quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Breve "verão" da militância (1978-79)

            A reforma partidária proposta oficialmente pelo Governo Figueiredo, no primeiro ano do seu governo, foi vista com surpresa por muitos de nós, jovens que abriram os olhos para a política ao longo dos anos 70. Uma surpresa positiva. Uma possibilidade instigante. O bipartidarismo era uma artificialidade completa – coisa de governo autoritário – e precisava ser extinto.

Mas o tema se colocou para mim antes da proposta oficial do Governo. Em meados de 78 (ainda no Governo Geisel) o jornal Versus propôs e festejou a ideia de um Partido Socialista. Creio que até o Fernando Henrique Cardoso estava entre os que apoiavam a ideia – mas isso preciso conferir. Hoje, essa memória me parece absurda.  

FHC, naquele tempo, tinha enorme credibilidade entre os intelectuais de esquerda e sua obra sociológica (a Teoria da Dependência inclusive) era lida e respeitada. Seus livros constavam na bibliografia dos cursos de Ciências Humanas e, no Curso de História da UFRGS, recordo que alguns de seus títulos constavam entre as leituras obrigatórias das disciplinas de História do Brasil e História da América Latina.

Mas a ideia de um Partido Socialista anunciada pelo Versus foi apenas um cometa que passou no céu da pátria, naquele instante. Logo foi superada por outras propostas político-partidárias. A lembrança que eu tenho é de que tudo mudava rapidamente naquele final de 78 e início de 79. Em janeiro ou fevereiro o jornal Em tempo fez uma reportagem sobre o tema e penso que ali já estava colocada a ideia de um partido dos trabalhadores, nascido do novo sindicalismo paulista. O jornal Movimento expressava uma certa desconfiança em relação ao Lula e as coisas iam por aí.

Nesse mesmo verão recebo o convite de um amigo (Adeli Sell) para participar de uma reunião sobre o assunto. Uma reunião numa das salas do Teatro de Câmara, na Rua da República, em Porto Alegre. A ideia, se não me falha a memória, era de criar um partido classista, um partido da classe operária e fiquei pensando se essa proposta ainda era cabível, tendo em vista as mudanças do capitalismo, a diminuição quantitativa do operariado industrial e coisas assim. Um questionamento bem próprio de quem era formado em História e estudara sobre as mudanças da economia e sociedade capitalistas, como era meu caso.

E aqui cabe um registro de como eu me inseria no mundo, na época. Em janeiro de 1979, eu era um jovem de 23 anos, que se formara em História pela UFRGS, em 1977,  lecionava no Grupo Escolar Júlio Cézar Ribeiro de Souza, em Alvorada, e trabalhava na Rádio Capital, em Porto Alegre (na função de rádio-escuta). O ingresso no Magistério Estadual (na condição de contratado, 12 horas) se dera por indicação de um “pistolão” (um vereador da ARENA, Rafael Santos, amigo da minha família) e isso não me incomodara. Com o cartão do vereador eu fora na Delegacia de Educação de Gravataí e, na mesma tarde, saíra com o “fono” para a escola de Alvorada. Acho que foi assim.

Nessa época, não tinha experiência política partidária (como não tenho até hoje) e todo meu contato com o tema se dera após o ingresso na UFRGS, em 1974. Cursara o colegial no Julinho (Colégio Júlio de Castilho, em Porto Alegre) e nesse período (1971-73) o grêmio estudantil estava fechado e todo o passado de agitações políticas da escola era ignorado pela estudantada. Que tempos estranhos aqueles! Na Universidade, entrei em contato o movimento estudantil, por meio do Diretório Acadêmico dos Institutos Unificados (DAIU), acompanhei com entusiasmo os debates político-ideológicos do período e me tornei um leitor assíduo dos jornais Movimento, Versus e Em tempo.

Na Rádio Capital (onde comecei a trabalhar naquele verão de 79), fui convidado por uma colega jornalista (Neusa Ribeiro) a participar das reuniões do Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) e essa foi minha única experiência de participação num grupo político. Mas não fui longe. Não passei de um tarefeiro que levava o jornal da organização (O Companheiro) para vender na escola e em eventos políticos, como no 1º de Maio de 1979. No caso desse 1º de Maio, um ato político num campo da Zona Norte de Porto Alegre, no qual havia mais vanguarda e policiais do que trabalhadores. Tentei vender um jornal para um sujeito que me pareceu ser um “rato”, mas ele não quis. Vendi pela metade do preço um exemplar para um vendedor de amendoim (um sujeito que lia com dificuldade as manchetes do jornal) e essa é a melhor lembrança.

