Após o Golpe de 64 o tio Victor sumiu. Ele morava em
Porto Alegre, era brizolista, funcionário do IRGA (Instituto Riograndense do Arroz), e ninguém sabia o seu paradeiro. A mulher e a filha (tia Maria
Delfina e Carmen Lúcia) procuraram a delegacia, o quartel, e nada. Todo mundo
sabia que ele caíra na malha da repressão que ocorreu com a instalação do
governo Castelo Branco, mas como se tratava de operação clandestina (oficialmente
ele não fora preso) ninguém (o delegado, o comandante militar) dizia onde ele
se encontrava.
Meses depois a tia Landa é informada que ele está num
quartel do Exército, no Bairro Fragata, em Pelotas, e que são permitidas visitas.
A tia não poderia visita-lo sozinha e sou escalado para acompanhá-la. Eu tinha
oito anos e lembro de nós dois entrando no quartel: os dois do mesmo tamanho –
ela, anãzinha; eu, um menino – e os soldados nos olhando. Um e outro sorriso zombeteiro na
lata dos soldadinhos.
A tia juntou muitas frutas e cigarros, enfiou tudo em duas sacolas, e lá fomos nós. Entramos no quartel e fomos conduzidos a um pavilhão de madeira, com vários quartos, na porta de cada um
deles um ou dois soldados armados. Um clima tenso. O tio nos esperava na porta
de um desses quartos – magro, barba por fazer, desfeito – e não era nem sombra
do tio espalhafatoso que eu conhecia dos encontros familiares.
Foi uma visita rápida. A tia, chorosa, constatou que
ele estava vivo, inteiro, depois entregou as frutas, os cigarros, o tio agradeceu e fomos
embora. Enquanto isso os soldados armados (de fuzil) nos observavam.
Anos depois ouvi o tio falar que foi pego em Porto
Alegre, levado para uma prisão no Rio de Janeiro, úmida, muito úmida, da qual
ele via (pela janela da cela) a Baía da Guanabara. E depois trazido para
Pelotas, onde foi solto.
Imaginação minha, esse relato? Não sei. Eu tinha 14 ou
15 anos quando ele contou essa história. Era uma conversa entre adultos e,
quando ele notou que eu ouvia com atenção, mudou de assunto.
Eu estava no apartamento que ele vivia com a família (na Rua Benjamin Constant,
em P. Alegre), onde ia seguidamente visitar minha prima, alguns anos mais
velha, estudante de Belas Artes. Ela me emprestava livros que faziam minha cabeça
– O apanhador no campo de centeio, de Salinger; A hora dos ruminantes,
de José J. Veiga –, me descortinava novos horizontes e eu gostava muito dela.
Política era um assunto complicado e sobre isso minha prima e eu não conversávamos. Mas era um tema que estava no ar. Os adultos sussurravam a respeito. Volta e meia alguém tinha que dar explicações no DOPS, no quartel, no "castelo do rei". Política era sempre motivo de confusão - e não sei porque desde cedo atraiu minha atenção.
Nos anos 90, pedi ao tio Victor que me desse seu
depoimento de militante trabalhista, que me permitisse grava-lo (eu estava pensando um doutorado a partir desse tema), mas ele se esquivou. Às vezes falava do Brizola (com o qual sempre manteve contato),
do Jango (que achava que poderia ter resistido ao golpe), mas não avançava
muito.
Eu queria saber do seu envolvimento no PTB, no
brizolismo, no Grupo dos Onze (projeto de resistência nacionalista e popular criado
no final de 1963), numa possível insurreição liderada por Brizola, e ele
protelava. Queria que ele falasse do vô Vittorio, pois sentia que era capaz de
oferecer uma perspectiva diferente daquela que meu pai e minhas tias
passavam, porém ele era reticente, vago.
Ele lembrava do Velho ouvindo as notícias da rádio
oficial do Mussolini, rádio italiana, segurava o copo de caipira entre as mãos e olhava longe,
muito longe:
– Eram outros tempos, Vitinho, nem queira saber.
Morreu antes que pudesse me contar que tempos eram
esses. Se os anos da Segunda Guerra, quando os italianos em Pelotas às vezes eram vistos
como quinta-colunas; se os anos do Regime Militar, quando (ao menos
no início) ele militou na resistência nacionalista e popular.
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