terça-feira, 24 de outubro de 2023

Modelos de negócios e de crimes

 

Em julho de 2018 fiz um passeio a Rocinha, no Rio de Janeiro. Uma caminhonete com carroceria adaptada para transporte de passageiros passou na frente do hotel, minha companheira e eu embarcamos, e tive a impressão de que íamos a um safari. Num grupo de dez pessoas, canadenses na sua maioria, éramos os únicos brasileiros. “São os estrangeiros que gostam de visitar as favelas”, explicou o guia da excursão.

Descemos no alto da Rocinha, o guia trocou sinais com os moradores (para se assegurar que “a situação estava sob controle”) e seguimos a pé pelo bairro durante toda a manhã, caminhando até o asfalto da Av. Engenheiro Mac Dowell. Ruas estreitas, habitações de todos os tipos (muitas delas com pouca iluminação solar), “lajes” com acomodações para festas, motocicletas de alta cilindrada nas ruas e dentro das casas. Um bairro com aparência tranquila, com pessoas idosas na porta das casas cumprimentando os passantes.

No entanto, lá pelas tantas, o guia me avisou que segurasse a máquina fotográfica de maneira que não parecesse que eu estivesse filmando. “Os olheiros do tráfico estão atentos”, ele avisou. No caminho cruzáramos por policiais fortemente armados, mas isso não significava que os traficantes não tinham algum controle da área. Algo difícil de entender: um território compartilhado pelos poderes da polícia (do Estado) e o dos traficantes.

Realidade difícil, claro, para quem não é carioca. Na véspera escutara uma moradora do bairro (garçonete na Confeitaria Colombo, no interior do Forte de Copacabana) e ela garantira que a Rocinha era um local bom de morar. “Às vezes tem tiroteio, mas a gente aprende a conviver”, ela explicara.

Retomo esse passeio inesquecível, pois terminei de ler A República das Milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso (Ed. Todavia, 2020), e a Rocinha é o único local que conheço dessa vasta região de bairros cariocas disputados por bicheiros, traficantes e milicianos. Locais dominados por “elites armadas, tirânicas e criminosas”, segundo o autor. Grupos que se constroem como verdadeiros reinos (semelhantes aos de “Game of Thrones”, compara o autor) que tanto enfrentam a ordem estatal quanto se misturam com o aparelho do Estado.

Bruno Manso é jornalista e seu livro é tanto uma abordagem jornalística quanto histórica e sociológica dos modelos de crime no Rio de Janeiro. O modelo já tradicional dos bicheiros, dos traficantes de drogas (a partir da década de 1980) e das atuais milícias (formadas no início dos anos 2000), todos eles inter-relacionados. Modelos de domínio territorial, de negócios e de crimes, expressões do empreendedorismo carioca e com características distintas do crime paulistano. Em São Paulo, por exemplo, o PCC (um dos campos de estudo do autor) assume a sua “condição marginal” e seus integrantes se dizem atuar “do lado certo de uma vida errada”. No Rio de Janeiro, não, os criminosos são mais confiantes. No caso específico das milícias (lideradas por policiais) eles se sentem “como se representassem o estilo de vida correto”, como se os seus argumentos tivessem vencido os dos defensores do Estado de Direito.

Para exemplificar essa certeza e confiança, o autor cita os diversos casos de milicianos homenageados e condecorados pela Assembleia do Rio de Janeiro (ALERJ), como ocorreu com o policial Ronnie Lessa (o assassino de Marielle Franco) e o cap. Adriano da Nóbrega (integrante do Escritório do Crime). Homenagens que parecem legitimar a prática miliciana aos olhos de uma população (um grande setor da sociedade brasileira) que não acredita nem confia em instituições democráticas, Direitos Humanos e Estado de Direito. Sinais assustadores (as milícias e sua expressão política) de um tempo que alguns de nós achávamos impossível de se estabelecer na atual sociedade brasileira.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Uma cena kafkiana

          

Uma manhã acordei na cama de uma mulher e senti a minha pele transformada numa superfície cheia de escamas (semelhante a um besouro), como se eu fosse um Gregor Samsa, o personagem da Metamorfose, de Kafka. Eu tinha 20 anos, a noite não fora ruim, pelo contrário, mas parecia que eu transpusera algum limite e isso não passaria sem punição. Nunca vivera uma experiência sexual tão satisfatória e precisei me esforçar para vencer a sensação pavorosa de me metamorfosear em um ser repulsivo.

Há um ano eu era paciente de uma psicoterapia e um dos resultados do tratamento se revelou naquele amanhecer. Sim, eu venci o monstro, isto é, a mim mesmo, e pude (após momentos angustiantes) voltar à realidade do meu corpo e sentir (com prazer) a respiração da mulher ao meu lado. A luz do amanhecer entrava pelas frestas das venezianas, revelava os contornos do quarto (um armário com livros na parede em frente a cama, um armário de roupas à minha direita) e o corpo da mulher ao meu lado, dormindo suavemente.

A sensação da pele escamada como a de um inseto foi desaparecendo, eu passei a mão sobre meu peito, sobre as pernas, senti que tudo estava normal e foi como se regressasse de um poço muito sombrio... A mulher ao meu lado respirava mansamente, os dois braços junto aos seios, uma de suas pernas me roçando, tocando em mim, me fazendo existir como eu nunca conseguira até então.