A organização tinha reunião todos os sábados à tarde e, na metade do ano de 79, interessou-se pelo movimento que organizava o futuro Partido dos Trabalhadores. Eu participei de algumas reuniões nesse sentido e foi uma experiência curta. Não aguentei muito tempo.

Não recordo a posição do MEP em relação ao novo partido, mas penso que, de modo geral, a organização se colocava como uma tendência independente, muito crítica em relação às posições moderadas (não revolucionárias) que pareciam ser dominantes no novo partido. Pouco a pouco, porém, fui simpatizando com o tom da esquerda petista, distante do marxismo-leninismo que orientava o MEP. Mas não sei propriamente quando isso se deu, isto é, quando tomei consciência disso. Provavelmente foi muito depois.

Na época, o que havia era empolgação. Muita discussão, conversas de horas à fio, e pouca leitura realmente atenta dos tantos textos, análises, abordagens diversas e conflitantes. No meu caso, faltava competência e maturidade. Eu lia e interpretava tudo à luz do meu raso conhecimento de História e marxismo e era difícil chegar a alguma conclusão. Me sentia no olho do furacão, com o sentimento de estar vivendo um momento importante do Regime Militar: o da sua derrocada (ou, pelo menos, era assim que eu percebia a conjuntura). E estava feliz por isso. Eu era jovem, achava que o mundo poderia mudar e que um partido que se propusesse a defender a pauta dos trabalhadores era tudo que a sociedade brasileira precisava.

E, assim como mantinha contato com a esquerda radical, tinha conhecimento pessoal também da esquerda moderada alojada dentro do MDB. Recordo que essas pessoas entendiam que não era hora de se desfazer da grande frente política que era esse partido, pois isso só enfraqueceria a oposição. Opinião, claro, que eu ignorava solenemente. Entre essas pessoas, mais tarde, vim a saber que algumas eram vinculadas aos partidos comunistas (PCB e PCdoB) e isso me faz concluir (hoje) que eu pouco entendia da vida real da política brasileira. Era um jovem professor e ainda vivia o clima eufórico muito comum aos estudantes. Me faltava senso de realidade e eu procurava compensar isso me entrosando com as atividades do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS). Através do CPERS, eu pretendia uma experiência mais concreta do mundo do trabalho e, dessa maneira, uma superação do meu idealismo. O mundo da política partidária me parecia muito difícil de compreender e o mundo do trabalho, algo mais tangível.

Nesse contato com os integrantes do Magistério Estadual, recordo que conheci o professor Clóvis Oliveira, fui a uma reunião no seu apartamento, e me impressionei ao ouvi-lo dizer que a classe operária brasileira já tinha o seu partido e que o PT não iria substituí-lo. Talvez não fossem essas as suas palavras, mas recordo que o novo partido não lhe interessava. Os trabalhadores já tinham a sua organização partidária.

É dessa forma que lembro as coisas daquele período. Não há precisão nessa memória. Eu era um tarefeiro do MEP e nunca formalizei o meu ingresso na organização. Acho que integrava a organização de um modo um pouco irresponsável, sem vínculos formais, sem um compromisso mais forte.

Um dia, participei manhã e tarde de uma plenária do futuro PT (no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora de Pompeia, em P. Alegre) e a experiência foi definitiva. Na véspera, no sábado, passara a tarde inteira discutindo com meus companheiros do MEP a respeito da posição da organização em relação ao novo partido e foi com essa orientação que fui para a plenária. Era uma posição bem fechada, exigindo que o novo partido se comprometesse com uma perspectiva obreira, com o socialismo e uma futura agenda revolucionária. Quando chegou no domingo, assisti os dirigentes da organização arrefecerem suas posições para conquistarem algum lugar nas comissões que eram formados.

Saí da reunião cansado, com dor de cabeça, chateado com o que assistira e me esforçando muito para compreender. Pragmaticamente, entendia o que os dirigentes da organização haviam feito – mas tinha dificuldade de aceitar. Teoricamente, as coisas não se encaixavam e eu não sabia como conciliar a visão revolucionária do MEP com o pragmatismo político das principais lideranças (sindicalistas, na maior parte) do novo partido. Mas não sei se eu colocava o assunto nesses termos. Possivelmente não. Levei anos pensando sobre isso e acho que esse foi um dos assuntos que pautaram o PT até os anos 90: a difícil relação entre as tendências revolucionárias e a direção partidária, mais moderada.

