segunda-feira, 25 de maio de 2020

Histórias de família (16)

É na teia de um conglomerado empresarial militar que vejo o destino de meu pai sendo selado. Meu pai enredado nessa teia. Atormentado. E dando um desfecho dramático a isso tudo. Colocando um ponto final na história com um tiro na cabeça.
Visto na perspectiva do tempo, ganha sentido um comentário de meu primo (Joaquim Luiz), que conhecia as entranhas do mundo financeiro porto-alegrense.
Estávamos num encontro familiar e comentávamos sobre os acontecimentos de 78, as mortes do pai dele, do meu pai, falávamos do ambiente da época. As tensões existentes. As atividades profissionais daqueles dois homens e o quanto o envolvimento deles num projeto mirabolante (as pensões de coronéis para as viúvas do país inteiro – matriz do projeto do MFM) contribuiu para as suas aflições. Para os seus tormentos. Especialmente no caso do meu pai.
– Que vendaval aquilo tudo! – eu disse.
– Era o final de uma época. – Meu primo fala, bebericando num copo de uísque. – Naquele momento, todo o complexo empresarial já tinha ido pro saco.
O complexo empresarial criado por um conjunto de coronéis do Exército, no início dos anos 60, e que ganha fôlego ao longo do Regime Militar. Em 70, absorve o Banco da Província, em 72 cria o Banco SulBrasileiro (a menina dos olhos da organização) e daí se expande numa miríade empresas, investimentos, envolvendo uma ampla gama de atividades. E numa dessas empresas, como simples contador, o meu pai como funcionário.
Eu olho para o Joaquim Luiz e não entendo. Ele sabe de coisas que não sei. Esteve no interior do monstro. Eu não conheço a dinâmica do mundo econômico, muito menos o do financeiro. Sou um simples professor de História e só sei generalidades a respeito da formação social sul-rio-grandense.
Uma prima passa por nós, me vê de testa franzida, e comenta:
– Que cara é essa, Vitinho? Vai lá dar uma atenção pra tia Lêda. Ela está um pouco chorosa.
Eu faço sinal para o meu primo e vou ver minha mãe. Nunca mais retomo a conversa com ele. Por sinal, pouco conversamos a partir daí.
Visto dos dias de hoje, com o acúmulo de informações que estão disponíveis – as matérias de jornal publicadas a partir de 1985 (data da intervenção do Banco Central no SulBrasileiro e posterior liquidação judicial) –, é possível dizer que no final dos 70 o projeto mirabolante do MFM se escancarou como inviável. Os diretores sabiam disso. A troca de diretoria que ocorreu no início de 79 é emblemática da crise, aponta o jornalista econômico Delmar Marques.[i]
O que isso tudo poderia afetar e tumultuar a vida de um simples funcionário (um contador) desse conglomerado? Não sei. Contadores não decidem nada. Eles cumprem ordens. Muitas vezes são os operadores de maquiagens contábeis determinadas por diretores.
Conversando com o pai na mesa da copa – onde, aos domingos, muitas vezes ele aprontava algum balancete para uma empresa ou outra –, um dia ele me explica o quanto era obrigado a ocultar gastos, despesas e investimentos fracassados das empresas para as quais prestava serviço. E como tudo isso (os balancetes) ficava plausível, lógico, redondo.
Teria sido essa a função do pai, na teia do conglomerado? Maquiar alguma operação destrambelhada, alguma incompetência ou mesmo maracutaia? Não sei. Alguma coisa o atormentou, o afligiu e o levou ao desfecho trágico que deu fim a sua vida.
Minha mãe sabia que suas aflições (ou parte delas) tinham sua matriz no ambiente de trabalho. Ela pediu que ele resolvesse isso. No último dia de sua vida, ele saiu de casa dizendo que iria na empresa resolver esses problemas.
Depois soubemos que ele não foi. Passou o dia caminhando pela cidade.
Naquela festa familiar em que meu primo falou a respeito da debacle do conglomerado (que só se escancarou anos depois) eu terminei fazendo companhia pra mãe.
Durante anos ela e eu reviramos ao avesso o que sabíamos a respeito do vendaval de 78, que mudou definitivamente nossas vidas.
Da minha parte, não sei se entendi grande coisa. Mas senti que o vendaval passou. Calaram-se os raios, cessou a chuva, abriu o tempo e veio o Sol. De uma alguma maneira se fez a bonança, como ocorre na Sinfonia Pastoral, de Beethoven, que aprendi a escutar na eletrola de nossa casa em Pelotas.
O pai colocava o disco e comentava os movimentos da sinfonia. O quarto movimento, “A tempestade”, sempre causava apreensão. Mas o quinto movimento, “O hino de ação de graças dos pastores”, restabelecia a tranquilidade que a natureza também sabe comportar. Nem tudo é agonia.




