Em julho de 2018 fiz um passeio a Rocinha, no Rio
de Janeiro. Uma caminhonete com carroceria adaptada para transporte de
passageiros passou na frente do hotel, minha companheira e eu embarcamos, e tive
a impressão de que íamos a um safari. Num grupo de dez pessoas, canadenses na
sua maioria, éramos os únicos brasileiros. “São os estrangeiros que gostam de
visitar as favelas”, explicou o guia da excursão.
Descemos no alto da Rocinha, o guia trocou sinais com os moradores (para se assegurar que
“a situação estava sob controle”) e seguimos
a pé pelo bairro durante toda a manhã, caminhando até o asfalto da Av. Engenheiro
Mac Dowell. Ruas estreitas, habitações de todos os tipos (muitas delas com
pouca iluminação solar), “lajes” com acomodações para festas, motocicletas
de alta cilindrada nas ruas e dentro das casas. Um bairro com aparência tranquila,
com pessoas idosas na porta das casas cumprimentando os passantes.
No entanto, lá pelas tantas, o guia me avisou que
segurasse a máquina fotográfica de maneira que não parecesse que eu estivesse
filmando. “Os olheiros do tráfico estão atentos”, ele avisou. No caminho
cruzáramos por policiais fortemente armados, mas isso não significava que os
traficantes não tinham algum controle da área. Algo difícil de entender: um
território compartilhado pelos poderes da polícia (do Estado) e o dos
traficantes.
Realidade difícil, claro, para quem não é carioca. Na
véspera escutara uma moradora do bairro (garçonete na Confeitaria Colombo, no
interior do Forte de Copacabana) e ela garantira que a Rocinha era um local bom
de morar. “Às vezes tem tiroteio, mas a gente aprende a conviver”, ela
explicara.
Retomo esse passeio inesquecível, pois terminei de
ler A República das Milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro,
de Bruno Paes Manso (Ed. Todavia, 2020), e a Rocinha é o único local que
conheço dessa vasta região de bairros cariocas disputados por bicheiros,
traficantes e milicianos. Locais dominados por “elites
armadas, tirânicas e criminosas”, segundo o autor. Grupos que se constroem como
verdadeiros reinos (semelhantes aos de “Game of Thrones”, compara o autor) que tanto
enfrentam a ordem estatal quanto se misturam com o aparelho do Estado.
Bruno Manso é jornalista e seu livro é tanto uma
abordagem jornalística quanto histórica e sociológica dos modelos de crime no
Rio de Janeiro. O modelo já tradicional dos bicheiros, dos traficantes de drogas
(a partir da década de 1980) e das atuais milícias (formadas no início dos anos
2000), todos eles inter-relacionados. Modelos de domínio territorial, de
negócios e de crimes, expressões do empreendedorismo carioca e com
características distintas do crime paulistano. Em São Paulo, por exemplo, o PCC
(um dos campos de estudo do autor) assume a sua “condição marginal” e seus
integrantes se dizem atuar “do lado certo de uma vida errada”. No Rio de
Janeiro, não, os criminosos são mais confiantes. No caso específico das
milícias (lideradas por policiais) eles se sentem “como se representassem o
estilo de vida correto”, como se os seus argumentos tivessem vencido os dos
defensores do Estado de Direito.
Para exemplificar essa certeza e confiança, o autor
cita os diversos casos de milicianos homenageados e condecorados pela
Assembleia do Rio de Janeiro (ALERJ), como ocorreu com o policial Ronnie Lessa
(o assassino de Marielle Franco) e o cap. Adriano da Nóbrega (integrante
do Escritório do Crime). Homenagens que parecem legitimar a prática miliciana aos
olhos de uma população (um grande setor da sociedade brasileira) que não
acredita nem confia em instituições democráticas, Direitos Humanos e Estado de
Direito. Sinais assustadores
(as milícias e sua expressão política) de um tempo que alguns de nós achávamos
impossível de se estabelecer na atual sociedade brasileira.