Uma manhã acordei na cama de uma mulher e senti a
minha pele transformada numa superfície cheia de escamas (semelhante a um
besouro), como se eu fosse um Gregor Samsa, o personagem da Metamorfose,
de Kafka. Eu tinha 20 anos, a noite não fora ruim, pelo contrário, mas parecia
que eu transpusera algum limite e isso não passaria sem punição. Nunca vivera uma
experiência sexual tão satisfatória e precisei me esforçar para vencer a sensação
pavorosa de me metamorfosear em um ser repulsivo.
Há um ano eu era paciente de uma psicoterapia e um
dos resultados do tratamento se revelou naquele amanhecer. Sim, eu venci o
monstro, isto é, a mim mesmo, e pude (após momentos angustiantes) voltar à
realidade do meu corpo e sentir (com prazer) a respiração da mulher ao meu lado.
A luz do amanhecer entrava pelas frestas das venezianas, revelava os contornos do
quarto (um armário com livros na parede em frente a cama, um armário de roupas
à minha direita) e o corpo da mulher ao meu lado, dormindo suavemente.
A sensação da pele escamada como a de um inseto foi
desaparecendo, eu passei a mão sobre meu peito, sobre as pernas, senti que tudo
estava normal e foi como se regressasse de um poço muito sombrio... A mulher ao
meu lado respirava mansamente, os dois braços junto aos seios, uma de suas
pernas me roçando, tocando em mim, me fazendo existir como eu nunca conseguira
até então.
Eu apenas sabia o seu primeiro nome, no que e onde
trabalhava (era secretária bilíngue de uma grande indústria), algumas
preferências literárias e cinematográficas, e não muito mais que isso. Nós nos conhecêramos
numa janta na casa de amigos comuns, na véspera, e nem sei como terminamos
juntos... A primeira noite de uma relação que se estendeu por quatro ou cinco
meses e não posso me queixar de coisa alguma. Apenas da minha juvenilidade e do
modo como pus tudo a perder, isto é, fazer a nossa relação ir água abaixo. Incapacidade
completa de saber os limites do nosso relacionamento (éramos, no mínimo,
pessoas com trajetórias distintas: ela, uma mulher independente de 24 anos; eu,
um universitário sustentado pela família), incapacidade de equacionar aquela
relação/namoro completamente inusitada para mim.
Muitos anos depois nos encontramos na Avenida
Salgado Filho – ela casada e com filhos; eu, também casado e já com uma filha –
e pude sentir que não ficaram mágoas. Éramos dois antigos amantes mostrando fotos
de nossos rebentos e dando vagas do que fizéramos e fazíamos de nossas vidas.
Mas naquela manhã de inverno de 1976, eu era um corpo
que se debatia com uma transformação semelhante a de Gregor Samsa. Por um triz
não embarquei no mesmo infortúnio do personagem kafkiano e afundei na minha fantasmagoria.
Por um triz não perdi a minha frágil humanidade. Recordo que um dia, num café
da manhã, tentei lhe contar a angústia daquele amanhecer, a minha história kafkiana...
e ela não quis entender. Colocou mais leite e café na minha xícara e achou
graça da minha maluquice.
Não recordo a minha reação. Acho que fiquei calado,
observando-a admirado, saboreando sua maneira de ver a vida sem grandes
complicações e conduzindo o jovem que eu era para o coração da vida adulta.
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