[i] MARQUES, Delmar. Caso MFM / SulBrasileiro – ascensão e queda dos coronéis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

sábado, 23 de maio de 2020

Histórias de família (15)

Meu pai foi um leitor de literatura de ficção e cedo descobriu que eu era interessado no assunto. Por meio dele descobri autores como Balzac, Maupassant, Gogol e Conrad. E também Júlio Verne e Mika Waltari.
Dos seus livros, guardo muito poucos. Um deles, O Aventureiro, de Mika Waltari (Editora Brasileira, 1956, 450 páginas), que li na semana passada. Um autor finlandês muito famoso nas décadas de 1940 e 50 (e até hoje editado no Brasil). No caso, uma narrativa ambientada no século XVI, com o herói (um jovem finlandês) indo estudar na Universidade de Paris, viajando pela Alemanha (tomando contato com Thomas Müntzer) e se envolvendo nas guerras entre o Imperador do Sacro Império e o Papa, no território italiano.
Lá pelas tantas, o herói descobre umas cartas que revelam um complô do Papa contra o Imperador e conclui que pode intervir na disputa entre os poderosos. Consegue uma entrevista com o Imperador e fica sabendo que nada do que ele conta é novidade. O Imperador está por dentro da falsidade de seu adversário e ele, o herói da narrativa, não passa de um soldadinho das tropas de um condottiere.
Em diversos momentos, ao ler o romance, era como se eu conhecesse a história. Caminhando pelas ruas de Pelotas, na infância, escutei o pai falar sobre casos semelhantes (talvez essa história mesma do romance de Waltari). Almoçando num restaurante no entorno do Lago Negro, em Gramado, conversamos sobre histórias de Papas e guerras contra o Sacro Império. Percorrendo as prateleiras da antiga Livraria do Globo, na Rua da Praia, em Porto Alegre, buscamos livros que esclarecessem a respeito dos conflitos entre Roma, Florença e Milão, nos séculos XV e XVI.
Quando fui conhecer o auditório do Banco da Província, em Porto Alegre, e passei a mão no mármore frio e esplendoroso (vindo de Carrara, na Itália), que decora o ambiente, era o mundo grandioso da Roma dos Papas e de Michelangelo que eu buscava. Sentir a cor e a textura da mesma pedra que o artista renascentista usara nas suas esculturas de figuras bíblicas: o Moisés (para o túmulo do Papa Júlio II), a Virgem Maria (na Pietà).
Diante do conjunto escultórico Moisés, na igreja San Pietro in Vincoli, em Roma, foram esses fios que juntei e que reúno até hoje. Fios que passam pela infância e juventude e que me conectam às histórias do pai, seus desejos e ambições, que me ligam à teia familiar de matriz imigrante e me aproximam de grandes histórias. Fios (ou correntes) constituídos por livros e filmes, conversas animadas, caminhadas e almoços.
Túmulo de Júlio II, na igreja de San Pietro in Vincoli.
Calado, em silêncio – atento às figuras do conjunto escultórico de Michelangelo –, foi isso que vivi na igreja de San Pietro in Vincoli: encontrar a minha perplexidade de adolescente diante do mundo. Perplexidade que ainda acompanha o homem velho que me tornei. A perplexidade e a grandeza de estar vivo, mesmo reconhecendo minha insignificância diante do mundo - dos Papas e de suas guerras com o Imperador do Sacro Império (para utilizar a trama romanesca de Mika Waltari).
Meu pai era um leitor de literatura de ficção, de romances capa-e-espada inclusive. Um pouco desse gosto eu herdei. E, como ele, muitas vezes me sinto um reles soldadinho das tropas de um condottiere à serviço do Imperador. Uma existência insignificante, mas que amplifico com os artifícios da literatura.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Histórias de família (14)

