sábado, 8 de janeiro de 2022

A difícil arte de registrar memórias

           Li e reli o livro de crônicas de Luiz Carlos Vaz (jornalista aposentado), intitulado A história de Abel, centrado nas suas lembranças de infância & juventude.[1] Resultado: fiquei remoendo a respeito da difícil arte de registrar memórias. Não é tarefa fácil. Numa crônica intitulada “Frases que ficam”, o autor anota uma série de frases que circulam no seu ambiente familiar, provocam boas risadas, e sabiamente comenta que, se escritas ou contadas de qualquer jeito, não tem “a menor graça e nenhum sentido”.

           Haja talento e arte para transformar os episódios lembrados em textos que realmente possibilitem os outros perceberem a graça e o sentido que têm. Uma tarefa que o autor se propõe e realiza com competência. Com uma linguagem bem humorada e doses certas de lirismo e nostalgia, Luiz Carlos consegue transformar as experiências vividas e imaginadas por ele próprio e seu círculo familiar em crônicas engraçadas, comoventes e plenas de significado. Experiências, causos e registros de um tempo pretérito que, na apresentação, o autor diz estar devendo aos filhos, netos e sobrinhos – e também aos leitores do seu blog, acrescento.

Nascido em Hulha Negra no início da década de 1950, o autor deixou a cidade com dois anos de idade com a família (pai, mãe e três irmãos) e só a relembra a partir das lembranças da mãe, dona Loracy. A mãe e o pai, por sinal, referências constantes no seu universo memorialístico e protagonistas de muitos episódios narrados. A família se estabelece em Bagé, em casa com enorme quintal, capaz de abrigar horta, árvores frutíferas e uma vaca, e o autor ali viveu até início da década de 1970, quando partiu para Pelotas, para realizar curso de Jornalismo.

Segundo o autor, suas histórias são as de muitas famílias modestas da região da Campanha. A trajetória de um pai (comerciário) e uma mãe (costureira) procurando o melhor lugar para criar os filhos, proporcionar-lhes educação formal e prepará-los para o futuro. Os “estudos” dos filhos como preocupação central da família – que o autor, caçula de quatro filhos, realizou como manda o figurino.

Famílias modestas que viveram as transformações da sociedade brasileira nos anos 50, 60 e 70, que o autor registra muito bem, utilizando-se de diversos índices. Às vezes, indicando um súbito movimento de mulheres que vêm atender os trabalhadores masculinos de polos de atividade econômica (a exploração de carvão, em Hulha Negra; a criação do Polo Naval, em Rio Grande). Às vezes falando de bens de consumo, como as “frigidaires” (geladeiras) e TVs que, nos anos 50 e início dos 60, apenas existiam nas “melhores casas” e aos poucos foram se difundindo por maior número de lares.

Talvez decorrente de sua atividade profissional (o jornalismo), o autor é atento aos meios de comunicação do período: a revistas Figurino e Jornal das Moças, que orientavam sua mãe (costureira) no atendimento às freguesas; os discos com histórias infantis para escutar na eletrola (O Pequeno Príncipe, com a voz de Paulo Autran e música de Tom Jobim); os noticiários de rádio Repórter Esso e Correspondente Renner, que mantinham a família sintonizada com o mundo; a difusão da televisão e a possibilidade de assistir a chegada do homem à Lua, o Ringuedoze Liguigás e a luta de Cassus Clay versus Joe Frazer. Vários elementos para narrar uma vivência infantil e familiar numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, fronteira com o Uruguai.

E algumas indicações preciosas sobre mudanças de comportamento, como a indicada pelo modo como a mãe recebeu o marido, tarde da noite, após ele vir de uma visita ao cabaré local. A mulher ajeitou uns pelegos no chão, fora do quarto, e disse para ele: “Hoje tu dormes aqui”. Simples assim, sem maior escândalo, indicando a tolerância que as mulheres tinham (ou eram obrigadas a ter) em relação a certas exigências dos maridos.

Registrar memórias não é tarefa fácil. Requer linguagem e arranjos especiais dos episódios a serem narrados – e o humor é geralmente uma estratégia eficaz se usada com habilidade, como no caso das crônicas do livro. Claro que um pouco de imaginação e invenção são ingredientes essenciais, como bem reconhece o autor. “Eu minto muito, mas sempre mostro as provas”, ele afirma como bom admirador de Gabriel García Márquez, que cita na epígrafe do livro: “A vida não é o que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.