No entanto, o que me incomodava mais é que gastara o final de semana inteiro nessa atividade política e não sabia se era isso que queria para a minha vida. Uma semana de trabalho me esperava – aulas no grupo escolar pela manhã, jornadas das 18 às 24 horas na Rádio Capital – e eu estava cansado depois daquela plenária. Exaurido. Daria o meu couro para a política partidária?, para uma prática política na qual eu era atropelado, não compreendia direito? Essas eram as questões.

Devo acrescentar que nesse mesmo final de 1979 conhecera uma moça, estava apaixonado e logo começamos a fazer planos de morar juntos, de casar oficialmente inclusive (o que ocorreu em fevereiro de 81). Estava, então, sob o signo da paixão e tudo mais foi se tornando secundário. Centrei minha atividade no trabalho, na vida prática, e logo tive uma surpresa: fui demitido da Rádio Capital. Não conseguiria me sustentar apenas com o contrato de 12 horas no Magistério Estadual e precisava de outra atividade. E o problema, mais uma vez, foi resolvido por meio de pistolão: minha madrinha tinha uma amiga na Delegacia de Educação, em Canoas, e essa funcionária conseguiu um novo contrato numa escola próxima à Vila Mathias Velho. Mais uma vez fui trabalhar na periferia de Porto Alegre.

Dessa maneira, dei uma basta na minha experiência político partidária. Deixei o MEP (nem recordo o que conversei com meus antigos companheiros) e decidi que voltaria minha atenção para o campo sindical, o CPERS (que naquele tempo ainda não era sindicato) – um campo muito mais fácil de compreender e atuar.

          De certa forma, foi uma atitude individualista: me voltei para a vida privada, para a vida mais concreta, tangível. O mundo político partidário era demais para mim. Acompanhei de longe a fundação do PT e confesso que gostei do modo como o partido se apresentou: sem os signos da esquerda tradicional (sem referências a Marx e Lênin nos documentos oficiais) e se colocando aberto para discutir os rumos da classe trabalhadora e, inclusive, a questão do socialismo. Um socialismo que, me parece, ainda é um projeto daqueles que se alinham ao campo do Trabalho – um projeto que não está fechado, um sonho talvez, mas um sonho que ainda vale a pena ser sonhado.

Obs.: esse texto foi escrito a pedido do meu amigo Adeli Sell e está incluído no seu livro "Memórias do PT gaúcho - vol. 1" (PoA, Ed. Documenta, 2021). 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

O mendigo (memória dos anos 80)

           Eu estava comendo um sanduíche no balcão de um bar e avistei pela janela: um homem sentado no chão da calçada. Me levantei, cheguei mais perto do vidro e constatei: a pele branca encardida, as roupas imundas, alguns sacos ao redor. Um mendigo. Um quadro deplorável. Até o sanduíche que eu mastigava ficou difícil de engolir.

Paguei o lanche, segui meu caminho, mas antes disso passei perto do homem e o observei mais uma vez.

Naquele tempo, além de lecionar numa escola estadual, eu trabalhava para o Círculo do Livro e era isso que eu fazia naquele final de tarde. Batia na porta das casas, apartamentos, às vezes de um escritório, e entregava os livros encomendados.  A Montanha Mágica, de Thomas Mann, romances da Agatha Christie, Dom Quixote, Maquiavel, Diderot. Tinha um cliente, advogado, que só adquiria clássicos.

Quando cheguei em casa no início da noite, o mendigo não me saia da cabeça. Esquentei no fogão uma comida que havia na geladeira e minha mulher, que já estava deitada, quase dormindo, veio conversar comigo, na cozinha. Eu comia e ela falava do enxoval do nosso filho, passava a mão pela barriga e dizia que ele às vezes dava uns chutes muito fortes.

– Ele ou ela – ela falava. Não sabíamos. Ela fizera um ultrassom, mas naquela época não era fácil ver o sexo da criança.

Pensei em falar do mendigo, mas os assuntos do bebê eram tantos e foi melhor assim. Na semana seguinte, no mesmo bar, bebendo uma xícara de café com leite, vi de novo o maltrapilho no chão da calçada. O mesmo lugar.