Na penteadeira da minha mãe, na primeira gaveta à direita, havia uma pequena caixa da Joalheria Silva, do tempo em que ela vivia em Pelotas. Uma caixinha preta, de papelão, com menos de 10 cm de diâmetro. Nos últimos tempos, já estava se desmanchando e a mãe não se desfazia.
Fecho os olhos e vejo a cena: a mãe e eu estamos na sala (na Rua Portugal) e ela diz para eu buscar uma tesourinha na penteadeira. Eu sei o lugar. Vou até o quarto, abro a gaveta indicada, dividida em quatro repartições, tudo muito organizado, encontro a tesoura e vejo a tal caixinha. Volto à sala e pergunto:
– Mãe, aquela caixinha preta, por que tu guardas? Tá muito velha.
Os olhos da mãe ficam marejados, percebo a emoção e trato de mudar de assunto.
Tenho a impressão de que nunca deixei ela contar a história completa dessa embalagem. Mas sempre soube que era um objeto de significado especial. Provavelmente referente a joalheria onde ela e o pai, no final da década de 40, escolheram e compraram as alianças. Ela e toda a sua geração de jovens professoras, formadas pela Escola Complementar Assis Brasil.
Escola Complementar e não Escola Normal, fique bem claro. Um dia tive o azar de dizer que ela fora uma “normalista” e fui prontamente corrigido.
– Nunca fui normalista. A Escola Normal foi criada depois. Quando me formei, isso não existia. Me formei na Escola Complementar.[i]
Corta e volta para os anos 70, no apartamento da Rua Sete de Abril. O pai entra em casa num final de manhã, com um pequeno pacote, e me diz:
– Presente pra tua mãe. Guarda no fundo da minha gaveta, na mesinha de cabeceira, antes que ela veja.
Eu guardo e um dia ele me explica que vinha caminhando pela Rua da Praia, encontra um amigo que lhe deve por um serviço prestado (um balancete), o homem diz que está disposto a pagar e o pai aponta a Joalheria Masson logo adiante.
– Podes comprar uma joia para minha mulher – o pai diz.
Eles entram na joalheira e o pagamento é feito dessa forma: um broche, um anel ou qualquer coisa vistosa e bonita para encantar os olhos de uma mulher.
Essa história é verdadeira? A minha memória está me pregando uma peça? Não sei.
Corta para uma outra cena, em junho de 1978, logo após o suicídio do pai. Meu primo (Joaquim Luís) junto com meu irmão mais velho (Rubinho) reviram as gavetas da pequena cômoda-escrivaninha onde ele guardava documentos. O Joaquim Luís encontra umas notas relativas à compra de joias, estende ao meu irmão e pergunta se ele as identifica.
Rubinho, minuciosamente (e um pouco a contragosto), examina uma por uma e diz que foram presentes para a mãe.
O Joaquim Luís sorri e diz que o Velho está limpeza. Ninguém sabe porque o pai se matou. Meu primo chega a supor história com amante, eu observo de longe, acompanho o exame da papelada e não consigo me envolver.
Eles não encontram coisa alguma que comprometa o pai. Nenhum sinal de amante, negócio escuso, dinheiro sem procedência legal, essas coisas.
Anos depois, escuto minha mãe falar a respeito de cada uma das joias que ela ganhou e sinto não ter prestado a devido atenção. Eu gostava de um broche de ouro, com algumas pedras preciosas incrustadas (diamantes?). Gostava de um pedantife de ouro, com a imagem de Nossa Senhora, que um assaltante arrancou do seu pescoço no centro de Porto Alegre, por volta de 1980.
Nunca soube o que aquela caixinha da Joalheria Silva guardava e até hoje me pego vasculhando na memória o que ela me disse quando eu perguntei...
Não sei. Era uma história de Pelotas, de juventude, dela e do pai, e só lembro seus olhos lacrimenjantes, e ela me olhando, calada.



[i] Em 1940, a Escola Complementar de Pelotas (fundada em 1929) passou a se chamar Escola Complementar Assis Brasil: em 1943, Escola Normal Assis Brasil.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Histórias de família (13)

