A reforma partidária proposta oficialmente pelo Governo Figueiredo, no primeiro ano do seu governo, foi vista com surpresa por muitos de nós, jovens que abriram os olhos para a política ao longo dos anos 70. Uma surpresa positiva. Uma possibilidade instigante. O bipartidarismo era uma artificialidade completa – coisa de governo autoritário – e precisava ser extinto.
Mas o tema se colocou para mim antes da proposta
oficial do Governo. Em meados de 78 (ainda no Governo Geisel) o jornal Versus
propôs e festejou a ideia de um Partido Socialista. Creio que até o Fernando
Henrique Cardoso estava entre os que apoiavam a ideia – mas isso preciso
conferir. Hoje, essa memória me parece absurda.
FHC, naquele tempo, tinha enorme credibilidade entre
os intelectuais de esquerda e sua obra sociológica (a Teoria da Dependência
inclusive) era lida e respeitada. Seus livros constavam na bibliografia dos cursos
de Ciências Humanas e, no Curso de História da UFRGS, recordo que alguns de
seus títulos constavam entre as leituras obrigatórias das disciplinas de
História do Brasil e História da América Latina.
Mas a ideia de um Partido Socialista anunciada pelo
Versus foi apenas um cometa que passou no céu da pátria, naquele instante. Logo foi
superada por outras propostas político-partidárias. A lembrança que eu tenho é
de que tudo mudava rapidamente naquele final de 78 e início de 79. Em janeiro
ou fevereiro o jornal Em tempo fez uma reportagem sobre o tema e penso
que ali já estava colocada a ideia de um partido dos trabalhadores, nascido do
novo sindicalismo paulista. O jornal Movimento expressava uma certa
desconfiança em relação ao Lula e as coisas iam por aí.
Nesse mesmo verão recebo o convite de um amigo
(Adeli Sell) para participar de uma reunião sobre o assunto. Uma reunião numa
das salas do Teatro de Câmara, na Rua da República, em Porto Alegre. A ideia,
se não me falha a memória, era de criar um partido classista, um partido da
classe operária e fiquei pensando se essa proposta ainda era cabível, tendo em
vista as mudanças do capitalismo, a diminuição quantitativa do operariado
industrial e coisas assim. Um questionamento bem próprio de quem era formado em
História e estudara sobre as mudanças da economia e sociedade capitalistas,
como era meu caso.
E aqui cabe um registro de como eu me inseria no
mundo, na época. Em janeiro de 1979, eu era um jovem de 23 anos, que se formara
em História pela UFRGS, em 1977, lecionava
no Grupo Escolar Júlio Cézar Ribeiro de Souza, em Alvorada, e trabalhava na Rádio
Capital, em Porto Alegre (na função de rádio-escuta). O ingresso no Magistério
Estadual (na condição de contratado, 12 horas) se dera por indicação de um “pistolão”
(um vereador da ARENA, Rafael Santos, amigo da minha família) e isso não me
incomodara. Com o cartão do vereador eu fora na Delegacia de Educação de
Gravataí e, na mesma tarde, saíra com o “fono” para a escola de Alvorada. Acho
que foi assim.
Nessa época, não tinha experiência política
partidária (como não tenho até hoje) e todo meu contato com o tema se dera após
o ingresso na UFRGS, em 1974. Cursara o colegial no Julinho (Colégio Júlio de
Castilho, em Porto Alegre) e nesse período (1971-73) o grêmio estudantil estava fechado e todo o passado de agitações políticas da escola era ignorado
pela estudantada. Que tempos estranhos aqueles! Na Universidade, entrei em
contato o movimento estudantil, por meio do Diretório Acadêmico dos Institutos
Unificados (DAIU), acompanhei com entusiasmo os debates político-ideológicos do
período e me tornei um leitor assíduo dos jornais Movimento, Versus e
Em tempo.
Na Rádio Capital (onde comecei a trabalhar naquele
verão de 79), fui convidado por uma colega jornalista (Neusa Ribeiro) a
participar das reuniões do Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) e essa
foi minha única experiência de participação num grupo político. Mas não fui
longe. Não passei de um tarefeiro que levava o jornal da organização (O
Companheiro) para vender na escola
e em eventos políticos, como no 1º de Maio de 1979. No caso desse 1º de Maio,
um ato político num campo da Zona Norte de Porto Alegre, no qual havia mais
vanguarda e policiais do que trabalhadores. Tentei vender um jornal para um
sujeito que me pareceu ser um “rato”, mas ele não quis. Vendi pela metade do
preço um exemplar para um vendedor de amendoim (um sujeito que lia com
dificuldade as manchetes do jornal) e essa é a melhor lembrança.
A organização tinha reunião todos os sábados à tarde
e, na metade do ano de 79, interessou-se pelo movimento que organizava o futuro
Partido dos Trabalhadores. Eu participei de algumas reuniões nesse sentido e foi
uma experiência curta. Não aguentei muito tempo.
Não recordo a posição do MEP em relação ao novo
partido, mas penso que, de modo geral, a organização se colocava como uma
tendência independente, muito crítica em relação às posições moderadas (não
revolucionárias) que pareciam ser dominantes no novo partido. Pouco a pouco,
porém, fui simpatizando com o tom da esquerda petista, distante do
marxismo-leninismo que orientava o MEP. Mas não sei propriamente quando isso se
deu, isto é, quando tomei consciência disso. Provavelmente foi muito depois.
Na época, o que havia era empolgação. Muita discussão,
conversas de horas à fio, e pouca leitura realmente atenta dos tantos textos,
análises, abordagens diversas e conflitantes. No meu caso, faltava competência
e maturidade. Eu lia e interpretava tudo à luz do meu raso conhecimento de
História e marxismo e era difícil chegar a alguma conclusão. Me sentia
no olho do furacão, com o sentimento de estar vivendo um momento importante do
Regime Militar: o da sua derrocada (ou, pelo menos, era assim que eu percebia a
conjuntura). E estava feliz por isso. Eu era jovem, achava que o mundo poderia
mudar e que um partido que se propusesse a defender a pauta dos trabalhadores era
tudo que a sociedade brasileira precisava.
E, assim como mantinha contato com a esquerda
radical, tinha conhecimento pessoal também da esquerda moderada alojada dentro
do MDB. Recordo que essas pessoas entendiam que não era hora de se desfazer da
grande frente política que era esse partido, pois isso só enfraqueceria a
oposição. Opinião, claro, que eu ignorava solenemente. Entre essas pessoas,
mais tarde, vim a saber que algumas eram vinculadas aos partidos comunistas (PCB
e PCdoB) e isso me faz concluir (hoje) que eu pouco entendia da vida real da
política brasileira. Era um jovem professor e ainda vivia o clima eufórico muito
comum aos estudantes. Me faltava senso de realidade e eu procurava compensar
isso me entrosando com as atividades do Centro dos Professores do Estado do Rio
Grande do Sul (CPERS). Através do CPERS, eu pretendia uma experiência mais
concreta do mundo do trabalho e, dessa maneira, uma superação do meu idealismo.
O mundo da política partidária me parecia muito difícil de compreender e o
mundo do trabalho, algo mais tangível.
Nesse contato com os integrantes do Magistério
Estadual, recordo que conheci o professor Clóvis Oliveira, fui a uma reunião no
seu apartamento, e me impressionei ao ouvi-lo dizer que a classe operária
brasileira já tinha o seu partido e que o PT não iria substituí-lo. Talvez não
fossem essas as suas palavras, mas recordo que o novo partido não lhe
interessava. Os trabalhadores já tinham a sua organização partidária.
É dessa forma que lembro as coisas daquele período.
Não há precisão nessa memória. Eu era um tarefeiro do MEP e nunca formalizei o
meu ingresso na organização. Acho que integrava a organização de um modo um
pouco irresponsável, sem vínculos formais, sem um compromisso mais forte.
Um dia, participei manhã e tarde de uma plenária do
futuro PT (no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora de Pompeia, em P. Alegre)
e a experiência foi definitiva. Na véspera, no sábado, passara a tarde inteira
discutindo com meus companheiros do MEP a respeito da posição da organização em
relação ao novo partido e foi com essa orientação que fui para a plenária. Era uma
posição bem fechada, exigindo que o novo partido se comprometesse com uma perspectiva
obreira, com o socialismo e uma futura agenda revolucionária. Quando chegou no
domingo, assisti os dirigentes da organização arrefecerem suas posições para conquistarem algum lugar nas comissões que eram formados.
Saí da reunião cansado, com dor de cabeça, chateado
com o que assistira e me esforçando muito para compreender. Pragmaticamente,
entendia o que os dirigentes da organização haviam feito – mas tinha
dificuldade de aceitar. Teoricamente, as coisas não se encaixavam e eu
não sabia como conciliar a visão revolucionária do MEP com o pragmatismo
político das principais lideranças (sindicalistas, na maior parte) do novo
partido. Mas não sei se eu colocava o assunto nesses termos. Possivelmente não.
Levei anos pensando sobre isso e acho que esse foi um dos assuntos que pautaram
o PT até os anos 90: a difícil relação entre as tendências revolucionárias e a
direção partidária, mais moderada.
No entanto, o que me incomodava mais é que gastara
o final de semana inteiro nessa atividade política e não sabia se era isso
que queria para a minha vida. Uma semana de trabalho me esperava – aulas no
grupo escolar pela manhã, jornadas das 18 às 24 horas na Rádio Capital – e eu
estava cansado depois daquela plenária. Exaurido. Daria o meu couro para a
política partidária?, para uma prática política na qual eu era atropelado, não
compreendia direito? Essas eram as questões.
Devo acrescentar que nesse mesmo final de 1979
conhecera uma moça, estava apaixonado e logo começamos a fazer planos de morar
juntos, de casar oficialmente inclusive (o que ocorreu em fevereiro de 81). Estava,
então, sob o signo da paixão e tudo mais foi se tornando secundário. Centrei minha
atividade no trabalho, na vida prática, e logo tive uma surpresa: fui demitido
da Rádio Capital. Não conseguiria me sustentar apenas com o contrato de 12
horas no Magistério Estadual e precisava de outra atividade. E o problema, mais
uma vez, foi resolvido por meio de pistolão: minha madrinha tinha uma amiga na Delegacia
de Educação, em Canoas, e essa funcionária conseguiu um novo contrato numa
escola próxima à Vila Mathias Velho. Mais uma vez fui trabalhar na periferia de
Porto Alegre.
Dessa maneira, dei uma basta na minha experiência
político partidária. Deixei o MEP (nem recordo o que conversei com meus antigos
companheiros) e decidi que voltaria minha atenção para o campo sindical, o
CPERS (que naquele tempo ainda não era sindicato) – um campo muito mais fácil de
compreender e atuar.