sábado, 9 de maio de 2020

Histórias de família (11)

Após o Golpe de 64 o tio Victor sumiu. Ele morava em Porto Alegre, era brizolista, funcionário do IRGA (Instituto Riograndense do Arroz), e ninguém sabia o seu paradeiro. A mulher e a filha (tia Maria Delfina e Carmen Lúcia) procuraram a delegacia, o quartel, e nada. Todo mundo sabia que ele caíra na malha da repressão que ocorreu com a instalação do governo Castelo Branco, mas como se tratava de operação clandestina (oficialmente ele não fora preso) ninguém (o delegado, o comandante militar) dizia onde ele se encontrava.
Meses depois a tia Landa é informada que ele está num quartel do Exército, no Bairro Fragata, em Pelotas, e que são permitidas visitas. A tia não poderia visita-lo sozinha e sou escalado para acompanhá-la. Eu tinha oito anos e lembro de nós dois entrando no quartel: os dois do mesmo tamanho – ela, anãzinha; eu, um menino – e os soldados nos olhando. Um e outro sorriso zombeteiro na lata dos soldadinhos.
A tia juntou muitas frutas e cigarros, enfiou tudo em duas sacolas, e lá fomos nós. Entramos no quartel e fomos conduzidos a um pavilhão de madeira, com vários quartos, na porta de cada um deles um ou dois soldados armados. Um clima tenso. O tio nos esperava na porta de um desses quartos – magro, barba por fazer, desfeito – e não era nem sombra do tio espalhafatoso que eu conhecia dos encontros familiares.
Foi uma visita rápida. A tia, chorosa, constatou que ele estava vivo, inteiro, depois entregou as frutas, os cigarros, o tio agradeceu e fomos embora. Enquanto isso os soldados armados (de fuzil) nos observavam.
Anos depois ouvi o tio falar que foi pego em Porto Alegre, levado para uma prisão no Rio de Janeiro, úmida, muito úmida, da qual ele via (pela janela da cela) a Baía da Guanabara. E depois trazido para Pelotas, onde foi solto.
Imaginação minha, esse relato? Não sei. Eu tinha 14 ou 15 anos quando ele contou essa história. Era uma conversa entre adultos e, quando ele notou que eu ouvia com atenção, mudou de assunto.
Eu estava no apartamento que ele vivia com a família (na Rua Benjamin Constant, em P. Alegre), onde ia seguidamente visitar minha prima, alguns anos mais velha, estudante de Belas Artes. Ela me emprestava livros que faziam minha cabeça – O apanhador no campo de centeio, de Salinger; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga –, me descortinava novos horizontes e eu gostava muito dela.
Política era um assunto complicado e sobre isso minha prima e eu não conversávamos. Mas era um tema que estava no ar. Os adultos sussurravam a respeito. Volta e meia alguém tinha que dar explicações no DOPS, no quartel, no "castelo do rei". Política era sempre motivo de confusão - e não sei porque desde cedo atraiu minha atenção.
Nos anos 90, pedi ao tio Victor que me desse seu depoimento de militante trabalhista, que me permitisse grava-lo (eu estava pensando um doutorado a partir desse tema), mas ele se esquivou. Às vezes falava do Brizola (com o qual sempre manteve contato), do Jango (que achava que poderia ter resistido ao golpe), mas não avançava muito.
Eu queria saber do seu envolvimento no PTB, no brizolismo, no Grupo dos Onze (projeto de resistência nacionalista e popular criado no final de 1963), numa possível insurreição liderada por Brizola, e ele protelava. Queria que ele falasse do vô Vittorio, pois sentia que era capaz de oferecer uma perspectiva diferente daquela que meu pai e minhas tias passavam, porém ele era reticente, vago.
Ele lembrava do Velho ouvindo as notícias da rádio oficial do Mussolini, rádio italiana, segurava o copo de caipira entre as mãos e olhava longe, muito longe:
– Eram outros tempos, Vitinho, nem queira saber.
Morreu antes que pudesse me contar que tempos eram esses. Se os anos da Segunda Guerra, quando os italianos em Pelotas às vezes eram vistos como quinta-colunas; se os anos do Regime Militar, quando (ao menos no início) ele militou na resistência nacionalista e popular.

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