Histórias de família se perdem. Muitas vezes se desorganizam, se embaralham e vão para o ralo. Minha mãe e eu gastamos horas revirando pequenos episódios familiares e tentando ordená-los. O resultado é cheio de lacunas e imprecisões, mas é o que tenho.
Vô Vittorio cruzou o Atlântico no final do século XIX e até sabemos o ano. Da vó Santa, porém, ignoramos tudo. Deve ter emigrado da Itália na mesma época, chegado na mesma fazenda paulista onde trabalhava o avô e pronto.
– Sair de um país para o outro, ir de um continente para outro – vô Lêdinha ponderava – deve ser muito difícil. – Eu sofri muito quando deixei Pelotas, deixei meus pais e vim morar em Porto Alegre.
E disso eu sou capaz de lembrar. Era menino de 11 anos e ainda vejo a mãe sentada na beira da minha cama, ou na cama de algum dos meus dois irmãos, explicando que iriamos nos mudar para a Porto Alegre, que a nossa vida seria melhor, mas que ela sentia muito. Chorosa, ela explicava que não era para nós nos preocuparmos, que essa tristeza era uma coisa dela. Ela sentia muito deixar de viver próximos aos pais (morávamos no mesmo quarteirão), mas isso ia passar.
O pai, por sua vez, andava garboso pela casa, tomando as decisões da mudança. A mãe não continha o choro e se debulhava em lágrimas pela rua – a ponto de dar origem a um boato curioso.
– O Rubens está traindo a Lêda – passaram a dizer na cidade. – Por isso as lágrimas.
– Lágrimas copiosas – me disse a tia Evany, rindo, anos mais tarde. Tia do lado materno, esposa do tio Joaquim (o único irmão da mãe).
Tia Evany foi ao Rio de Janeiro, visitou alguns parentes e lhe falaram do caso: a traição do Rubens, as lágrimas da Lêda. E então a tia esclareceu o motivo do choro da minha mãe: deixar Pelotas, deixar os pais, para vir morar em Porto Alegre.
Naquela época, na zona do porto em Pelotas (local da cidade onde morávamos), um homem casado mantivera um longo relacionamento com a cunhada, sua vizinha, e a esposa descobriu. As casas eram coladas uma na outra, os pátios não tinham muro, se interligavam, e a mulher enganada caiu em profunda tristeza, chorava pela rua. A história ganhou asas, viajou ao Rio de Janeiro e a mulher traída e chorosa se transformou na minha mãe.
Ela própria me contou diversas vezes o caso. Acho que ela sabia quem eram os personagens reais do drama.
– Pois tu vês como são as coisas – ela dizia. – Eu chorava inconsolável, teu pai não sabia mais o que fazer, e eu virei uma mulher traída para os parentes do Rio.
E como assunto puxa assunto, nós voltávamos para e emigração dos Biasoli, a partida da Itália, o que eles deixaram por lá, o que ela deixou em Pelotas... Nem de longe as duas situações se comparam – processos migratórios completamente diferentes, o professor de História que eu era afirmava – mas em nossas conversas havia algo em comum ligando as duas experiências: a viagem, a travessia, a mudança de moradia e novos horizontes de trabalho e sociabilidade surgindo.
Quando chegamos de mudança em Porto Alegre, em fevereiro de 1967, um apartamento já estava montado (no Bairro Floresta). O pai tinha assegurado um emprego num escritório de importação de máquinas de costura industrial (Pfaff) e a mãe já acertara a sua transferência para uma outra escola estadual (no Passo d'Areia).
Não houve viagem transoceânica nem passagem por uma hospedaria de imigrantes. Dois processos migratórios diferentes, mas com algo essencial em comum: a travessia. O lugar desconhecido. E um inventário de perdas e ganhos.
No caso da minha mãe, a perda da cidade onde nasceu, da proximidade com os pais. A perda de muitas amizades e rotinas e hábitos conhecidos.
– Eu não aguentaria o que os teus avós fizeram – a mãe comentava.
E lembrava os seus bisavôs maternos, que vieram da Alemanha, e principalmente o avô paterno, Joaquim, que veio da Ilha da Madeira. Muitos fios se cruzando na sua memória e imaginação. Fios difíceis de deslindar.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Histórias de família (12)

No início dos anos 70, na Rua Uruguai (no centro de Porto Alegre), um homem apareceu morto no meio da rua. Jogara-se de um dos edifícios daquela área dominada por bancos, financeiras, grandes hotéis, e ficou estirado na calçada. Era de tarde, num dia de semana, e logo juntou um povo ao redor. O adolescente que eu era viu a aglomeração de longe, deu uma espiada e ficou chocado com a morte de um homem – suicídio –, mas fascinado também.
O acontecimento se deu próximo à entrada lateral do Banco da Província e eu ia justamente nesse banco visitar meu pai. Rua Uruguai esquina com a Sete de Setembro. Ele dissera para eu entrar pela porta lateral, dizer ao guarda que iria na Summa, que era filho de Rubens Biasoli, que estava liberado.
A Summa era uma holding criada pelo Montepio da Família Militar (MFM) para controlar o Banco da Província e funcionava numa única sala do alto daquele prédio “vetusto”, sóbrio, grandioso. A holding tinha apenas dois funcionários – um contador (meu pai) e a secretária –, o resto era diretoria (mais de uma dezena), coronéis do Exército, muitos deles professores do Colégio Militar e fundadores do MFM, em 1963.
Eu era um “juliano” (estudante do Colégio Júlio de Castilhos) e naquela tarde o pai prometera me mostrar um enorme salão do banco, o qual era coberto por mármore de Carrara.
– O mesmo mármore que Michelangelo usara em suas esculturas – ele me garantira.
Eu havia lido um romance sobre a vida do grande escultor renascentista e estava fascinado pelo artista.[i] O pai lembrou do salão do banco e lá fomos nós conhecer a pedra das esculturas do Renascimento. E também da decoração de instituições bancárias tradicionais, descobri naquela tarde.
Caminhamos pelo interior do banco, entramos no salão e vi os mármores brancos, azulados, com veios cinzas formando estranhos desenhos. Fascinante. O segurança que nos acompanhava disse que aquele lugar só era aberto para os grandes eventos e havia um respeito profundo na sua voz. Na saída, cruzamos com um dos coronéis da diretoria da Summa e ele perguntou o que eu fazia ali.
Eu não consegui responder, o pai falou dos mármores e o coronel abriu um largo sorriso e disse alguma coisa sobre os materiais nobres, a arte, os saberes que engrandecem a vida. Perguntou onde eu estudava e, ao ouvir que era no “Julinho”, franziu a testa e foi direto:
– Cuidado. Lugar de subversão.
Meu pai riu, passou a mão sobre o meu ombro e disse que o guri sabia se cuidar.
Várias vezes meu pai e eu conversamos sobre essa visita – a pompa dos ambientes do mundo bancário tradicional, a mudança que o sistema financeiro estava passando com o avanço do conglomerado comandado pelo Montepio da Família Militar e a preocupação dos militares com a subversão. Tudo novidade para o adolescente que eu era. Uma aprendizagem da vida, da economia e da sociedade.
Naquela tarde, quando saí do Banco da Província, o corpo do homem morto não estava mais no chão da Rua Uruguai. A rua voltara ao seu normal e nem sangue havia na calçada. Mas, visto à luz da memória, sinto que o corpo do suicida estendido no chão era um espécie de aviso do que eu viveria poucos anos depois. 



