sexta-feira, 7 de maio de 2021

Quintana: Velório sem defunto

             Velório sem defunto foi o último livro publicado pelo poeta Mário Quintana. Naquela época (1990) ele tinha 84 anos e o título era claramente uma provocação e uma ironia desconcertantes. Lembro que foi assim que meus amigos e eu recebemos o livro[1].

No poema “Inquietude”, o poeta escreve, como quem não quer nada: “Sinto-me assim, sem motivo algum, / Como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem camarões / Num velório sem defunto...”.

Impressionante o fato do poeta estar em idade avançada e pensar na morte com humor, sem nenhum traço de amargura. “Nas despedidas / O mais doloroso é que / – tanto o que fica como o que vai embora – / Põem-se os dois a pensar: / Meu Deus! quando é que parte o raio deste trem!” (“As despedidas”)

Reli numa dessas tardes de pandemia (olhando pela janela o céu ensolarado) na edição da Editora Objetiva (2015), com uma apresentação instigante de Fabrício Carpinejar. Nessa introdução, Carpinejar se refere aos poemas do livro como o “suspiro de um defunto, ainda vivo, lembrando como morreu”. Sarcásticos como se fossem de um personagem machadiano, ele diz – mas um sarcasmo leve, acrescento, mais para ironia do que qualquer outra coisa.

Como afirmou o crítico Luís Augusto Fischer numa entrevista a Zero Hora, “há um quê de rebeldia” na obra do Quintana, mas não “uma rebeldia pró-ativa”. O poeta não joga bomba nos seus inimigos, apenas faz caretas, afirma o crítico. As alegrias e dores da vida (e aí entram as mágoas e ressentimentos) viram canção e ironia na poética de Quintana, como se lê em “Reflexão para o dia de finados”: “Morrer, enfim, é realizar o sonho / que todas as crianças têm... / O motivo? Só elas sabem muito bem: / Fugir... fugir de casa!”

Mas nessa releitura, me chamou atenção os poemas que são comentários a respeito de grandes assuntos da cultura ocidental (outro tema constante nas reflexões irônicas do poeta), dos quais destaco um.

Em “O amor eterno”, Quintana reflete a respeito de um famoso casal de amantes imortalizado na Divina Comédia: “Dante se enganou: Paolo e Francesca / Continuaram bem juntinhos no Inferno, com pecado e tudo / Juntinhos e felizes! / Mas quem sabe se não seria este mesmo o castigo divino? / Um amor que jamais pudesse terminar...”.

Se o leitor não lembra, no Canto V, Dante caminha num dos círculos do Inferno (aquele dedicado aos homens e mulheres que foram conturbados por “carnais intentos”), encontra Francesca de Rimini (que traiu o marido com Paolo) e ela recorda o momento em que foi capturada pelo “vício da luxúria”.

Cito a tradução de Dante Milano: “Nós [Francesca e Paolo] líamos um dia, com delícia, / de como a Lanciloto amor venceu. / Estávamos a sós e sem malícia. // Por vezes seu olhar buscando o meu / (...). // Quando lemos que a boca desejada / fora beijada pelo ansioso amante, / este a quem para sempre estou ligada // beijou-me a boca, tremulo, ofegante. / E o livro (...) interrompendo, / não lemos mais daquele dia em diante.”[2]

Não sei se, em 1990, comentando com meus amigos a respeito do livro, os poemas que comentamos foram os citados acima. Apenas sei que Haroldo Ferreira e eu, numa noite qualquer (depois de um jantar com amigos poetas), descemos a Avenida Borges de Medeiros falando sobre o Quintana e sua recente publicação.

O poeta morava na Cidade Baixa, andava pelo centro com uma sacola no braço, e seguidamente cruzávamos por ele e o cumprimentávamos silenciosamente com um aceno de cabeça. Às vezes ele respondia com um sorriso, outras vezes, não.



[1] QUINTANA, Mario. Velório sem defunto. RJ: Objetiva, 2015. 98 p. (Selo Alfaguara.)