O garçom notou que eu não tirava os olhos do homem e falou:

– Era professor em Bagé. Homem culto, neto de fazendeiro, com terra arrendada e tudo mais. Conhecia muitos livros, era respeitado, tinha mulher bonita, filhos, mas se perdeu na bebida. Foi corneado e deu nisso.

Olhei para o mendigo e ele lia um livro sem capa. Naquele dia, eu tinha na sacola O estrangeiro, de Camus, Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, Os sertões, entre outros. E o meu cliente advogado me deu Anarquistas, graças adeus, da Zélia Gattai, que saíra recentemente e ele possuía mais de um exemplar.

“Será que eu acabaria assim?”, pensei, olhando o mendigo. Será que eu me enredaria com a vida, a bebida, a mulher, e deixaria tudo para trás?

Naquela época, eu dava vinte aulas por semana, tinha dez turmas, 300 e poucos alunos, carregava sacolas de livros e era difícil fechar o mês. Sempre faltava grana.

E foi assim durante um bom tempo. Eu passava naquela esquina e lá estava o homem. Entrava no bar, fazia um lanche e observava os seus traços finos do seu rosto, das mãos. Às vezes o olhar perdido, às vezes os olhos presos num livro sebento, desconjuntado.

Um dia, porém, encontrei a esquina vazia e o garçom me informou:

– Vieram buscar o homem e ele não quis ir de jeito nenhum. Dois enfermeiros parrudos pegaram ele à força, enfiaram dentro de uma ambulância e acho que foram direto pro hospício.

Minha filha já tinha nascido, era uma rica duma guria e eu não sabia que um bebê podia ser tão bonito. Na sacola, eu trazia Drummond, Vinicius, vários títulos da Agatha Christie e os clássicos do meu cliente advogado.

Naquela noite, esse cliente me recebeu no seu escritório, me serviu uma bebida e ficamos conversando. Ele conhecia um pouco de Machado, mas só agora terminara O Alienista e estava lendo Memórias póstumas...

– A vida não deixa a gente fazer o que quer – ele disse. – A vida nos pega, nos usa e muitas vezes nos joga fora depois de um tempo. Depois de um tempo de serventia – concluiu. Depois se virou para mim e comentou:

– O outro entregador não era como tu. Não lia. Mas conhecia todo o catálogo do Círculo, sabia vender e, se tu deixavas, ele te convencia dessa e daquela obra. Um avião.

– Eu sou professor – eu falei. E estranhamente senti vergonha de dizer isso.

Quando cheguei em casa, minha mulher dormia com o bebê ao lado, na nossa cama. Tinha acabado de amamentar a criança e eu peguei o pacotinho (era uma menina) e levei para o seu quarto. Coloquei a guria no berço, acendi o abajur e fiquei lendo a Zélia Gattai que ganhara de presente. Estava no fim e terminei naquela noite.

Não lembro porque, mas pensei no mendigo. A pele encardida, as unhas pretas, os livros sem capa, sujos. Um homem que foi professor, tinha terra arrendada, grana, mulher bacana e filhos. Mas perdeu tudo. Coisa alguma o segurou no prumo. 

Naquela tarde, no bar, havia uma pilha de livros sobre o balcão. O Senhor Embaixador, do Érico, As sandálias do pescador, do Morris West, e um Alceu Wamosy. Todos eles com capa.

         – Uma mulher do bairro deixou aqui – disse o garçom, apontando os livros. – Ela estava fazendo faxina em casa, se lembrou do mendigo e deixou os livros aqui para eu entregar pra ele. Eu falei que levaram o homem, mas ela não escutou. 

sábado, 23 de outubro de 2021

Feira do Livro na pandemia

Durante a Feira do Livro, escutei um médico falar que a pandemia acabou já faz alguns meses. Escutei calado, pois não conhecia o sujeito e ando sem ânimo para criar polêmica. Estava numa roda de conversa, ele era amigo de um amigo e justificou sua opinião afirmando que o novo coronavírus estava sendo superdimensionado pelo embate político.

A pandemia terminou, as máscaras não servem para coisa alguma e “usá-las é como querer pescar lambari com rede para peixe grande”, ele arrematou.