[i] O romance Agonia e êxtase, de Irving Stone, publicado de forma condensada pela revista Seleções.

sábado, 9 de maio de 2020

Histórias de família (11)

Após o Golpe de 64 o tio Victor sumiu. Ele morava em Porto Alegre, era brizolista, funcionário do IRGA (Instituto Riograndense do Arroz), e ninguém sabia o seu paradeiro. A mulher e a filha (tia Maria Delfina e Carmen Lúcia) procuraram a delegacia, o quartel, e nada. Todo mundo sabia que ele caíra na malha da repressão que ocorreu com a instalação do governo Castelo Branco, mas como se tratava de operação clandestina (oficialmente ele não fora preso) ninguém (o delegado, o comandante militar) dizia onde ele se encontrava.
Meses depois a tia Landa é informada que ele está num quartel do Exército, no Bairro Fragata, em Pelotas, e que são permitidas visitas. A tia não poderia visita-lo sozinha e sou escalado para acompanhá-la. Eu tinha oito anos e lembro de nós dois entrando no quartel: os dois do mesmo tamanho – ela, anãzinha; eu, um menino – e os soldados nos olhando. Um e outro sorriso zombeteiro na lata dos soldadinhos.
A tia juntou muitas frutas e cigarros, enfiou tudo em duas sacolas, e lá fomos nós. Entramos no quartel e fomos conduzidos a um pavilhão de madeira, com vários quartos, na porta de cada um deles um ou dois soldados armados. Um clima tenso. O tio nos esperava na porta de um desses quartos – magro, barba por fazer, desfeito – e não era nem sombra do tio espalhafatoso que eu conhecia dos encontros familiares.
Foi uma visita rápida. A tia, chorosa, constatou que ele estava vivo, inteiro, depois entregou as frutas, os cigarros, o tio agradeceu e fomos embora. Enquanto isso os soldados armados (de fuzil) nos observavam.
Anos depois ouvi o tio falar que foi pego em Porto Alegre, levado para uma prisão no Rio de Janeiro, úmida, muito úmida, da qual ele via (pela janela da cela) a Baía da Guanabara. E depois trazido para Pelotas, onde foi solto.
Imaginação minha, esse relato? Não sei. Eu tinha 14 ou 15 anos quando ele contou essa história. Era uma conversa entre adultos e, quando ele notou que eu ouvia com atenção, mudou de assunto.
Eu estava no apartamento que ele vivia com a família (na Rua Benjamin Constant, em P. Alegre), onde ia seguidamente visitar minha prima, alguns anos mais velha, estudante de Belas Artes. Ela me emprestava livros que faziam minha cabeça – O apanhador no campo de centeio, de Salinger; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga –, me descortinava novos horizontes e eu gostava muito dela.
Política era um assunto complicado e sobre isso minha prima e eu não conversávamos. Mas era um tema que estava no ar. Os adultos sussurravam a respeito. Volta e meia alguém tinha que dar explicações no DOPS, no quartel, no "castelo do rei". Política era sempre motivo de confusão - e não sei porque desde cedo atraiu minha atenção.
Nos anos 90, pedi ao tio Victor que me desse seu depoimento de militante trabalhista, que me permitisse grava-lo (eu estava pensando um doutorado a partir desse tema), mas ele se esquivou. Às vezes falava do Brizola (com o qual sempre manteve contato), do Jango (que achava que poderia ter resistido ao golpe), mas não avançava muito.
Eu queria saber do seu envolvimento no PTB, no brizolismo, no Grupo dos Onze (projeto de resistência nacionalista e popular criado no final de 1963), numa possível insurreição liderada por Brizola, e ele protelava. Queria que ele falasse do vô Vittorio, pois sentia que era capaz de oferecer uma perspectiva diferente daquela que meu pai e minhas tias passavam, porém ele era reticente, vago.
Ele lembrava do Velho ouvindo as notícias da rádio oficial do Mussolini, rádio italiana, segurava o copo de caipira entre as mãos e olhava longe, muito longe:
– Eram outros tempos, Vitinho, nem queira saber.
Morreu antes que pudesse me contar que tempos eram esses. Se os anos da Segunda Guerra, quando os italianos em Pelotas às vezes eram vistos como quinta-colunas; se os anos do Regime Militar, quando (ao menos no início) ele militou na resistência nacionalista e popular.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Histórias de família (10)

