segunda-feira, 20 de março de 2023

Os leões da Assíria

 

Em 1983, após aprovação em Concurso Público, fui nomeado em duas escolas de Porto Alegre – uma no Bairro Minuano (Escola Estadual Ana Néri); outra no Bairro Rubem Berta (Escola Técnica José Feijó) – e iniciei uma outra etapa como professor. Estava mais calejado e passei a lidar melhor com os alunos. Não lecionava mais para crianças, mas para adolescentes e jovens adultos, e isso me oferecia melhores condições de diálogo. Era possível perguntar e ouvir os alunos sem dar muitas voltas, sem precisar adivinhar o que eles estavam dizendo.[i]

Na Escola Ana Néri, me designaram as turmas da noite (Ensino Supletivo), com um número expressivo de alunos que trabalhavam e chegavam cansados na aula. Não era raro um e outro cochilarem sentados. A maioria com grande dificuldade de leitura e interpretação de texto, mas sempre muito bom ouvi-los falar.

Esses alunos desvendavam mundos e também formas de pensar e sentir que eram uma surpresa para mim. Trabalhavam em lojas, oficinas, bares e hotéis (não recordo de nenhum no mundo fabril), e muitas vezes se sentiam assustados com a realidade que enfrentavam. A grande maioria viera de pequenas cidades do interior do estado, com grandes esperanças (às vezes tremendas ilusões) e Porto Alegre era um desafio enorme. Muitas vezes maior que suas forças, eu tinha impressão. (Havia também alunos vindos da zona rural, mas esses não falavam, sei lá, talvez se intimidassem diante do professor que eu era.)

Pouco sabiam da cidade onde estavam morando, não conheciam os seus prédios importantes (a Catedral, o Palácio Piratini, p.ex.) e muitos ficavam restritos ao trajeto entre as suas casas, o trabalho e a escola. Falavam de jornadas de trabalho extensas, horas cansativas nos ônibus, correria para as refeições e finais de semana nos quais dormiam, lavavam roupa, tentavam estudar e se esparramavam no sofá para assistir televisão (quando havia TV em casa). Às vezes eu ficava espantado com a pequenez de suas vidas.

Leão do palácio de Nimrud (Assíria, séc. IX a.C.)
Museu Glyptoteket (Copenhague)

Uma noite, numa aula de História Antiga, me referi aos leões da Assíria (leões esculpidos nos palácios da Assíria), mostrei a gravura no livro didático (que resumia todo o material visual que eu dispunha) e fiz uma analogia com os leões colocados nas laterais das escadarias da Prefeitura Velha.

– Estes leões estão colocados ali também como símbolos de poder – expliquei. – Vocês já viram quando foram ao centro da cidade?

Ninguém tinha visto, mesmo os que trabalhavam no centro. E acharam estranho eu vincular tempos e realidades históricas tão distantes.

Leão da Prefeitura Velha (P. Alegre)
Fonte: Wikipédia

Não havia celular para acessar o Google e, na mesma hora, todo mundo tomar conhecimento dos leões dos palácios da Assíria, os da Prefeitura de Porto Alegre ou os de algum prédio oficial de Londres ou Madri. Visto de hoje, um quadro de pobreza extrema, mas acho que era assim, de modo geral, o mundo das escolas estaduais. E, na Escola Ana Néri, não exagero ao afirmar que a situação era franciscana, expressada na construção de madeira dos prédios escolares – muito bem conservados e limpos, por sinal –, nas salas pequenas, com classes muito próximas umas das outras, pouco espaço para circular, e iluminação fraca. Dava dó acompanhar o esforço dos alunos para ler e escrever nos cadernos.

Mas era assim. E, neste universo precário, um professor presunçoso queria que os alunos se interessassem pelos leões da Assíria e estabelecessem relações como os leões da Prefeitura da cidade onde viviam...



[i] Escrevo isso, constato a minha visão limitada da infância e repiso a importância tremenda de professores bem preparados para lidar com as . Assim como relembro o horror, o horror (era assim que eu sentia e ainda sinto), que é o modo como o sistema de ensino trata os professores das primeiras sérias, o quanto não os valoriza, etecetera, etecetera.

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