Eu sou um leigo que assiste aos noticiários de TV (os da GloboNews e os da TV Cultura, de São Paulo), que aceita o que é noticiado, e achei melhor não contestar um médico que trabalha em hospital, lida com os doentes do novo vírus e por aí vai. Quem sou eu? O que eu sei? Mas, se um dia eu for contaminado e desenvolver sintomas dessa doença, não gostaria de ser atendido por um médico como ele.

Logo o grupo se dissolveu e voltei para casa repassando o meu entendimento a respeito da peste. A epidemia não terminou, apenas arrefeceu e não dá para descuidar. Talvez seja questionável a eficácia das máscaras, mas é o que existe para driblar a disseminação do vírus (além da vacina, claro, o instrumento mais eficaz) e não dá para bobear.

Eu costumo não usar máscara quando saio para caminhar longe do centro da cidade (das calçadas movimentadas), mas sempre a utilizo quando entro em qualquer estabelecimento ou quando encontro alguém no caminho e paro para conversar. Não sei se exagero, não sei se estou sendo razoável e são essas as dúvidas que carrego nos últimos dias.

         No sábado passado (dia 16) fui a uma sessão de autógrafos na Feira do Livro e lá estava (como os demais escritores daquela sessão) devidamente mascarado. Uma cena de ficção científica, me pareceu, que deixo aqui registrada por meio da foto que Dartanham Figueiredo tirou de um instante em que Márcio Grings e eu conversávamos. Um cena estranha, bizarra - parecemos dois extraterrestres -, mas uma cena comum nesses tempos de peste. E, por que não dizer?, de insanidade política também.



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segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Tempos de peste (2)

 

Sexta-feira passada fui à abertura da Feira do Livro de Santa Maria, realizada no Theatro Treze de Maio. Meu primeiro evento em lugar fechado, desde o início da pandemia. A plateia era restrita, o uso da máscara era obrigatório e nem todos os lugares estavam disponíveis. Alguns assentos tinham uma fita por cima, outros estavam liberados, determinando que as pessoas se sentassem com certo distanciamento. “Que tempos!” – foi o que pensei, olhando a pequeno número de espectadores.

Meus raros leitores dirão que isso não é assunto para crônica e concordo com eles. Nada de relevante, tendo em conta os milhões de brasileiros que se expuseram a situações de risco de contaminação desde o início da atual peste. A maioria porque não tinha como evitar; outros porque seguiram a orientação do Inominável e consideraram (talvez considerem ainda) a doença como “uma gripezinha”. Apenas uma parcela reduzida da população pode se dar ao luxo do isolamento social completo. Eu sou um desses privilegiados e faço o registro, lembrando de meu avô materno, que viveu a gripe espanhola em Pelotas. Ele talvez compreendesse a necessidade de deixar isso escrito.

A Feira do Livro teve (tem, pois ainda está acontecendo) número reduzido de expositores na praça e, antes de entrar no teatro, fiz o roteiro de praxe. Passei pelas barracas, olhei as novidades, bisbilhotei nos balaios (encontrei uma peça de Sêneca) e conversei com amigos. Mas devo dizer que não sentia o desembaraço e alegria de outras vezes. Como eu, alguns dos meus amigos estavam também se exercitando. Eram professores que, desde o início da peste, trabalham em casa, ministrando aulas de forma remota, participando de reuniões, congressos e os mais variados tipos de lives.

Um desses professores me disse que contava nos dedos das mãos as vezes em que esteve no centro da cidade desde março de 2019. Uma amiga falou dos pais (com quase 80 anos) que estão muito chateados por terem de ficar em casa, pois contavam aproveitar o final de suas vidas viajando, passeando e visitando familiares. Porém, todos os que conversei estão relativamente bem, com os rendimentos garantidos e nenhum está incluído no enorme rol dos desempregados ou dos que tiveram seus negócios interrompidos. A maioria professores de universidades públicas, alguns de universidades privadas e, estes sim, sofrendo a redução do número de aulas e, consequentemente, de salário.

“Que tempos!” No ano passado iniciei uma espécie de diário da pandemia, mas não dei prosseguimento. Não tenho muito o que contar. Aposentado de universidade federal, olho o mundo da sacada do apartamento, leio livros, vejo filmes e rememoro a vida em geral. Como os pais da minha amiga, eu também imaginara viajar. Mas os tempos são outros e, parodiando uma fala da peça do Sêneca, em "As troianas" (o livro que encontrei na Feira do Livro), encerro esse registro dizendo:

– Aceita, rei da Frígia, essa lamentação, aceita esse choro de um ancião.