quarta-feira, 6 de maio de 2020

Histórias de família (10)

Foi no velório da tia Alice (em 2012). Ela era o último dos catorze filhos do vô Vittorio a falecer. Estou sentado com três primos ao lado do caixão (entre eles o Neno, filho da tia Alice) e conversamos baixinho sobre a família. Mais alguns anos e a tia completaria cem anos. De repente um deles puxa o celular do bolso e mostra uma foto das bodas de ouro dos nossos avós.
Foto de 1945, em Pelotas, num enorme salão. O vô e a vó estão no centro, sentados, e ao redor os filhos e filhas, mais genros e noras, netos e netas e provavelmente alguns bisnetos. Meus primos são mais velhos do que eu e estavam na festa. Um deles no colo do pai, os outros dois sentados no chão, aos pés dos avôs.
– Uma família de imigrantes que prosperou – alguém diz.
Somos quatro primos, quatro herdeiros de um casal de imigrantes, e súbito nos esquecemos que estamos num velório. As vozes se elevam. Eles começam a nomear os participantes da festa, desfiar histórias, casos engraçados e rimos.
Alguém chega por trás e avisa:
– Olha, não quero atrapalhar, mas é o velório da tia.
Rapidamente nos compenetramos e voltamos ao silêncio, um ou outro comentário em voz baixa.
A tia Alice não se incomodaria com a nossa algazarra, mas não era hora. Meses antes dela falecer tomamos um café com bolo, pão, cuca e nem sei-mais-o-quê (na casa do filho com quem ela morava, o Neno), café de mesa farta como ela gostava. E conversamos as coisas de sempre: o Rubens (meu pai), a tia Landa, a casa do avô na Rua Santos Dumont, uma festa junina em 1966 com uma enorme fogueira... Não faltou assunto.
A tia falou de uma caixa de fotos antigas que ela ia separar para mim...  e até hoje não busquei. Espero que o Neno tenha guardado.
Histórias de família se perdem. Difícil dar um eixo narrativo capaz de enfeixar os diversos episódios que ela abriga e penso que o tema da ascensão social é um núcleo possível. Afinal estava presente nas conversas que presenciei entre meus tios. Quem teve sucesso, quem não teve. Quem soube prosperar, quem fracassou. Quem educou os filhos, quem os desgovernou. Principalmente, quem ganhou dinheiro e quem não soube fazer isso. Uma preocupação que se inscreve nos corações & mentes dos imigrantes italianos de um modo mais forte do que na maioria das pessoas.
Afinal eles saíram da Itália para prosperar. Para fazer a América. Alguns até imaginaram voltar e acho que poucos fizeram isso. Se fizeram, não foi o caso dos meus avós. Eles cruzaram o Atlântico e se enraizaram no Brasil. São Paulo, Rio Grande do Sul, Pelotas. Dizem que há muitos Biasoli no estado de São Paulo, mas não conheço. Só informações vagas.
O último endereço dos avós foi na Rua Santos Dumont, em Pelotas, e a casa ainda está lá. Uma casa de porta e janela, estreita e cumprida. No fundo, um pátio que já teve galinheiro (como era costume nas casas pelotenses).
Também um tanque de lavar roupa com um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro. Será que ainda estarão lá? Não sei. A casa existe, mas está abandonada.
Naquele dia do velório da tia Alice, o tema da ascensão social mais uma vez se fez presente entre nós, os netos de seu Vittorio. Meus primos sabiam bem a trajetória daqueles que foram fotografados em 45. O avô colocou os filhos no cenário urbano e os catapultou para o mundo. Cada um, a seu modo, tocou a vida e prosperou. Ai de quem não fizesse isso. As mulheres foram donas de casa – todas elas exímias quituteiras, garantia minha mãe – e as tias Alice e Irani se fizeram costureiras também.
Esse era o tom da conversa do meu pai: a luta pela ascensão social. Não apenas garantir a sobrevivência. Mas provar que se é capaz de colher os bons frutos que a sociedade produz – frutos que não são para todos.
– E não me vem com esse negócio de socialismo pra resolver as carências dos pobres – meu pai dizia. – É arregaçar as mangas e trabalhar, encontrar o seu lugar ao Sol.
Acho que ele repetia alguma coisa aprendida com o pai. E acho que nós, os netos do seu Vittorio, falávamos disso naquele dia, olhando a foto das bodas de ouro, apontando as trajetórias de uns e de outros.
Alguns conseguiram. A maioria. Tiraram o pé do barro. E tudo começou com aqueles dois, sentados no centro da foto, quando eles conseguiram limpar a terra debaixo das unhas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário