domingo, 17 de março de 2024

O avesso da pele

 

As secretarias estaduais de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná afirmaram em nota que o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, apresenta “expressões impróprias” e, por este motivo, recolheram o livro das escolas. A obra foi lançada em 2020, premiada pelo Jabuti, e selecionada e distribuída pelo PNLD, do MEC, para alunos de Ensino Médio. No Rio Grande do Sul também houve intenção de retirar o livro das salas de aula, por parte de uma diretora de escola estadual, em Santa Cruz, mas o governo estadual não endossou a iniciativa.

No caso do Rio Grande do Sul, a professora Janaína Venzon (a diretora de escola que se manifestou contra o livro) se justificou com o argumento de que, “nesse momento que a gente vive”, é muito difícil trabalhar uma obra com “esse vocabulário” com alunos menores de idade.

Quem conhece a realidade escolar sabe que a professora não está dizendo bobagem. A abordagem da sexualidade (seja com palavras impróprias ou não) é capaz de causar reboliço numa escola e tontear a vida de um professor. É preciso habilidade & coragem para encarar o assunto. Não estou justificando a censura, apenas comentando a respeito do mundo escolar. Por muito menos, uma novela juvenil de minha autoria (Jorge encontra Lilian, publicada de modo independente) causou um fuzuê numa escola de Ensino Fundamental. O personagem-narrador (a novela é escrita em forma de diário) utiliza a palavra “felação”, a mãe de uma aluna ficou sabendo, foi pra cima da diretora e a coordenadora pedagógica penou para justificar a adoção do livro.

A professora Janaína vive em Santa Cruz e, ao se referir ao “momento em que a gente vive”, certamente está se referindo ao peso do conservadorismo na cidade. Afinal, no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro obteve 60,15% dos votos válidos e, na certa, o moralismo rasteiro a que essa orientação política dá voz deve estar em alta. Assim, se o tema da sexualidade (com linguagem impropria ou não, volto a insistir nesse aspecto) já era complicado de abordar em sala de aula, com o bolsonarismo a coisa ficou muito mais complicada. A defesa da “inocência das crianças e adolescentes” é argumento que está na ponta da língua dessa gente e haja paciência para aguentar.

Dito isso, acrescento que li o romance quando foi lançado e nem lembro das cenas de sexo nem da linguagem que o autor utiliza. O foco da narrativa é o racismo, a violência policial, e isso (além da qualidade literária do texto, claro) é o que importa. No ano do lançamento fiz uma resenha do livro para o boletim do meu sindicato (SEDUFSM), que reproduzo a seguir.


         A temática da negritude está em alta e o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras, 2020, 188 páginas) a atualiza no cenário sul-rio-grandense. Mais especificamente em Porto Alegre, considerada a cidade mais racista do país, segundo o narrador. Um narrador muito original, por sinal. Um personagem de 22 anos, negro e estudante de Arquitetura (cotista, como ele próprio enfatiza) que se dirige ao pai assassinado durante uma desastrada abordagem policial. Uma narrativa em segunda pessoa com uma força impressionante, capaz de conquistar o leitor nas primeiras linhas:

“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim.”

O pai é um professor negro, nascido no Rio de Janeiro em 1971, que se radicou em Porto Alegre por volta de 1980. Veio para o sul com a mãe e as irmãs e foi morar na Vila Bom Jesus, na casa da avó. Sofreu as agruras por que passam aqueles que têm a pele negra, mas só tomou consciência do racismo quando foi aluno de Oliveira Silveira, num cursinho pré-vestibular. Logo com Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do Grupo Palmares (na década de 1970) e uma das principais expressões da poesia que tematiza a negritude. Um professor, militante e poeta, que é referido diversas vezes ao longo do romance, numa clara homenagem ao seu papel no movimento negro (o Grupo Palmares foi quem primeiro propôs o dia 20 de novembro como data da Consciência Negra).

