segunda-feira, 8 de abril de 2019

Sala Amarna, uma visita fascinante


A Sala Amarna, do Museu Egípcio (no Cairo), é de encher os olhos. Na verdade, é de revirar os olhos. Encher os olhos e o coração. Fiquei impactado.

A sala tem o nome da cidade criada pelo faraó Amenófis IV, do Novo Império, que, em função de sua devoção ao deus Aton, o Disco Solar, mudou o seu nome para Akhenaton. E também criou uma nova capital, Akhetaton, depois conhecida como Amarna (daí o nome da sala).

Amenófis tinha um projeto religioso revolucionário: a implantação de uma religião monoteísta, a transformação da religiosidade politeísta egípcia e, em especial, o fim do predomínio do culto a Amon, o fim do poder do clero de Amon (que competia com o poder dos faraós). Ao reformar a religiosidade egípcia, o faraó também pretendia a supremacia do poder real sobre novas bases, contendo não só os sacerdotes de Amon, mas também os militares (outro tradicional sustentáculo do poder real) que já se estendiam na Ásia Menor (na Palestina e Síria) e também na África (na Núbia e atual Sudão). Além de monoteísta, Akhenaton tinha um projeto pacifista (como se o poder de um império pudesse prescindir das armas). Seu projeto era religioso, político, e também ético e artístico. Era pretensão demais e os sacerdotes de Amon não tiveram dificuldade em conspirar e ganhar apoio da sociedade em geral para a retomada do poder. O faraó reinou 16 anos (de 1352 a 1336 a.C.) e se supõe que tenha sido assassinado.

Quando entrei na sala Amarna, o que chamou atenção foi a mudança no padrão artístico das peças, a transformação na representação do faraó - "as zigomas salientes, os olhos oblíquos, a boca sensual" - e de sua rainha. Depois de andar pelo museu, ver as tantas peças de faraós estáticos e hierárquicos, salta aos olhos a chamada “revolução naturalista” que Akhenaton desencadeou. A sala é um pouco confusa (como é, de modo geral, o museu inteiro), as peças estão exibidas de maneira um pouco caótica, mas nem por isso o impacto é menor. Uma grande estatua do faraó monopoliza a atenção (primeira foto abaixo) e logo sabemos que estamos diante dos registros de um reinado diferenciado dentro da civilização egípcia. Um faraó revolucionário e sua belíssima rainha, Nefertiti. A escultura da cabeça da rainha, de apenas 33 centímetros (segunda foto abaixo), me deixou maravilhado. Na sequência, uma pedra com o relevo do faraó, a rainha e as filhas adorando o Sol (terceira foto) e indicando o que talvez seja a síntese da reforma religiosa pretendida: a família real como agente principal da adoração de Aton e, dessa maneira, o vínculo entre a população egípcia e o mundo divino.

Uma sala do Museu do Cairo que é impossível esquecer.

Colosso de Akhenaton.

Cabeça de Nefertiti.


Relevo de Akhenaton, esposa e filhas adorando Aton, o disco solar.

Ao voltar da viagem, li o romance de Naguib Mahfuz, “Akhenaton, o rei herege”, que tinha guardado há anos. Também li uma peça teatral de Agatha Christie, “Akhenaton”, igualmente sobre o personagem central da Sala Amarna. Não procurei literatura especializada sobre o tema, isto é, material escrito por historiadores,  e me refestelei apenas com a produção dos ficcionistas.

Mahfuz registra diversas versões sobre o reinado do faraó e parece sintetizar o que existe sobre o tema. No seu romance, ambientado poucos anos após a morte de Akhenaton, um rapaz sai em busca da verdade a respeito do reinado recém encerrado e entrevista diversos personagens que tiveram contato com o faraó, inclusive a rainha Nefertiti. Por meio desse recurso (que não resulta num romance empolgante) o autor registra versões conflitantes a respeito do rei – inclusive a de que ele não manteve relações sexuais com a rainha, que as suas filhas são de amantes de Nefertiti (entre eles, o general Horemheb, grande amigo do faraó), e que ele apenas conseguiu transar com a mãe, a rainha Tyie, tendo uma filha com ela. O personagem investigador, no entanto, não se decide por nenhuma versão, não refuta as hipóteses conflitantes, e conclui afirmando seu "entusiasmo pelos hinos religiosos" de Akhenaton e seu "profundo amor pela belíssima senhora".

Na peça teatral de Agatha Christie, muito mais empolgante para o leitor de ficção, há conspiração, traição e envenenamento, e também algum romantismo. Além de dar concretude a propalada versão da conspiração dos sacerdotes de Amon e do assassinato do faraó, a famosa escritora apresenta uma Nefertiti amorosa, que não trai o marido nem o abandona quando sacerdotes e generais solapam o seu poder. Na versão da peça, Nefertitti até se suicida quando percebe que o faraó foi envenenado, como uma versão mais antiga da conhecida Cleópatra. Literariamente, a trama convence. Um bom final para quem se emocionou com as peças expostas na Sala Amarna e não consegue esquecer o seu impacto.



Livros citados:

MAHFUZ, Naguib. Akhenaton, o rei herege. Rio de Janeiro: Record, 2005. 222 p. (O autor recebeu o Prêmio Nobel da Literatura em 1988.)
CHRISTIE, Agatha. Akhenaton – uma peça em três atos. Porto Alegre: L&PM, 2018. 168 p. (Segundo informações da contracapa, a autora se baseou nas lendas que lhe foram contadas pelo arqueólogo Howard Carter.)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Peregrinação ao Templo de Ísis

         Visitei o famoso Templo de Philae, dedicado a deusa Ísis, e me senti um peregrino – um peregrino do velho Império Romano –, vá entender uma coisa dessas. Coisa de professor de História, na certa.

O Templo, ou conjunto de templos, pois são vários prédios, com a mão de diversos faraós (especialmente da dinastia ptolemaica, mais imperadores romanos), foi construído a partir do século III a.C. e se tornou um grande centro de peregrinação no Mundo Antigo. O culto a Ísis ultrapassou as fronteiras do Egito, se expandiu pelo mundo greco-romano e chegou a competir com o nascente cristianismo. A devoção só se extinguiu com a proibição do imperador Justiniano, no ano 513. Padres cristãos ocuparam o lugar, tentaram apagar a imagem da deusa, mas a coisa não deu certo.

No início do século XX, o templo estava semicoberto pelas águas de uma represa e, na década de 1960, com a criação do Lago Nasser (para uma nova e maior represa), a UNESCO coordenou um projeto de desmontagem da construção e seu restabelecimento em outro local. O Templo de Philae, construído na ilha de Philae, foi reassentado em novo local, numa ilha próxima, especialmente preparada para isso. Uma obra de engenharia impressionante. O mesmo aconteceu com outros templos e túmulos da região – inclusive o complexo templário de Abu Simbel, dedicados ao faraó Ramsés II e a sua esposa favorita, Nefertari.

O Templo de Philae, visão lateral, do lago, quando se chega de barco.
Quando avistei o templo, de dentro da lancha que conduzia meu grupo para a visita, me senti um velho romano em peregrinação... Devo ter lido sobre o culto de Ísis quando era estudante universitário, no Curso de História da UFRGS... Os romanos se encantavam com as religiões orientais, capazes de responder à inquietações (especialmente em relação à morte) que a religião oficial não dava mais conta. Acho que foi nessa época de estudante também que um amigo (hoje falecido) passou a utilizar a expressão “queimar incenso no altar de Ísis” para todas as vezes que saia para namorar. Queimar incenso, incensar Ísis, a mulher, honrar e venerar o feminino. Na Antiguidade as deusas eram sexualizadas (muito diferente do que veio acontecer com as figuras femininas da cristandade) e tal expressão não era um sacrilégio, pelo contrário, era uma possiblidade da devoção religiosa. As deusas eram mulheres que viviam a sua sexualidade, muito ao contrário das divindades cristãs.

Assim, ao entrar no espaço do Templo de Ísis, não apenas realizei uma viagem ao Mundo Antigo, mas uma volta a minha própria história. Um peregrino trilhando diversos tempos, tanto o do período da crise do Império Romano desencadeada no final do século II d.C. (Toynbee era uma referência para esse assunto), quanto o da década de 1970, vivido de forma tumultuada pelo jovem estudante que eu era. Estudante que aprendia e se surpreendia com as divindades femininas da Antiguidade – Ishtar, Ísis, Diana, Afrodite – e a tremenda mudança que aconteceu com a vitória e supremacia do cristianismo.

Ísis era filha de Nut (Céu) e de Geb (Terra), irmã de Osíris, Seth e Néftis. Ísis e Osíris se casaram e desceram ao mundo dos homens para civiliza-los. Osíris separou os homens dos animais, ensinou-lhes as técnicas agrícolas, deu-lhes leis e foi seu primeiro monarca. O irmão Seth ficou enciumado (ele também queria governar o Egito) e terminou matando Osíris e retalhando o seu corpo em diversos pedaços (14, segundo algumas versões). Ísis recolheu as diversas partes do marido morto e conseguiu reavivar a sua força vital. Morto, Osíris fecundou Ísis - em grande parte, graças as artes mágicas da esposa - e depois renasceu no Mundo dos Mortos.

Uma história e tanto, com diversas versões – inclusive a de que Ísis não encontrou o pênis do marido (que fora engolido por um peixe das águas do Nilo) e a fecundação se deu exclusivamente devido aos seus poderes mágicos da deusa. Poderes, magia e artes (propiciatórias de renascimento) que depois seriam ensinados aos iniciados nos mistérios da religião de Ísis.

Percorri as diversas salas de complexo templário lembrando as tantas leituras a respeito do mito, a religião que daí surgiu, assim como o movimento dos peregrinos que vinham adorar a deusa, queimar incenso no seu altar. Os faraós da dinastia ptolemaica deram especial destaque a esse culto e ele se expandiu pelo mundo greco-romano, com templos na Grécia, em Roma e até na distante Lusitânia. Uma devoção que atraiu a atenção do historiador Plutarco, no século I d.C., e o levou a escrever uma compilação mito osiriano. As religiões orientais penetravam com força na sociedade romana – a de Ísis, Mitra, a de Cristo também – e nós bem sabemos qual saiu vencedora. Com o predomínio cristão o Templo de Philae foi fechado – assim como o Templo de Éfeso, dedicado a Diana, outra importante deusa da Antiguidade – e nunca mais o mundo ocidental cultuou divindades femininas com atributos sexuais tão evidentes. Que longa luta em torno do feminino!

Peregrino ou não (cansado de uma longa caminhada pelos espaços do templo), encontrei a melhor evidência da grandeza da deusa Ísis numa das salas do fundo. Esculpido numa parede, vi o relevo da deusa com o filho sobre as pernas, uma imagem terna, a da Deusa Mãe e o Filho Divino (Hórus), que ela conseguiu do marido morto graças a sua determinação e arte. Uma representação certamente precursora das Madonas com o Menino que a Cristandade, séculos mais tarde, consagrou. Uma imagem reveladora das transformações - e também da continuidade - do culto às divindades femininas. Uma imagem a indicar o sonho e o desejo de muitos de nós. Uma mulher que acolhe, uma mulher que incendeia. A imagem ideal para um peregrino. Me senti realizado.

Deusa Ísis e o Filho Hórus.