quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Santa Inês em chamas


O rapaz era zen budista e estávamos conversando num café, numa sessão de lançamento de livro, aqui em Santa Maria. Falávamos sobre religiões, a respeito do filme do Scorsese, “Silêncio”, que trata da introdução do Cristianismo no Japão, por jesuítas portugueses. De repente, ele diz que os cristãos carregam no peito um símbolo de tortura e não se dão conta disso. Sorrio (acho que sorrio) e penso (mas não chego a falar) que não é bem assim.

Penso que talvez a maioria dos cristãos não tenha clareza quanto a cruz ser um instrumento de tortura do tempo do Império Romano. Mas que sabem, sim, que carregam no peito a sombra de um martírio, os ecos de um sacrifício. Afinal, essa referência ao martírio, ao sacrifício, isso é uma obrigação do cristão.

No entanto, não disse nada disso. Ou não falei com essa ênfase. Era conversa de café. O rapaz só queria dizer que o cristianismo tem esse aspecto mórbido, de apego a um símbolo de sofrimento e por isso ele era zen budista. Eu não quis aprofundar o assunto e falei, vagamente, que o martírio é central na história da Cristandade. Taí o filme do Scorsese, o drama de seus personagens missionários, que não me deixa mentir, e trocamos de assunto.

Mas saí do café pensando no tema. Lembrando. Estive na igreja de Santa Inês (Sant’Agnese in Agone), em Roma, no mês de outubro, e fui tocado pela história de martírio da santa.

Estava sentado num banco da igreja, na nave central, e sorvia a magnífica luz do ambiente. A igreja tem forma circular, com uma cúpula enorme abrigando a nave central, e aberturas muito grandes, no alto, que proporcionam uma luz abundante. Era o final de um dia de outono e a luz era suave, quase divina. Eu tinha um folheto da igreja nas mãos (em espanhol) e seguia com os olhos as esculturas, os relevos e as pinturas do entorno. Estava embevecido.

De repente, fui capturado pela escultura de Santa Inês entre as chamas. Uma escultura do século XVII, barroca, num altar lateral. A jovem Inês (13 anos, segundo a tradição) era uma aristocrata do tempo do Império Romano e foi jogada numa grande fogueira, condenada por ser cristã. A escultura representa justamente esse momento. A santa com uma expressão serena, sublime, num momento de extrema dor, vivendo a sua cruz. O fogo não foi capaz de matá-la e um soldado a golpeou no pescoço com uma espada. O ano era o de 304, segundo a tradição.

"Santa Inês em chamas", de Ercole Ferrata.
Naquela hora, no centro da igreja de Santa Inês, fui banhado pela agonia da jovem romana. Pelo seu martírio. Ela se negou à vida profana, a um casamento com um jovem aristocrata e disse ao rapaz que amava alguém “muito mais nobre e de melhor linhagem” (Cristo).

A jovem Inês morreu por conta disso. Recusou um pretendente nobre e foi posta à prova. Obrigada a prestar homenagem aos deuses romanos, afirmou a sua fé cristã e as autoridades a condenaram. A igreja foi construída no local do martírio.

Saí desse templo católico cansado e fiquei por um tempo sentado na Piazza Navona (em frente da igreja). Era entardecer e depois fui caminhar pela cidade até noite adentro. E beber vinho também. Certo de que tinha vivido uma das experiências que Roma sabe proporcionar: a de nos colocar no centro do mundo. Ou, no caso, no centro da Cristandade.

E talvez fosse isso que eu gostaria de dizer ao meu interlocutor zen budista: o fascínio pelo martírio está no eixo do Cristianismo tradicional. Por isso a Cruz, a terrível Cruz, símbolo da tortura que Cristo sofreu e que os santos procuraram simular. E as igrejas católicas romanas, as barrocas especialmente, são pródigas em abordar e exaltar esse assunto. E abordar com um requinte artístico e uma sensualidade que acredito não poder vivenciar em nenhum outro lugar.

Mas isso não dava para falar num café. Talvez apenas numa crônica. Uma estranha crônica de viagem. Dessas em que o viajante relembra as suas visitas às igrejas e procura reviver as emoções provocadas pela grandeza desses templos. Os templos romanos, no caso. Especialmente os barrocos, plenos de representações artísticas do sofrimento sublime vivido pelos santos – Santa Inês, Santa Teresa de Ávila – centrais na história da Cristandade, centrais na nossa tradição ocidental.