Pois o pai do narrador se faz um professor de língua portuguesa nas escolas públicas da periferia de Porto Alegre e, após vinte anos de magistério, se sente derrotado pelos adolescentes indisciplinados aos quais se propõe a ensinar. É sobre esse pai, então, que o narrador se debruça e o recompõe por meio da memória e da invenção. Um homem negro que foi massacrado não só pelo racismo (em especial aquele que se manifesta nas abordagens policiais), mas também pelo casamento (que se desfez após o nascimento do filho e que não foi superado até o fim da vida) e pela atividade no magistério público (o qual não lhe proporcionou a vida confortável que sonhara). Um homem que muitas vezes se escondia nos próprios pensamentos e que o filho vira ao avesso, num exercício doloroso de busca da sua humanidade. Uma humanidade que está além da cor da pele e que seus assassinos policiais foram incapazes de perceber.

“Estou reconstituindo esta história para mim”, afirma o narrador, o filho do pai morto. “Uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé.” O avesso daquela imagem de homem negro, com atitudes suspeitas, que foi abordado por policiais do Batalhão de Operações Especiais, na periferia de Porto Alegre.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Forte de Copacabana

           

Estive no Forte de Copacabana dias atrás. Além da fortificação militar, há um conjunto de bares e restaurantes e até uma filial da Confeitaria Colombo. Fui a confeitaria para tomar café com minha companheira, depois de andar 60 minutos (cravados no relógio) pelo calçadão de Copacabana. Após o café, subimos até a parte externa da cúpula dos canhões para olhar a cidade e o mar. Uma vista e tanto. Com direito a tirar fotos e divagar a respeito da paisagem, dos canhões... e das invasões estrangeiras ao território brasileiro.

Estudante de Ginásio, fiquei fascinado pelas histórias de piratas na região, em especial aquela comandada por Duguay-Troin, em 1711, que ocupou a cidade por dois meses (e que li pela primeira vez num livro do Rocha Pombo). Acho que depois desse episódio não houve outra tentativa de invasão na baía da Guanabara e não sei qual o inimigo que os militares brasileiros imaginaram quando instalaram quatro enormes canhões no forte, antes da Primeira Guerra Mundial. Seja qual for, no entanto, uma obra monumental (das maiores realizadas pela engenharia militar brasileira) e que logo se tornou obsoleta devido ao avanço da indústria bélica proporcionada pela Guerra de 1914. (Grande Civilização Ocidental, nenhuma outra criou armas de destruição tão eficazes como a nossa!)

Na hora (caminhando sobre a cúpula dos canhões) disse para minha companheira que os canhões nunca dispararam contra um inimigo estrangeiro. Nunca houve qualquer tentativa de invasão. Mas descobri depois que os canhões foram utilizados para atingir um cruzador brasileiro na década de 1950. Um episódio estranho, mas corriqueiro na história da República brasileira, de tentativa de golpe de estado liderado por forças conservadoras temerosas pelo avanço de um líder progressista, e que passo a narrar a seguir (e convido o leitor a prosseguir, caso ele tenha interesse a respeito dessas chatices da história brasileira).

Em novembro de 1955, governava o Brasil João Café Filho, que assumira a presidência em agosto do ano anterior, devido ao suicídio de Getúlio Vargas.  Café Filho foi conivente com a oposição a Vargas (aquela mesma que o pressionou, pretendendo a sua queda) e chamou vários políticos da UDN para ocupar ministérios no seu governo. Isto, no entanto, não saciou a sede de poder dos udenistas. Contrariados pela vitória de Juscelino Kubistchek nas eleições presidenciais (em outubro de 55), a UDN e parte das Forças Armadas voltaram a tramar um golpe de estado. Café Filho sentiu a pressão e caiu fora, isto é, inventou um problema de saúde e se licenciou do cargo. (Recordo a professora Helga Piccolo abordando o episódio em alguma palestra, ironizando o modo como Café Filho deixou a presidência e tirando sorrisos da plateia. Uma professora inesquecível.)

