domingo, 7 de abril de 2024

Mundo gringo

Torre da igreja do Vale Vêneto, um dos núcleos
da Quarta Colônia de Imigração Italiana.

             Estou em casa e recebo a visita inesperada de um amigo. Abro uma garrafa de uma vinícola da Serra Gaúcha e, quando a coloco sobre a mesa, ele lê o rótulo em voz alta e diz:

– Conheço o proprietário dessa vinícola e te garanto: ele não bebe esse vinho que ele produz. Não esse vinho caro. Bebe os mais baratos. É um mão de vaca. Trabalha aos finais de semana e usa um carro tão velho que tu não vais acreditar.

– Só pensa em juntar dinheiro – eu digo. Conheço a cantilena do meu amigo em relação ao mundo gringo, do qual ele é proveniente, e coloco um pouco de vinho nas nossas taças para juntos iniciarmos o ritual.

– Que tal o aroma? – eu pergunto.

– Promete – ele responde. – Vamos esperar mais um pouco – ele fala. E logo comenta que namorou uma das filhas do dono. – Logo a que gosta mais de dinheiro – ele acrescenta, rindo.

O universo dos descendentes de italianos é um dos nossos temas, pois ambos descendemos dessa “tribo”. Os seus antepassados vieram no final do século XIX, tiveram acesso a pequenas propriedades rurais que pagaram com sacrifício e “a família nunca conseguiu tirar toda a terra que se encrustou debaixo das unhas”. Eu também tenho antepassados imigrantes, mas eles não viveram em colônia, fizeram outra trajetória e cedo se tornaram urbanos. Quando falamos a respeito das nossas histórias, ele acentua que essa é a diferença crucial que nos separa.

– Tua família não se enraizou na colônia. Mundo gringo verdadeiro tem que ter terra, bosta de vaca e pé encardido.

Seu pai viveu na colônia, trabalhou no cabo da enxada, mas aos vinte anos largou tudo e veio para Santa Maria trabalhar e estudar. Tornou-se professor universitário, mas nunca renegou as “raízes”.

– Tu conheces o Velho – ele diz. – Conhece línguas, viajou para o exterior, mas não adianta. Se prestares atenção, é igual ao meu avô, um colono de enxada e trator. A muito custo aprendeu a tomar vinho de qualidade – acrescenta.

Eu rio, pois muitas vezes ele já contou essa mesma história: o pai dele comprando vinho de melhor qualidade para beberem no almoço de domingo, os dois conversando na mesa, terminado a garrafa e o Velho dizendo:

– Se o padre me visse com esse vinho, desse preço, diria que era um luxo desmedido. Um luxo, um verdadeiro pecado. Eu me criei assim. O padre falava, meus pais repetiam e assim girava a roda do mundo.

– Era um mundo de muito trabalho – eu comento. – Meu pai era assim. Neto de imigrante, precisava trabalhar e ascender. Só isso importava.

– Mas teu pai sabia aproveitar.

– Sim, sabia. Aprendeu.

– E a filha do dono da vinícola, aquela que foi minha namorada por um tempo, ela também sabia. Gostava de coisa boa. Achava que merecia. Que tinha nascido para isso. Mas sabia que as coisas boas não caem do céu e é preciso labutar. Assim como se associar a quem trabalha também.

Meu amigo caminha pela sala do meu apartamento, pega um CD, coloca no aparelho, escuta os primeiros acordes e diz:

– Um dia ela chegou no meu apartamento, me viu lendo um romance, acho que era O primo Basílio, eu saboreando cada frase, e me perguntou: tu não tens que terminar a tese? Eu respondi: tenho. Tu não achas que estás perdendo teu tempo com esse livro?, ela disse. Mas é o Eça, eu respondi. Ela então fez uma cara de nojo, uma cara tão feia, que acho que foi ali que tanto ela quanto eu vimos não servíamos um para o outro.

– O primo Basílio foi o ponto de virada de vocês – eu digo. E, lembrando as características do personagem, acrescentei: – Será que ela te viu demasiado aventureiro e cínico, um reles conquistador?

Mas meu amigo não me responde. Muda de assunto. Pega a garrafa, lê novamente o rótulo e comenta:

– Doze meses em barris de carvalho francês e americano não é pouca coisa.

Depois diz que a moça encontrou um fazendeiro da Campanha e se acertou com o dito cujo.

– Já tirou duas crias com o sujeito. Às vezes se queixa que o homem é grosso, muito tradicional, machista, mas não esquece que ele tem dinheiro e sabe fazer mais dinheiro.

– E não perde tempo com Eça de Queirós, não é mesmo? – eu pergunto, provocador.

Meu amigo me olha de longe, muito longe, e não me responde. Eu comento que ele precisa escrever as suas histórias (todos temos que escrever nossas histórias, outro dos nossos temas) e ele fala que cansou.

– Essa eu deixo pra ti – ele fala. – Pode usar.

E é o que estou fazendo, alinhavando mais um registro do mundo gringo, esse curioso universo no qual trabalho & dinheiro têm uma centralidade brutal e às vezes corrói os viventes sem que eles percebam.

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