No início dos anos 70, na Rua Uruguai (no centro de
Porto Alegre), um homem apareceu morto no meio da rua. Jogara-se de um dos edifícios
daquela área dominada por bancos, financeiras, grandes hotéis, e ficou estirado
na calçada. Era de tarde, num dia de semana, e logo juntou um povo ao redor. O
adolescente que eu era viu a aglomeração de longe, deu uma espiada e ficou chocado com a morte
de um homem – suicídio –, mas fascinado também.
O acontecimento se deu próximo à entrada lateral do
Banco da Província e eu ia justamente nesse banco visitar meu pai. Rua Uruguai esquina com a Sete de Setembro. Ele dissera
para eu entrar pela porta lateral, dizer ao guarda que iria na Summa,
que era filho de Rubens Biasoli, que estava liberado.
A Summa era uma holding criada pelo Montepio da Família
Militar (MFM) para controlar o Banco da Província e funcionava numa única sala
do alto daquele prédio “vetusto”, sóbrio, grandioso. A holding tinha apenas dois funcionários – um contador (meu
pai) e a secretária –, o resto era diretoria (mais de uma dezena), coronéis do
Exército, muitos deles professores do Colégio Militar e fundadores do MFM, em
1963.
Eu era um “juliano” (estudante do Colégio Júlio de Castilhos)
e naquela tarde o pai prometera me mostrar um enorme salão do banco, o qual era
coberto por mármore de Carrara.
– O mesmo mármore que Michelangelo usara em suas
esculturas – ele me garantira.
Eu havia lido um romance sobre a vida do
grande escultor renascentista e estava fascinado
pelo artista.[i] O pai
lembrou do salão do banco e lá fomos nós conhecer a pedra das esculturas do Renascimento. E também da decoração de instituições bancárias
tradicionais, descobri naquela tarde.
Caminhamos pelo interior do banco, entramos no salão e vi os mármores brancos, azulados, com veios cinzas formando estranhos
desenhos. Fascinante. O segurança que nos acompanhava disse que aquele lugar só era aberto
para os grandes eventos e havia um respeito profundo na sua voz. Na
saída, cruzamos com um dos coronéis da diretoria da Summa e ele perguntou o que
eu fazia ali.
Eu não consegui responder, o pai falou dos mármores e
o coronel abriu um largo sorriso e disse alguma coisa sobre os materiais
nobres, a arte, os saberes que engrandecem a vida. Perguntou onde eu estudava e, ao
ouvir que era no “Julinho”, franziu a testa e foi direto:
– Cuidado. Lugar de subversão.
Meu pai riu, passou a mão sobre o meu ombro e disse que o guri sabia se cuidar.
Várias vezes meu pai e eu conversamos sobre essa
visita – a pompa dos ambientes do mundo bancário tradicional, a mudança
que o sistema financeiro estava passando com o avanço do conglomerado comandado
pelo Montepio da Família Militar e a preocupação dos militares com a subversão.
Tudo novidade para o adolescente que eu era. Uma aprendizagem da vida, da economia e da sociedade.
Naquela tarde, quando saí do Banco da Província, o
corpo do homem morto não estava mais no chão da Rua Uruguai. A rua voltara ao
seu normal e nem sangue havia na calçada. Mas, visto à luz da memória, sinto que o corpo do suicida estendido no chão era um espécie de aviso do que eu viveria poucos anos depois.
[i] O romance Agonia e êxtase, de Irving Stone, publicado de forma condensada pela revista Seleções.
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