Eu apenas sabia o seu primeiro nome, no que e onde trabalhava (era secretária bilíngue de uma grande indústria), algumas preferências literárias e cinematográficas, e não muito mais que isso. Nós nos conhecêramos numa janta na casa de amigos comuns, na véspera, e nem sei como terminamos juntos... A primeira noite de uma relação que se estendeu por quatro ou cinco meses e não posso me queixar de coisa alguma. Apenas da minha juvenilidade e do modo como pus tudo a perder, isto é, fazer a nossa relação ir água abaixo. Incapacidade completa de saber os limites do nosso relacionamento (éramos, no mínimo, pessoas com trajetórias distintas: ela, uma mulher independente de 24 anos; eu, um universitário sustentado pela família), incapacidade de equacionar aquela relação/namoro completamente inusitada para mim.

Muitos anos depois nos encontramos na Avenida Salgado Filho – ela casada e com filhos; eu, também casado e já com uma filha – e pude sentir que não ficaram mágoas. Éramos dois antigos amantes mostrando fotos de nossos rebentos e dando vagas do que fizéramos e fazíamos de nossas vidas.

Mas naquela manhã de inverno de 1976, eu era um corpo que se debatia com uma transformação semelhante a de Gregor Samsa. Por um triz não embarquei no mesmo infortúnio do personagem kafkiano e afundei na minha fantasmagoria. Por um triz não perdi a minha frágil humanidade. Recordo que um dia, num café da manhã, tentei lhe contar a angústia daquele amanhecer, a minha história kafkiana... e ela não quis entender. Colocou mais leite e café na minha xícara e achou graça da minha maluquice.

Não recordo a minha reação. Acho que fiquei calado, observando-a admirado, saboreando sua maneira de ver a vida sem grandes complicações e conduzindo o jovem que eu era para o coração da vida adulta.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Uma nova mulher

 

Uma amiga me perguntou porque dei a ela, dois meses atrás, uma xícara com o desenho de um bigode. Eu disse que não sabia direito, mas que intuíra, na época, que ela andava com namorado novo. Contei, então, que eu estava tomando café numa confeitaria, olhei as prateleiras com diversas xícaras, doces e chocolates, e lembrei dela. Seu aniversário era por aqueles dias e eu escolhi a xícara com bigodes e a enchi de bombons. Uma presente simples, uma lembrança, que deixei com a sua secretária. Eu a havia encontrado semanas antes, ela falara sem parar e dera algumas pistas quanto a “alguém andar na área”, a principal delas a de que aderira ao consumo de vinhos.

– Uma taça relaxa, tu disseste, me olhando de um modo enviesado e engraçado que me fez imaginar coisas – expliquei. – Afinal tu nunca gostaste de bebida alcoólica e pensei num homem experiente te convencendo a beber uma ou duas taças para relaxar.

Trabalhei com minha amiga anos atrás e acredito que ela esteja beirando os cinquenta anos. Ela sempre fez mistério em relação à idade e imagino, devido aos filmes que assistiu no cinema, que ande nessa faixa etária. Digo isso a ela - depois de comentar que ela anda sempre muito vistosa, atraindo olhares por onde passa - e recebo um sorriso de volta. É uma das suas habilidades esses cuidados: o da pele, da silhueta e das roupas, investir no visual e embaralhar as impressões que os outros tenham dela. Habilidade plenamente exitosa.

Minha amiga terminou um casamento sem filhos e aparentemente ficou sozinha desde então. Cultivou uma narrativa de agressões verbais e humilhações sofridas no convívio com o ex-marido – um relato exagerado, no meu entendimento, mas vá saber o que vive uma mulher com o seu parceiro. Eu acompanhei a vida dos dois, conheci o seu marido razoavelmente, e acho minhas dúvidas pertinentes (mas não ponho a mão no fogo). Sei que ele leu Simone de Beauvoir, defendia as pautas feministas e um dia até achou que era capaz de entender as mulheres. Uma fantasia muito comum entre os homens do meu círculo social: achar que a leitura d’O segundo sexo nos habilitou a um entendimento e aproximação do universo feminino.

– Vocês nunca conseguiram se desprender do machismo dominante – ouvi minha amiga afirmar certa vez e desconfio, em parte (mas só em parte), que ela tem razão.

Seja como for, alguma intuição eu tenho em relação às mulheres, isto é, no caso da minha amiga bispei e acertei que um homem andava frequentando o seu apartamento. Ela confirmou. E acrescentou que se reinventou após a separação, que não é mais aquela mulher que se deixava calar e que, nos novos relacionamentos que tem vivido, está aproveitando muito mais.

– Novos? – eu pergunto surpreso e ela apenas diz que eles são melhores que o “falecido”.

Pergunto também se alguma vez ela se calou, se alguma vez ela deixou de fazer o que queria, e ela responde que “não é bem isso”.

– Eu sou outra mulher, compreende?

Não compreendo. Mas essa crônica é uma homenagem a essa mulher que se sente mais dona de si própria, da sua vida e do seu corpo, e assim se coloca no mundo, com maior autonomia e capacidade de conquistar o próprio prazer (um prazer que entende que o mundo lhe negou).