Recordar, reinventar – registrar memórias é tarefa que exige empenho.



[1] VAZ, Luiz Carlos. A história de Abel – crônicas & memórias. Pelotas: Ardotempo, 2021. 144 p.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A Fonte da Barcaça

             Tenho o costume de folhear guias de museu e de viagem, enquanto tomo café. Outro dia, na mesa da cozinha, abri um guia de Roma e dei com a Fonte da Barcaça (Fontana della Bracaccia), bela escultura de uma barca afundada, encomendada pelo Papa Urbano II, no início do século XVII. Obra dos Bernini, o pai e o filho.

Fonte da Barcaça, na Praça de Espanha.

Os papas foram responsáveis por grandes obras na cidade e muitas existem até hoje. As fontes se destacam - a Fontana della Bracaccia e, especialmente, a Fontana di Trevi, mandada construir pelo Papa Clemente XII, no século XVIII.

Quando estive em Roma pela primeira vez estava num grupo de brasileiros e um colega se incomodou com a suntuosidade das obras patrocinadas pela Igreja. Havíamos acabado de visitar a Fontana di Trevi, eu estava deslumbrado, e ele se disse enojado com a riqueza dos papas. Olhei para ele espantado e comentei que “a opção preferencial pelos pobres nunca esteve na pauta da Igreja tradicional”. Não lembro o que ele respondeu.

Meu colega é descendente de família de imigrantes italianos (da Quarta Colônia) e imagino que foi criado com uma visão muito rude da Igreja. Dessa maneira, difícil entender que o alto clero católico sempre se comportou como príncipes e barões, voltados ao poder e ao luxo.

Nos Evangelhos há uma valorização da pobreza, mas essa nunca foi a preocupação central dos bispos e papas ao longo da História. E a Igreja que vamos visitar em Roma – a Basílica de São Pedro, os Museus do Vaticano – é justamente essa do poder e do esplendor, de um poder político que se expressa em obras artísticas magníficas, feitas para embasbacar os reles mortais. Obras de um poder sem freios como o de qualquer Estado que se propõe a disputar um lugar de destaque entre as nações.

Facilmente nos esquecemos que a construção da Basílica de São Pedro (a partir do século XVI) foi financiada com a venda de indulgências – um negócio pra lá de fraudulento (vender perdão divino para garantir a vida eterna) – e nem lembramos que Júlio II, o papa que chamou Michelangelo para pintar a Capela Sixtina, era também um general que comandava pessoalmente os exércitos papais em guerras de conquista (sendo muito exitoso, por sinal, quanto ao aumento territorial dos Estados Pontifícios). Uma Igreja venal, corrupta e militarizada.

Na década de 1960, o Papa Paulo VI (com a herança do Concílio Vaticano II a lhe pesar nas costas) chegou a se referir a uma mudança da Igreja em relação à riqueza e ostentação. Preocupou-se quanto ao modo crítico como o mundo observava a Igreja “com relação à pobreza e à simplicidade de viver” e pareceu dar prosseguimento às propostas estabelecidas pelo Vaticano II, mas não foi muito longe.[1] Difícil mudar uma instituição milenar que, mesmo com tantos vícios, foi e é plenamente exitosa do ponto de vista político e financeiro. Talvez nem o Papa Francisco consiga.

Mas essa crônica não é para dar conta da complexa história da Igreja. É apenas sobre uma das suas construções magníficas, a Fonte da Barcaça, na Praça de Espanha, no centro histórico de Roma. Reza a lenda que, numa das inundações do Rio Tibre, uma barca afundou no local e ali ficou encalhada. A escultura dos Bernini – de Pietro (o pai) e Gian Lorenzo (o filho) – concretiza essa lenda. Uma das tantas fontes da cidade. Belíssima. Hoje, no entanto, muitos turistas passam por ali e nem dão bola, deslumbrados que estão com as lojas de grife no entorno da praça: Dior, Valentino e outras, que nem lembro.

Vitrine da Dior, na Praça de Espanha.










[1] O trecho entre aspas faz parte de uma frase de Paulo VI, citada nas resoluções do Congresso de Medellin (1968), o congresso do episcopado latino-americano que pretendeu avançar quanto ao Concílio Vaticano II e instituiu a opção preferencial pelos pobres.