácios da Assíria, os da Prefeitura de Porto Alegre ou os de algum prédio oficial de Londres ou Madri. Visto de hoje, um quadro de pobreza extrema, mas acho que era assim, de modo geral, o mundo das escolas estaduais. E, na Escola Ana Néri, não exagero ao afirmar que a situação era franciscana, expressada na construção de madeira dos prédios escolares – muito bem conservados e limpos, por sinal –, nas salas pequenas, com classes muito próximas umas das outras, pouco espaço para circular, e iluminação fraca. Dava dó acompanhar o esforço dos alunos para ler e escrever nos cadernos.

Mas era assim. E, neste universo precário, um professor presunçoso queria que os alunos se interessassem pelos leões da Assíria e estabelecessem relações como os leões da Prefeitura da cidade onde viviam...



[i] Escrevo isso, constato a minha visão limitada da infância e repiso a importância tremenda de professores bem preparados para lidar com as . Assim como relembro o horror, o horror (era assim que eu sentia e ainda sinto), que é o modo como o sistema de ensino trata os professores das primeiras sérias, o quanto não os valoriza, etecetera, etecetera.

domingo, 19 de março de 2023

Rua de pura terra

            Quando lecionava em Canoas, numa escola entre os bairros Harmonia e Mathias Velho, a rua não era calçada nem asfaltada. Pura terra, apenas patrolada por máquinas da Prefeitura, uma vez ou outra. Quando chovia, um lodaçal tremendo. Era uma arte atravessá-la e entrar na escola sem estar completamente embarrado.

Mas isso foi no início da década de 1980. Quando voltei lá, em 2012, a rua ganhara asfalto. A escola permanecia a mesma – com as mesmas paredes de tijolos avermelhados –, mas o entorno mudara e fiquei com a impressão de uma melhoria geral.

Será? Não falei com ninguém, com nenhum professor, funcionário ou aluno, só olhei aquele mundo de fora, andando pela rua, especulando a respeito do que acontecera.

O que meus alunos contavam, no início dos anos 80, não entusiasmava muito. O que eles falavam a respeito do trabalho era de que as jornadas eram cansativas e os salários, minguados. (As precárias condições urbanas não estavam entre as principais preocupações.) Haviam empregos ótimos na indústria local, mas exigiam uma qualificação que a maioria não sabia como obter.

Nesse horizonte, o quartel era uma das possibilidades de mudança:

– Quando meu irmão serviu, ele começou a lidar com caminhão e hoje trabalha numa oficina – contou um aluno, sonhando repetir a trajetória familiar e aprender algum ofício quando estivesse no Exército.

Lembro que comecei a pensar que as Forças Armadas poderiam servir para alguma coisa além de ser “instrumento de dominação à serviço do Capital”.

Uma noite (num intervalo de aula no ensino noturno) um aluno me falou que o trabalho no tráfico de drogas local garantia, em uma semana, um rendimento equivalente a um salário mínimo. Acho que demorei a encontrar alguma coisa para dizer que o dissuadisse do mundo marginal (o da economia das drogas), mas certamente não falei grande coisa. Eu estava diante de uma realidade muito distante da minha capacidade de compreensão.

Naquela noite, a aula era sobre Revolução Francesa, o rumo que o processo de ruptura com o Antigo Regime tomara com Napoleão Bonaparte, a consolidação do domínio da burguesia, essas coisas. E o mesmo aluno me perguntou porque precisava estudar aquilo...

– Para entender o mundo que vivemos – eu devo ter dito, pois era isso que eu pensava, com a certeza de que o currículo oficial de História servia para alguma coisa.

Eu descia do ônibus na frente da escola e, se estivesse chovendo, caminhava com todo cuidado para não me embarrar completamente. Minhas aulas eram no turno da tarde e da noite, e cumpria meu horário com satisfação. Dava aulas sobre as revoluções Industrial e Francesa, a construção do Mundo Contemporâneo na Europa, a formação do Estado Nacional brasileiro... acreditando que era importante compreender isso, se um dia quiséssemos mudar a sociedade.

– Mudar o quê, professor? – escutava um aluno perguntar do fundo da sala de aula, enquanto uma aluna suspirava entediada, abaixava a cabeça e examinava detidamente as unhas.

