segunda-feira, 1 de junho de 2020

Histórias de família (última crônica)

Vô Vittorio morreu em 1959. Eu ainda não completara quatro anos de idade e minha memória a respeito dele é construída a partir dos relatos da mãe e da tia Landa (a filha solteira que o acompanhou no final da vida).
Ele era viúvo e ficou acamado muito tempo, talvez meses. Sofria sem grande alarde. Tia Landa cuidava da casa, da limpeza, da cozinha, e se esmerava para que houvesse um ambiente tranquilo para o pai.
Aos domingos, meus pais visitavam o Velho, levavam os três filhos e nós nos reuníamos na cozinha, a última peça da casa, com uma porta que se abria para um pátio comprido, com um galinheiro ao fundo. Tia Landa fazia salada de frutas e servia no meio da tarde. Eu, criança pequena, dizia que queria só o caldinho e ameaçava chorar se não recebesse.
– E tu chorava mesmo, seu porcalhão – a tia Landa contava. E o porcalhão que ele acrescentava se referia ao fato de eu derramar sobre a roupa o caldo da salada de fruta.
– Uma criança manhenta – a tia acrescentava. E a palavra era essa mesmo, manhenta, ao invés de mimada.
Elas, a tia e a mãe, faziam de tudo para eu não criar confusão e incomodar o Velho. Meus irmãos se comportavam melhor. O menor (Marco Antônio), com menos de um ano, se distraia com um chocalho, enquanto o mais velho (Rubens) brincava no pátio. Só eu dava trabalho.
A casa do avô ainda está lá – na Rua Santos Dumont quase esquina com a Avenida Bento Gonçalves. Está fechada. Abandonada. Não houve acerto entre os herdeiros. Um primo advogado (Neno) tentou acertar que um dos netos ficasse usufruindo a casa, mas um outro herdeiro complicou e a coisa emperrou. Uma lástima.
A última vez que passei na frente da casa, notei que havia um rombo na parte de baixo da porta da rua e imaginei que animais devem estar entrando por ali e fazendo misérias lá dentro.
Foi o que sobrou de uma vida que iniciou na região do Vêneto, dá vontade de dizer.
No entanto, sobrou muito mais do que isso. Mais do que uma casa de porta e janela abandonada ou um retrato na parede (como o que eu tenho na parede do apartamento onde moro).
Restou o legado de camponês determinado. Emigrante italiano que cruzou o Atlântico. Rapaz que foi colono em fazenda paulista e terminou engenheiro prático da Viação Férrea. Homem que gerou catorze filhos e os criou ao seu modo rígido e severo, talvez severo demais. E que se radicou em Pelotas, uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, e se fez referência e matriz de uma vasta família de histórias intermináveis.
Um dia, estava com meus filhos (Maria Vitória e João Vicente) em Gramado e fomos visitar um castelo. Lá dentro nos atendeu um casal que fazia pesquisa genealógica e quis nos vender a ideia de que nossa família – os Biasoli ou Biasioli – tinha origem na nobreza italiana. Nobreza de brasão e palacete no norte da Itália, talvez nas margens do Rio Pó. Nós três não embarcamos na fantasia. Minha filha se irritou, meu filho e eu apenas rimos, e por fim fomos embora.
– Ora nobreza de brasão e castelo – fui dizendo para os meus filhos, ao andar pela rua. – Será que essa gente torta não entende que existe grandeza numa família de matriz camponesa, desterrada e ousada, que um dia atravessou o Atlântico para se enraizar no interior do Rio Grande?!