[2] MILANO, Dante. Poesias. Ed. Sabiá / MEC, 1971. p. 163-4. O Lanciloto citado é o cavaleiro Lancelot, da Távola Redonda, e o seu amor é Guinevere, a esposa do Rei Arthur.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

A Igreja de N. Sra. da Glória do Outeiro e D. Pedro I

Em janeiro de 2020, minha então companheira e eu fizemos uma visita guiada pelo Rio de Janeiro, iniciando pela Igreja de N. Sra. da Glória do Outeiro, uma velha igreja colonial construída num morro entre as avenidas que cruzam o aterro do Flamengo. Há um elevador que conduz até o alto, mas, como era cedo (9 da manhã), estava fechado e subimos pela escada.

A igreja foi construída no início do século XVIII, entre os anos de 1714 e 1739, com planta composto por dois octógonos irregulares, dando ao templo um formato de 8, com os espaços curvos típicos do estilo barroco. Um marco na introdução da arquitetura barroca no Brasil.

Revestindo as paredes internas, azulejos azuis e brancos no estilo lisboeta, produzidos pelas oficinas cariocas do Mestre Valentim de Almeida. Temas religiosos no espaço da nave da igreja (referentes ao Cântico dos Cânticos) e temas profanos (de caça) no corredor que circunda a nave e na sacristia. Neste mesmo corredor, duas pias de mármore de lioz português (a mesma pedra das famosas construções lusitanas do século XVI: o Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém).

Pia de mármore de Lioz.

Um espaço agradável, o do interior da igreja, em grande parte devido ao tamanho reduzido, às paredes curvas e aos azulejos. Sentado num banco, olhando os altares (três, no estilo rococó), ouvi a guia explicar que era a igreja favorita de D. João VI e da família real. Na sequência, da corte imperial brasileira também. Ali ocorreram muitas missas e batizados envolvendo figuras da corte. Numa dessas missas, D. Pedro I escapuliu e foi transar com Maria Benedita (irmã mais velha da sua amante Domitília), que morava ali perto. Mas voltou antes da cerimônia religiosa terminar.

Nave central da igreja.

Mais uma lenda do garanhão imperial ou realidade? Não sei. Minha companheira e a guia conversaram a respeito dos amores impulsivos do imperador e só eu não sabia que ele atacara a irmã de Domitília (e a engravidou também). Mas as irmãs o perdoaram. Até o marido de Maria Benedita foi tolerante com o episódio (principalmente depois de receber um cargo de superintendente da Fazenda).

 Na saída da igreja, minha companheira e a guia desfiaram os escândalos da corte do primeiro reinado, enquanto eu, mais uma vez, aprendia a respeito. Nunca soube muita coisa sobre a vida privada de D. Pedro I. Apesar do meu interesse pelos casos amorosos do imperador, nunca os tive muito presente na memória. Nas poucas aulas que ministrei sobre o primeiro reinado, nunca os levei em consideração. Há uma extensa bibliografia tratando dos amores de D. Pedro I, pródigo em escancarar suas aventuras (a ponto de tornar-se folclórico nesse sentido), mas, relativa ao seu filho e sucessor, o número de estudos diminui.

Alguém dirá que isso se deve ao comportamento do filho, o que está longe de ser verdadeiro. D. Pedro II não era um marido fiel, apenas mais discreto. Tão precavido, que até em relação ao seu caso mais duradouro, a relação com a Condessa de Barral, não há provas concretas de “relacionamento íntimo” entre os dois. Isto, ao menos, é o que afirma a historiadora Mary Del Priore no seu livro sobre a Condessa. Tudo indica que os dois foram amantes, mas a dupla não deixou rastros (queimou todas as cartas que os pudessem comprometer, p. ex.).

Visitar igrejas antigas que foram o território das cerimônias religiosas da corte imperial brasileira às vezes dá nisso: o foco sai do desenho da planta octogonal, da qualidade dos azulejos e descamba para os amores carnais de um imperador por uma marquesa e sua irmã, o sofrimento da esposa, seu adoecimento e morte.

Viajar é um prazer que não termina. Uma coisa puxa outra e, tempos depois, ainda rende. Foi lendo sobre D. Pedro e Domitília que recordei da igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro... D. Pedro escafedeu-se da missa e foi transar com uma moradora das redondezas. Voltou sorridente antes da cerimônia acabar e na certa deu o braço para a esposa e, juntos, desceram a escadaria do morro. O Demonião (codinome que D. Pedro usava na correspondência com Domitília, a sua Titília) não era flor de algodão.