          Meus tênis frequentemente estavam embarrados, mas eu não notava. Às vezes chegava em casa, sujava o chão da sala (acarpetado, como era comum na época) e lembro que um dia foi necessário que minha mulher me apontasse os calçados sujos. Imundos, provavelmente.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Semana da Pátria

 

Foi em setembro de 1982, durante as festividades da Semana da Pátria. Eu lecionava numa escola estadual de Canoas, o desfile da juventude acontecia no Bairro Mathias Velho (na avenida principal, que era uma das poucas ruas asfaltadas no bairro, naquele tempo) e acompanhei os alunos. A gurizada formava dois ou três batalhões, coordenados pelos professores de Educação Física, e eu caminhava ao lado das turmas, dando apoio. Tarde de sol de primavera com alguma poeira no ar, e muita compenetração por parte dos estudantes.

Quando o desfile terminou, o professor de Técnicas Agrícolas, que dirigia um pequeno trator, me convidou a subir no reboque junto com alguns alunos para voltarmos para a escola.[i] As ruas eram de terra, o terreno irregular, e solavanco era o que não faltava. Isto exigia muito cuidado para não cair e boas gargalhadas também. O professor na direção sabia que eu não tinha prática nesse tipo de veículo e avisou os alunos:

– Cuidado com o professor Vítor que ele é da cidade.

Para mim, uma experiência inusitada. Um mergulho na realidade da periferia da região metropolitana (brutal aos olhos de um morador de bairro de classe média porto-alegrense, chocado com as valas abertas para o esgoto). Além dessa vivência numa realidade social desconhecida, a convivência fraterna com os alunos fora da sala de aula (o que sempre é enriquecedor para um professor).

Depois de chegarmos à escola, o professor de Técnicas Agrícolas e eu fomos tomar café na cantina. Ele era morador de Canoas, conhecia o bairro Mathias de ponta a ponta e pretendia se lançar na política partidária, em algum partido de esquerda.[ii]

A situação política local era muito rica e tanto existiam os militantes religiosos (sem vinculação partidária), que lideravam ousadas invasões de terras no “fundão da Mathias”, quanto a ação incisiva do Sindicato dos Metalúrgicos, atuando nos marcos da legalidade e presidido, então, por Paulo Paim, ainda sem filiação partidária naquela época. Segundo meu colega, petistas e pedetistas disputavam parelho a liderança entre os trabalhadores e logo o pessoal das invasões ia precisar se posicionar na política partidária. Ele ponderava qual partido com maior probabilidade de crescimento e êxito eleitoral e eu o escutava com atenção.

Não recordo em qual partido meu colega se filiou (PT, PDT ou algum outro) e nem se andei novamente no reboque do pequeno trator. Em maio de 1983 (após aprovação em Concurso Público) fui lecionar em Porto Alegre e aquela tarde de Semana da Pátria ficou como um quadro na “parede da memória”. O registro de uma vivência num bairro popular, na periferia de Porto Alegre, repleto de signos da trajetória de um professor: estudantes marchando, um passeio de trator com a gurizada e a tentativa de entender a reorganização da esquerda em partidos legais, "no processo de abertura do Regime Militar". Um bom assunto para lembrar e esmiuçar.



[i] A escola tinha origem no PREMEN e, apesar deste projeto ter sido desativado, mantinha a estrutura das disciplinas técnicas em funcionamento (Técnicas Agrícolas, Industriais, Comerciais e Domésticas), com os devidos equipamentos e máquinas, inclusive um pequeno trator. Um luxo, este trator, se eu pensar as escolas públicas que conheci.

[ii] Aprendi, com o tempo, a dizer “o Bairro Mathias Velho” (a partir dos estudos acadêmicos sobre a região), mas recordo que o comum era dizer “a Mathias”, a Vila Mathias Velho (provavelmente a sua designação original).

segunda-feira, 6 de março de 2023

Mundo arcaico, pré-capitalista

 

Minha atividade como professor iniciou em 1976, quando ainda era estudante de História. Um amigo (João Cavedini) lecionava numa escola particular de Cachoeirinha e me indicou. Mas só aguentei meio ano.[i] Tive dificuldade em enfrentar a gurizada das quintas e sextas séries do 1º Grau, situação agravada pelo fato de serem crianças que viviam num ambiente (o da região metropolitana de Porto Alegre) desconhecido por mim. A escola (um prédio de alvenaria inacabado) ficava numa área carente de infraestrutura urbana, a poucas quadras do poluidíssimo Rio Gravataí, e eu não sabia como era viver num ambiente degradado como aquele.