Café Filho picou a mula, assumiu Carlos Luz (presidente da Câmara), sintonizado com os golpistas e pronto para concretizar qualquer coisa que barrasse a posse de Kubistchek (a UDN temia que JK retomasse a pauta nacionalista de Vargas). O general Henrique Teixeira Lott (Ministro da Guerra) percebeu a manobra e armou um contragolpe. Os setores legalistas das Forças Armadas apoiaram Lott e Carlos Luz teve que fugir do Rio de Janeiro. Embarcou no cruzador Tamandaré (com políticos udenistas, entre eles Carlos Lacerda, e centenas de militares), partiu em direção ao porto de Santos (de onde pretendia liderar o golpe) e, ao sair da baía da Guanabara, ficou na mira dos canhões do Forte de Copacabana...

Foi nesse momento que as canhoneiras funcionaram. Talvez seu único momento de utilização militar. Os tiros não atingiram o cruzador (que manobrou de forma hábil para escapar dos disparos) e a história teve um final feliz, isto é, não houve mortos na jogada. O Tamandaré chegou ao seu destino, os golpistas foram detidos no porto de Santos pelos militares legalistas, Carlos Luz foi deposto (mas não preso) e JK assumiu no ano seguinte.

Resumindo, os canhões do Forte de Copacabana só funcionaram para amedrontar um golpista e seus comparsas. Talvez um episódio emblemático da nossa história republicana, tão pródiga em golpes (e nem todos fracassados).

Acrescento, no entanto, que meu passeio ao Forte de Copacabana não se resumiu ao um “revival” da nossa história política. Foi um passeio de turista. Momento de se sentir num cenário privilegiado, de encantamento com o mar e com o Rio de Janeiro, e de poder compartilhá-lo com uma pessoa querida. Os canhões, quatro enormes canhões (dois de 305 mm, dois de 75 mm), não passaram de detalhes.


Turistas tirando fotos na cúpula dos canhões do Forte de Copacabana.
Ao fundo, os canhões de 305 mm.

domingo, 3 de março de 2024

As brasas

 

No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem (um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de 1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada. Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele seria morto.

O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro, sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é, se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique, mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor importância”, me parece antológica.)

Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala, rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem (sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.

Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989) é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos (entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por exemplo, foi traduzido da versão italiana.

 

- MÁRAI, Sándor. As brasas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras, 2021. 180 p.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fantasias e delírios

 

Há pessoas para quem a vida não basta e precisam inventar alguma coisa que a melhore ou a torne mais suportável. Outras, de perfil mais realista, se contentam com a vida como ela é e a aceitam, sem grande inquietação. Um poeta é o típico integrante do primeiro grupo, envolto em um mundo de sonhos e imaginação, enquanto o engenheiro é a figura exemplar do segundo, expressão da mentalidade prática, lidando apenas com aquilo que pode ser pesado, medido e calculado.

Lembrei dessas considerações a respeito das mentalidades dominantes ao ter a infelicidade de conversar com um homem prático. Ou, pelo menos, com um homem cuja recente namorada me garantiu que ele era assim.

– Um típico engenheiro – ela me disse – lidando apenas com os aspectos práticos da vida e com muito êxito, por sinal.

Ela o conheceu recentemente, nos apresentou num bar da cidade e a conversa foi rápida. Eu mais ouvi do que falei. Minha amiga nos deixou para tratar de alguma coisa e de repente o homem estava falando de política, indignado com a operação da Polícia Federal a respeito do golpe de Estado urdido por Bolsonaro e me explicando a inconsistência das acusações.

– Uma farsa, uma perseguição política – acentuou. – Ora um golpe sem tropas e tanques nas ruas – chegou a dizer, ignorando as peculiaridades da estratégia neofascista em curso no país.

Minha amiga já me dissera que cansou de homens sonhadores e queria alguém pragmático. Foi dessa maneira que me falou dele e me espantei quando o sujeito enveredou para as criações mirabolantes dos bolsonaristas a respeito do 8 de janeiro de 2023, endossando o entendimento de que o quebra-quebra foi uma armadilha da esquerda.

– Os petistas já estavam dentro dos prédios do Congresso, do Palácio Presidencial e do Supremo Tribunal Federal, quando os manifestantes chegaram pacificamente – ele disse, acrescentando que iria me enviar os vídeos, se eu quisesse.