Foi no velório da tia Alice (em 2012). Ela era o último dos catorze filhos do vô Vittorio a falecer. Estou sentado com três primos ao lado do caixão (entre eles o Neno, filho da tia Alice) e conversamos baixinho sobre a família. Mais alguns anos e a tia completaria cem anos. De repente um deles puxa o celular do bolso e mostra uma foto das bodas de ouro dos nossos avós.
Foto de 1945, em Pelotas, num enorme salão. O vô e a vó estão no centro, sentados, e ao redor os filhos e filhas, mais genros e noras, netos e netas e provavelmente alguns bisnetos. Meus primos são mais velhos do que eu e estavam na festa. Um deles no colo do pai, os outros dois sentados no chão, aos pés dos avôs.
– Uma família de imigrantes que prosperou – alguém diz.
Somos quatro primos, quatro herdeiros de um casal de imigrantes, e súbito nos esquecemos que estamos num velório. As vozes se elevam. Eles começam a nomear os participantes da festa, desfiar histórias, casos engraçados e rimos.
Alguém chega por trás e avisa:
– Olha, não quero atrapalhar, mas é o velório da tia.
Rapidamente nos compenetramos e voltamos ao silêncio, um ou outro comentário em voz baixa.
A tia Alice não se incomodaria com a nossa algazarra, mas não era hora. Meses antes dela falecer tomamos um café com bolo, pão, cuca e nem sei-mais-o-quê (na casa do filho com quem ela morava, o Neno), café de mesa farta como ela gostava. E conversamos as coisas de sempre: o Rubens (meu pai), a tia Landa, a casa do avô na Rua Santos Dumont, uma festa junina em 1966 com uma enorme fogueira... Não faltou assunto.
A tia falou de uma caixa de fotos antigas que ela ia separar para mim...  e até hoje não busquei. Espero que o Neno tenha guardado.
Histórias de família se perdem. Difícil dar um eixo narrativo capaz de enfeixar os diversos episódios que ela abriga e penso que o tema da ascensão social é um núcleo possível. Afinal estava presente nas conversas que presenciei entre meus tios. Quem teve sucesso, quem não teve. Quem soube prosperar, quem fracassou. Quem educou os filhos, quem os desgovernou. Principalmente, quem ganhou dinheiro e quem não soube fazer isso. Uma preocupação que se inscreve nos corações & mentes dos imigrantes italianos de um modo mais forte do que na maioria das pessoas.
Afinal eles saíram da Itália para prosperar. Para fazer a América. Alguns até imaginaram voltar e acho que poucos fizeram isso. Se fizeram, não foi o caso dos meus avós. Eles cruzaram o Atlântico e se enraizaram no Brasil. São Paulo, Rio Grande do Sul, Pelotas. Dizem que há muitos Biasoli no estado de São Paulo, mas não conheço. Só informações vagas.
O último endereço dos avós foi na Rua Santos Dumont, em Pelotas, e a casa ainda está lá. Uma casa de porta e janela, estreita e cumprida. No fundo, um pátio que já teve galinheiro (como era costume nas casas pelotenses).
Também um tanque de lavar roupa com um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro. Será que ainda estarão lá? Não sei. A casa existe, mas está abandonada.
Naquele dia do velório da tia Alice, o tema da ascensão social mais uma vez se fez presente entre nós, os netos de seu Vittorio. Meus primos sabiam bem a trajetória daqueles que foram fotografados em 45. O avô colocou os filhos no cenário urbano e os catapultou para o mundo. Cada um, a seu modo, tocou a vida e prosperou. Ai de quem não fizesse isso. As mulheres foram donas de casa – todas elas exímias quituteiras, garantia minha mãe – e as tias Alice e Irani se fizeram costureiras também.
Esse era o tom da conversa do meu pai: a luta pela ascensão social. Não apenas garantir a sobrevivência. Mas provar que se é capaz de colher os bons frutos que a sociedade produz – frutos que não são para todos.
– E não me vem com esse negócio de socialismo pra resolver as carências dos pobres – meu pai dizia. – É arregaçar as mangas e trabalhar, encontrar o seu lugar ao Sol.
Acho que ele repetia alguma coisa aprendida com o pai. E acho que nós, os netos do seu Vittorio, falávamos disso naquele dia, olhando a foto das bodas de ouro, apontando as trajetórias de uns e de outros.
Alguns conseguiram. A maioria. Tiraram o pé do barro. E tudo começou com aqueles dois, sentados no centro da foto, quando eles conseguiram limpar a terra debaixo das unhas.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Histórias de família (9)