Em 1978, já formado, consegui um contrato numa escola estadual de Alvorada e, aí sim, passei na prova de fogo. Novamente estava trabalhando na região metropolitana, num grupo escolar originário das antigas brizoletas (três prédios de madeira em precárias condições de conservação), mas não esmoreci. Lecionava História do Brasil para as quintas séries, às vezes os alunos e eu não nos entendíamos, mas seguia em frente. Eu usava a palavra “operário” e um dia descobri que eles preferiam “industrialista”, pois o termo “operário” tinha algo de pejorativo. Ou industrialista representava uma categoria acima de operário, nunca entendi.

Procurei me ajustar à linguagem que eles utilizavam e não exagero ao dizer que me esbugalhava explicando cada termo que constava do programa: latifúndio, escravismo, monopólio, sistema colonial e absolutismo monárquico, por exemplo. E porque os livros falavam em operários e não em industrialistas para designar os trabalhadores das fábricas.

Às vezes eu achava que vinha de outro mundo, parava a aula e pedia para eles contarem a respeito das suas vidas. Eles puxavam as histórias mais escabrosas de violência – como a das cabeças decepadas que as quadrilhas em disputa deixavam no meio da rua – e riam da minha cara de espanto. “Que mundo era esse?”, eu me perguntava.[ii]

Entre 1980 e 83, fui trabalhar em Canoas, numa escola estadual entre os bairros Harmonia e Mathias Velho, e fiquei com a impressão de que meu diálogo com os alunos melhorara.[iii] Em parte porque eu estava mais experiente, outro tanto porque optara por abordagens mais tradicionais da História, com terminologia mais acessível.[iv]

O Paulo Freire da “educação dialógica” era uma referência fundamental e diversas vezes criei situações para os alunos falarem das suas realidades, de como viviam, na linguagem que conheciam. Eles patinavam no exercício dessa prática e eu também tinha minhas dificuldades. Muitos vinham do interior do Estado – da zona rural de Rio Pardo ou Dom Pedrito, da periferia de Caçapava ou Encruzilhada do Sul – e não ficava claro qual a situação socioeconômica em que viviam. Ao mesmo tempo, o meu aparelho conceitual não dava conta da realidade social na qual eles viviam. “Mas, afinal, o Rio Grande do Sul não vive um processo de modernização capitalista?”, eu me perguntava.[v]

Alguns contavam que suas famílias viviam há anos num determinado “campo” e eles não sabiam dizer se tinham sido proprietários ou não. “O pai saiu sem dinheiro nenhum”, explicavam. Ou então falavam que os pais trabalhavam para um fazendeiro e não ficava claro se recebiam um salário regular ou não. “Carteira assinada o pai não tinha não”, recordo um aluno contar (um rapazinho por volta dos 15 anos). Acho que para a maioria o trabalho formal ainda era uma realidade distante.

Conversando outro dia com a faxineira (cujo pai foi capataz em fazenda na região do atual município de Itaara) lembrei das histórias dos meus alunos. Ela contou que a mãe ia capinar no cemitério local, levava todos os filhos, e ninguém ganhava coisa alguma do patrão por conta disso. Era tarefa arrolada nos deveres do capataz. “O pai recebia um salário e a capina do cemitério cabia à mãe”, a faxineira explicou, “sem que ela ganhasse coisa alguma”.

Um mundo pré-capitalista ou pré-moderno, no jargão das Ciências Sociais. Um mundo arcaico, sem relações de trabalho regulamentadas e passíveis de fiscalização. As famílias dos meus alunos fugiam desse universo, considerado brutal por muitos de nós. Eu ouvia, anotava, e até hoje busco compreender.



[i] Escola Particular Nossa Senhora de Fátima.

[ii] Eu desconfiava de que os alunos estavam exagerando, mas fiz uma pesquisa nos jornais (na época) e encontrei a notícia sobre as cabeças decepadas.

[iii] Escola Estadual de 1º Grau Affonso Charlier, com construção datada do período do projeto PREMEN, fruto dos Acordos MEC-USAID, e realizada numa área de banhado, aterrada na década de 1960.

[iv] A substituição dos livros de História de Luciano Ramos (publicados pela Editora Brasil) pelos de Francisco M. P. Teixeira (Ed. Ática) certamente contribuíu para uma abordagem mais light.

[v] Em Triunfo, a poucos quilômetros de Canoas, estava em construção (desde 1976) o III Polo Petroquímico do país, visto como um empreendimento capaz de alavancar a indústria do RS. O Polo atraia trabalhadores de todo o Estado, muitos deles estabelecendo-se na Vila Mathias Velho (que ainda tinha áreas desabitadas – algumas delas invadidas de forma organizada a partir de 1979).