Não, eu não quis. Minha amiga voltou nessa hora e felizmente mudou o rumo da prosa. Certamente não era essa a conversa que ela desejava que eu ouvisse. O pragmático engenheiro que ela me propagandeara estava, naquele momento, enveredando para o campo das fantasias delirantes e não era essa a faceta do homem que ela admirava.

Fiquei calado. Este engenheiro pode ser muito prático para tomar as decisões quanto a sua empresa e colocá-la no mercado, mas, quanto ao resto, é só sonho e fantasia. Mais um adepto da utopia bolsonarista, que se imagina lutando contra o “comunismo petista” e pela afirmação da democracia e da liberdade. Provavelmente um engenheiro bem sucedido, mas incapaz de realismo político.

 A extrema-direita bolsonarista (que não acho mais exagero chamar de neofascista) está num brete e esperneia. Não assume o seu projeto autoritário e muito menos o quebra-quebra em Brasília como tática para um golpe que não conseguiu concretizar. A ideia dos petistas enquanto força maligna, dentro dos prédios antes da chegada dos manifestantes do 8 de janeiro, aguardando a massa bolsonarista para imputar-lhe um vandalismo que ela não desejava fazer, é de uma criatividade impressionante. Haja delírio e teoria da conspiração!

Carreata bolsonarista em Santa Maria, em abril de 2021.

Não sei como me despedi do casal, mas, quando dei por mim, estava com a mão sobre o ombro da minha amiga, penalizado com o que ela precisa suportar. E, sem perceber minha hipocrisia, sai desejando felicidade aos dois.    

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Memórias da pandemia

 

Sou desses que às vezes se espantam com o que vivemos no período da pandemia. Fiz alguns registros a respeito daquele tempo e, ao reler o que anotei em 18 de junho de 2020, achei que valia a pena reproduzir aqui.

Naquela tarde, fui ao médico e conversei rapidamente com o porteiro do prédio. Nós dois de máscaras e distantes um do outro mais ou menos dois metros. Ele revelou a sua contrariedade com as medidas restritivas impostas pelo Governo Eduardo Leite e entendi que não achava necessário restringir a circulação de pessoas para impedir a disseminação do vírus. Naquele tempo ele ainda era um entusiástico do Governo Bolsonaro (posição que mudaria, a partir do adoecimento e morte de familiares pela covid) e navegava nas águas do negacionismo.

Além disso, tive a impressão de que ele estava incomodado com os que podiam se dar ao luxo de fazer o propalado isolamento social, enquanto ele não podia, pois precisava estar ali, na portaria do prédio. Trabalho remoto não era coisa para ele, assim como não era para a maioria da classe trabalhadora.

Naquele mesmo dia a polícia prendera o Queiroz (assessor do senador Flávio Bolsonaro) e eu entendia que era um cerco ao clã Bolsonaro. Ao menos, era o que escutava de alguns comentaristas políticos, que divagavam a respeito de um possível desmoronamento do castelo bolsonarista. Doce ilusão!

Escrevi que estávamos assistindo a um “governo incompetente na gestão de uma das crises de saúde mais graves que o País já vivera”, mas “a coisa estava mudando”. Até a Rede Globo migrara para a oposição, só resguardando o Ministro da Fazenda.

Que tempos! Eu era daqueles que achavam que o Governo Bolsonaro não sobreviveria até o fim do mandato e fui vencido pelos fatos. Bolsonaro se manteve firme e forte e até ensaiou uma insurreição no ano seguinte, em 7 de setembro de 2021. O primeiro ensaio do seu almejado golpe.

Naquele dia, porém, o que me preocupava eram as medidas para administrar a propagação do vírus e como conviver com tudo isso. Como conviver com a pandemia!

Saí do médico (com o qual mantive a devida distância) e fui a lotérica pela primeira vez. Encarei a fila mantendo a devida distância dos outros clientes (todos nós com máscaras no rosto) e exercitei o que se chamava “a nova normalidade”.