Obs.: além do folheto da igreja, conferi informações sobre Santa Inês no livro clássico da hagiografia, escrito no século XIII, por Jacopo de Varazze: Legenda áurea: vida dos santos (Companhia das Letras, 2003, 1.040 p.).

domingo, 8 de dezembro de 2019

A estátua do imperador Constantino


Passei um mês na Europa e ainda estou procurando entender o que vivi. Andei por Roma, Paris e Lisboa, e cada cidade descortinou um universo diferente. Cada cidade um perfil (na verdade, vários perfis) e haja fôlego, paciência e inteligência para decifrá-los. Não chegarei a tanto, isto é, a distinguir as várias faces dessas cidades, mas vou tentando.

No pátio interno do Palazzo dei Conservatori (Palácio dos Conservadores, um dos dois prédios que formam os Museus Capitolinos, em Roma) encontrei a cabeça do imperador Constantino “encontrei” num pátio interno e levei um susto. A cabeça (2,5 metros), uma das mãos e outros fragmentos de uma estátua de mármore de 12 metros do imperador, construída no século IV.

Fragmentos da estátua de Constantino no Palazzo dei Conservatori.
O fundador da Cristandade “jogado” num pátio?, me perguntei. Uma reação exagerada, claro, mas justificável. Constantino foi o imperador romano que acabou de vez as perseguições e trouxe os cristãos para a órbita do Estado. O imperador percebeu que a religião cristã servia aos propósitos das reformas que vinha realizando, no sentido de centralizar a monarquia e não titubeou. O monoteísmo cristão servia como uma luva para a construção do poder absoluto no imperador (uma única divindade, um único soberano) e ele adotou essa visão de mundo.

Constantino não era um piedoso cristão e sim um estadista, o qual, diante da crise e anarquia vividas pelo Império, propôs a sua reestruturação política, administrativa, militar e também religiosa. Costumeiramente, os historiadores leem no rosto dessa estátua – nos grandes olhos, na expressão endurecida – a modulação rigorosa de um imperador que soube projetar o Império para o futuro, tendo o cristianismo como um dos seus pilares. E a Cristandade (o predomínio político-religioso da religião cristã) tem início no seu governo. Os primeiros passos da Igreja como instituição organizada e, décadas depois, seu estabelecimento como religião oficial do Estado romano.

E a famosa cabeça de Constantino, essa figura central para o mundo cristão, estava ali, no pátio do museu – aparentemente exibida sem destaque, como tanta coisa em Roma. Uma peculiaridade romana que tonteia um visitante como eu, embasbacado com a importância histórica dessa cidade e do seu acervo. Peças de valor inestimável – como a cabeça de Constantino (no pátio do Museu), o Discóbolo (no canto de uma sala do Museu do Vaticano), o “Repouso durante a fuga para o Egito”, de Caravaggio (numa simples parede do Palazzo Doria Pamphilj) – exibidas com alguma displicência, com um à vontade, que a chega a tontear.

Ao centro, "O repouso durante a fuga para o Egito", no Palazzo Doria Pamphily.
Mas isso é Roma, conclui. Uma cidade que abriga uma variedade tão grande de objetos e marcas e signos – a Roma dos imperadores, dos papas, dos Renascimento, do barroco, do neoclassicismo, do Risorgimento (para ficar apenas nas camadas que prenderam minha atenção) – que acaba não destacando apropriadamente cada uma delas e as apresentando simplesmente. Certas salas dos museus do Vaticano, dos Capitolinos, do Palácio Doria Pampihly me pareceram assim: com obras exibidas de qualquer maneira, num à vontade, uma naturalidade, que me espantou. Uma percepção exagerada da minha parte (nem sei explicar), talvez fruto da emoção com que vivi esse passeio, experimentando surpresas a cada momento.

A estátua de Constantino foi apenas a porta de entrada no acervo magnífico dos Museus Capitolinos. Uma sucessão de maravilhas, de histórias, de belezas, de deslumbramentos. Quando fui fazer um lanche no meio da tarde – um panini, um cálice de vinho – e encontrei algumas pombas sobre as mesas do restaurante, não estranhei. Elas estavam ali como a estátua de Constantino, a Vênus Capitolina, a Vênus Esquilina, e eu que convivesse – sem estardalhaço nem espanto – com a beleza e a graça que as caracterizam. Pois foi o que fiz – eu, um reles mortal, que teve sorte de cair naquele local.

Na lancheria do Palazzo dei Conservatori.