Aos 64 anos, relembro o guri de 22 anos que eu era quando meu pai morreu e a imagem é essa mesma: a de um guri. Recém me formara em História (Licenciatura Plena) e minha mãe conseguira (por meio de um político da Arena) um contrato de 12 horas no Magistério Estadual.
Meu primeiro emprego regular. Uma escola em Alvorada (Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza). Comecei a lecionar em abril. O pai morreu no final de maio.
Nessa época (início do ano de 1978) o único irmão da mãe (tio Joaquim) foi diagnosticado com câncer, um mês depois baixou hospital e os médicos disseram que ele tinha pouco tempo de vida. Meus avós estavam hospedados conosco e a mãe não sabia como lhes dar a notícia da morte anunciada do filho primogênito.
Era verão e tudo se passou de modo muito rápido. O diagnóstico, a hospitalização, o avanço rápido da doença. Minha mãe atarantada, não sabendo como informar os pais, como conduzir a situação. Ela, a filha dedicada, sempre preocupada com o bem-estar de todos.
Enquanto isso, o pai – sempre um homem determinado, de respostas rápidas aos desafios da vida – se deprime. Minha mãe se divide entre o irmão, os pais, o marido – e não sabe para onde se virar primeiro. Angustiada, ela às vezes desabafava comigo. Deu prioridade ao irmão e aos pais.
– Teu pai teve uma crise semelhante – ela me disse meses depois. – Aconteceu depois que nasceste.
O tio faleceu na metade de maio, o pai se suicidou no final do mês.
Meses depois um dos irmãos do pai (tio Henrique) morreu e minha mãe e eu fomos ao velório. De noite. No mesmo cemitério onde o tio Joaquim e o pai foram velados e enterrados. Uma noite de inverno. A meia-noite um carro de funerária estacionou na frente da capela onde se dava o velório e o corpo do tio Henrique foi transportado. Ele iria ser conduzido a Santa Maria, onde passara a vida inteira.
A mãe e eu acompanhamos a operação de embarque do corpo. Logo depois pegamos um táxi e voltamos para casa. Do Cemitério João XXIII, na Azenha, para a Rua Sete de Abril, no Bairro Floresta. As ruas vazias, o táxi atravessando a cidade, atravessando o mundo, e nós dois quietos. Parecia que deslizávamos por um território que não era real. De repente ela se vira para mim e diz:
– Não aguento mais – e aperta minha mão.
Quando chegamos em casa, ela preparou um chá e ficamos conversando na copa. Apesar de falarmos, lembro mesmo é do silêncio. Nossa conversa não era animada. Meus dois irmãos haviam casado e só ela e eu vivíamos no apartamento onde vivemos nós cinco.
A mãe, uma mulher decidida, forte, com escrúpulos exacerbados, superprotetora em relação aos filhos, vibrante em relação a vida – figura marcante na minha vida – estava cansada. Os seus pais haviam voltado para Pelotas e parte do seu coração estava com eles, longe.
Ela bebia o chá, falava coisas a respeito da minha vida e senti seu manto protetor se fechar em torno de mim. Temi. Não tinha namorada, era um professor em início de carreira, com um livro de poemas na gaveta esperando publicação e temi. Nem sei explicar esse temor. Mas no início do ano seguinte saí de casa.
Seja como for, era um guri. Com uma visão romântica da vida. Uma recusa da modernidade capitalista e o entendimento das coisas que misturava devaneios ripongas com esquerdismo estudantil. Nem sei explicar. Nem sei como meu pai e eu conversávamos.
Na virada de 77 para 78, bebendo vinho com ele na mesa da copa (nunca usamos a expressão “sala de jantar”), ele falou na possibilidade de me presentear com um carro. Tinha esperanças quanto aos negócios em que se metera – a compra de dois caminhões em sociedade, o investimento numa pedreira – e me perguntou o que eu queria.
Então divagamos. Contei que gostaria de cruzar aquele trecho do litoral norte, entre o farol de Mostardas e São José do Norte, e um jeep seria bom. Muito bom também para ir para Fortaleza dos Aparados da Serra.
Talvez tenha sido uma das últimas conversas antes do vendaval que nos abateu: a doença do tio Joaquim, a depressão e suicídio do pai. 