Eu frequentava o supermercado no horário dedicado aos idosos (início da manhã) e seguia todos os protocolos. Um amigo me trazia livros de vez em quando, tocava no porteiro eletrônico, eu descia, e conversávamos na porta do prédio, de máscaras e com o devido distanciamento. Era uma prática que esse amigo fazia questão de manter: a troca habitual de livros.

Alguns achavam que os objetos (livros, entre eles) podiam transmitir a covid, mas nós não embarcávamos nessa. Entendíamos que o vírus não sobrevivia na capa ou nas páginas de um livro e seguíamos em frente. Livros para enfrentar o isolamento social, dizíamos, eis o nosso lema.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Pescarias e fantasias

             Se eu tivesse que escolher um lugar como cenário privilegiado da minha infância, elegeria um cais abandonado nas margens do Canal São Gonçalo, em Pelotas, não muito distante do porto. Ou melhor, um local que era abandonado na década de 1960, quando eu frequentava com o pai, o avô materno e o irmão mais velho, para manhãs de pescarias.

Jogávamos as chumbadas no canal (que chamávamos de rio) e de lá retirávamos irrequietos bagres e outros peixes que não recordo o nome. Os bagres tinham esporões terríveis junto a cabeça que exigiam muito habilidade do pescador para livrá-los do anzol. Habilidade que eu aprendia lentamente.

Visitei o local em outubro (enquanto participava da Feira do Livro da cidade) e me surpreendi com o fato de hoje ser um cais muito frequentado. Muitas embarcações ancoradas, diversas construções ao redor, desde residências e bares até associações culturais. Principalmente bares, me disseram, pois tornou-se um ponto de encontros e festas até altas horas da noite. Local perigoso também.

Alertado quanto aos riscos do “novo cais”, estive lá num final de manhã e só encontrei calmaria. Os encontros, as festas, as beberagens começam a partir do final da tarde, me falaram.                        

Não ia ao local desde 1966 e caminhei de uma ponta a outra, buscando vestígios desse período. Provavelmente as mesmas pedras, os mesmos frades de metal para as cordas dos navios, mas nada mais. Olhei para a direita e avistei as pontes (a ferroviária e as outras duas, para automóveis e caminhões, uma delas desativada), depois virei para o outro lado e fiquei observando o porto.

O porto era a minha paisagem preferida. Gostava de identificar os navios, imaginar o dia em que eu subiria num deles e sairia mundo afora. E nessa lembrança encontrei o menino que eu fui: o guri que queria cruzar oceanos.

Uma aventura que não realizei. Isto é, não atravessei o Atlântico de navio. Cumpri esse percurso de avião, acompanhando na tela a reprodução da rota da aeronave, partindo de São Paulo em direção a Lisboa, horas e horas cruzando o mar. Depois, na margem do Tejo, caminhei pra cima e pra baixo, lembrando do Canal São Gonçalo.

Se tivesse que escolher um local para sintetizar a infância, escolheria esse cais na margem do São Gonçalo. Abandonado na década de 1960, local de pescarias e fantasias.



sábado, 16 de dezembro de 2023

Despir a armadura de Cavaleiro Andante

 

Estou lendo A Rainha do Tráfico, romance de Arturo Pérez-Reverte (Ed. Record, 2015, 518 p.), e interrompo a leitura para fazer um comentário a respeito de uma passagem do livro.

A personagem principal, Tereza Mendoza (que vai se tornar mais tarde a chefe de uma rede de distribuição de drogas no sul da Espanha), acorda durante a madrugada, caminha pela casa e vai espiar o amante construindo a maquete de um barco. É o hobby do rapaz. Ele é um exímio piloto de lancha e o casal trabalha no transporte de drogas entre Marrocos e Espanha (na década de 1980).

