quinta-feira, 17 de março de 2022

Viver em apartamento

            Viver em prédio de apartamentos tem as suas peculiaridades. Estamos mais pertos dos vizinhos do que vivendo numa casa – ou, ao menos, é essa a minha experiência. Morei numa casa com quintal até os onze anos de idade, em Pelotas, e nem sabia o que se passava nas casas ao lado.

Morava na chamada Zona do Porto, uma região bastante urbanizada, abria a porta da rua e dava na calçada. Hoje, abro a “porta da rua”, dou num corredor e me deparo com as portas de outros dois outros apartamentos. Às vezes, pelos ruídos que escuto, sou capaz de dizer se os vizinhos estão em casa ou não.

Em 1967, minha família se mudou de Pelotas para Porto Alegre e desde então vivo em apartamento. No primeiro deles (na Rua Sete de Abril), eu chegava na janela da sala e dava para um espaço interno de quarteirão. Para frente, as paredes de um prédio de dois andares e um pequeno pátio com várias janelas abrindo-se para ele. Abaixo da minha janela, o pátio do apartamento térreo do meu prédio, onde eu enxergava a vizinha cantarolando e estendendo roupa no varal.

Esse primeiro endereço era num prédio de três andares (morávamos no primeiro) e tenho a impressão de que suas paredes eram grossas. Ou, ao menos, possuíam uma vedação acústica bem feita, pois não recordo de ruídos da vizinhança atravessando as paredes. Muito diferente do que vivenciei tempos depois.

Muitos anos depois, já vivendo em Santa Maria, eu escutava a vizinha que morava acima do meu quarto, quando ela transava com o marido. Jovem recém casada, ela gemia de um modo peculiar, com um gemido fino, muito semelhante a um miado. Um som inusitado. Atravessava as paredes, nas horas mais improváveis da noite.

Morei quinze anos nesse apartamento e não recordo de outros gemidos ou gritos de cena sexual do quarto de cima ou abaixo do meu. Não era um prédio de construção barata, mas certamente não tinha a vedação acústica que os prédios mais antigos parecem ter.

Hoje, a lembrança da vizinha miando é engraçada. Na época, às vezes desconcertava. Eu estava lendo na cama, a minha companheira ao lado dormia (ou tentava conciliar o sono), e súbito éramos lembrados da vida sexual dos vizinhos. Minha mulher abria o olho, virava para mim, fazia uma cara de “pô, me acordou” e aguardávamos os minutos de praxe para o encerramento da função.

Viver em prédio de apartamentos tem dessas coisas: essa proximidade às vezes constrangedora. Um pouco cômica, outras vezes. E escrevo sobre isso lembrando da minha casa em Pelotas, onde, deitado na minha cama de menino (no quarto que dividia com meus dois irmãos, com janelas para as ruas Uruguai e Santa Cruz), às vezes eu escutava um gato miando na calçada, certamente correndo na direção de um muro, para o qual saltava num movimento ágil.

Um miado de gato na imensidão da noite, que minha imaginação de menino procurava dar forma e brilho... como, mais tarde, aos escutar os gemidos da vizinha, o adulto que me tornei dava movimento e gestos ao casal do apartamento acima do meu.

A casa da infância, com janelas para as ruas Uruguai e Santa Cruz.