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Histórias de família (8)

No final da década de 80 eu morava em Porto Alegre, no centro. Dois filhos pequenos, minha mulher e eu professores da rede estadual e uma vida muito apertada, isto é, com grana curta. Uma noite toca o telefone e do outro lado da linha uma amiga (Tatiana Lenskij), pesquisadora na área da História, conta que encontrou um Biasoli (ou Biasioli, não lembro) em um jornal da década de 1920.
– O nome dele é Vittorio, é teu parente? – ela pergunta.
– Meu avô – eu respondo.
E ela conta o que encontrou no jornal. O Vittorio Biasoli era chefe de seção de uma oficina mecânica, em Santa Maria, e os ferroviários entraram em greve. O chefe da seção não aderiu ao movimento paredista e entregou uma lista com o nome dos grevistas para a direção da empresa. O jornal era de sindicato ou de organização política e denunciava meu avô.
– Teu avô jogava do lado da repressão – ela comenta.
Eu lembro que ele era um imigrante em ascensão, simpatizava com Mussolini e concluo que talvez não tivesse dificuldade em se alinhar aos patrões. Alcançara uma boa posição profissional e queria manter isso. Era o modo de cumprir seu projeto de ascensão social, manter a família e sei-lá-mais-o-quê. Por que iria se preocupar com ferroviários socialistas ou anarquistas?
– Meu avô era chegado ao fascismo – eu explico para a Tatiana.
Ela e eu fomos colegas no Curso de História, na UFRGS, e nosso primeiro exercício de pesquisa histórica foi a respeito da criação da primeira estrada de ferro no Rio Grande do Sul. Leitura das atas da Assembleia Provincial. As primeiras discussões a respeito da construção da ferrovia. Os deputados discutem sobre a necessidade de favorecer o transporte de gado das estâncias da Campanha para as charqueadas de Pelotas e logo depois o assunto sai de pauta. Provavelmente porque os estancieiros avisaram os nobres deputados que uma estrada regular atrapalharia o contrabando de gado com o Uruguai. Às vezes valia mais à pena negociar com os hermanos do que com os charqueadores pelotenses.
Assim, a primeira ferrovia foi construída entre as cidades de São Leopoldo e Porto Alegre e é a partir daí que inicia a história da estrada de ferro no estado. E o modelo de estação ferroviária foi o mesmo utilizado nos Estados Unidos, isto é, com paredes revestidas de folhas de zinco para resistir às flechas dos índios.
Empresas estrangeiras investiram no setor e capitalistas belgas e norte-americanos aportaram por aqui. Em 1920 a ferrovia foi encampada pelo poder público. Borges de Medeiros, presidente do estado, pretendia atender a classe proprietária barateando o custo dos transportes e criou a Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
É nesse contexto que meu avô imigrante chegou ao Rio Grande do Sul.
A Tatiana não me disse a data exata da greve (ou não lembro). Mas garantiu que o caso se passara em Santa Maria. Provavelmente nas oficinas do Km 3, nas quais as tias me garantiram que ele esteve ligado.
Tia Irani me disse, ainda, que em Santa Maria a família morou na Vila Belga, numa casa de esquina, na Rua André Marques com a Rua Manuel Ribas. E ela e outras irmãs estudaram na Escola de Artes e Ofícios Santa Terezinha, escola criada pela Cooperativa dos Ferroviários para as filhas dos seus associados.
Vila Belga, em Santa Maria. Casa onde meu avô morou.
Quando minha amiga relatou essa história, eu não conhecia Santa Maria. Naquela noite do telefonema, fiquei na janela da sala olhando a cidade. Morava no sétimo andar, devo ter bebido um cálice de conhaque e pensado na trajetória do avô... Mal sabia que meses depois prestaria concurso na Universidade Federal de Santa Maria (1989), e dois anos depois me estabeleceria na cidade.
Conheceria a Vila Belga – um conjunto de casas construídas a partir de 1905, pela direção da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer, para os funcionários superiores da empresa – e fotografaria a casa em que o vô morou. Uma casa pequena para uma família tão grande, com mais de uma dezena de filhos, mas a tia Irani garantiu que todos moraram ali.
Um avô imigrante, um avô ferroviário – que não fechou com os grevistas e os denunciou.