Ela tem 24 anos e fugiu do México porque o seu companheiro (também traficante) foi morto e ela, jurada de morte. Na Espanha, volta a se envolver com outro criminoso (um galego, 30 anos) e, olhando-o naquela madrugada (enquanto ele está distraído na montagem de uma maquete), ela reflete a respeito da tendência sonhadora dos seres humanos. Todos sonham, mas não do mesmo modo. Enquanto alguns arriscam a vida no mar numa Phantom (o tipo de lancha que o amante espanhol utiliza para traficar drogas) ou no céu em um Cessna (o tipo de aeronave que o antigo companheiro usava para transportar drogas entre o México e os Estados Unidos), outros constroem maquetes como consolo e outros se limitam a sonhar. Alguns, no entanto, constroem maquetes, arriscam a vida e sonham. Tudo ao mesmo tempo.

As reflexões da personagem me calaram fundo. Todos somos sonhadores, não há como escapar. Eu, no entanto, sou daqueles que apenas se limitam a sonhar. Não sei fazer maquete e, muito menos, me arriscar em ações perigosas, como o amante de Teresa.

O casal opera entre Marrocos e Espanha (Teresa, apesar de não ser uma sonhadora, acompanha o companheiro na lancha), traz haxixe da África para desembarcar na Costa del Sol e coloca a vida em risco. Eles navegam próximo a Fuengirola, uma localidade da costa espanhola do Mediterrâneo e interrompi a leitura, quando esse local foi citado...

Fuengirola - Costa del Sol.

Estive em Fuengirola, em 2015. Estava viajando com minha antiga companheira, descemos de Sevilha até a Costa do Sol (numa van, junto com um grupo de turistas) e chegamos em Fuengirola no meio da tarde. Visitamos uma mesquita, caminhamos na beira da praia e tomamos café num bar em frente ao mar. Era um bonito dia de inverno, ensolarado e frio.

Havia um castelo numa colina próxima, convidei minha mulher para ir até lá, porém ela estava cansada e preferiu voltar ao hotel. Eu segui em frente, subi a colina e dei uma volta em torno da fortaleza que, segundo as informações, remontava ao tempo dos mouros. O castelo estava com as portas fechadas para visitação e me sentei num banco no lado de fora, na sombra das muralhas. Era a primeira vez que via o Mar Mediterrâneo e me lembrei das cenas finais do filme El Cid, que assisti pela primeira vez com 10 anos de idade... As cenas do cerco de Valência, pelos mouros, defendida bravamente pelas tropas de Cid, o Campeador. Em Sevilha, dois dias antes, num passeio de charrete pela cidade, cruzara por uma estátua dedicado ao herói da Reconquista e me surpreendera com o fato dele ainda ser festejado na Espanha.

Castelo medieval, em Fuengirola.

Naquele entardecer em Fuengirola, minha imaginação voou longe e “voltei” ao tempo das lutas entre mouros e cristãos. E então, por conta dessas associações malucas que o pensamento faz, me dei conta (numa intensidade rara, que se agudiza a cada vez que relembro o episódio) de que eu era um sonhador inveterado. Em terras de Espanha, nas margens do Mar Mediterrâneo (que lugar propício para um sonhador!), vivi o que sempre fui: um sonhador alucinado. Um guri que sonhou desbragadamente, um homem que continuou com os pés na Lua, idealizando a vida, as pessoas e as mulheres especialmente.

O romance de Pérez-Reverte me devolveu essa experiência vivida na Espanha, na Costa do Sol. Um traficante, piloto de lancha, sonha grandezas e vive perigosamente, enquanto a sua amante, sem os mesmos delírios, o acompanha nas operações de transporte de drogas, navegando ao seu lado. Teresa, uma mexicana telúrica e atávica, que reconhece a propensão de todos os seres humanos ao sonho... mas não se entrega a isso. Antes de mais nada, Teresa quer sobreviver.

Fuengirola se tornou uma referência para mim. Um marco nesse grande esforço, nunca concluído, de romper com o idealismo exacerbado que marca minha vida inteira. Em Fuengirola – em terras de Espanha, revivendo as glórias da Reconquista – senti que já era tempo de despir a armadura de Cavaleiro Andante que vesti na infância e juventude. Acho que nunca vivenciara o assunto com aquela intensidade... Acho que nunca sentira que era preciso (e possível) mudar. Ia completar 60 anos. Não dava mais para bancar Dom Quixote.