segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Althusser e sala de aula (memórias de um tempo de formação)

           O filósofo marxista Althusser era muito lido no tempo em que cursava História, na UFRGS, nos anos 70. Seus livros não faziam parte da bibliografia de nenhuma disciplina nem eram citados em sala de aula, mas liamos. O DAIU (Diretório Acadêmico dos Institutos Unificados) certa vez mimeografou um dos seus ensaios e o debatermos num grupo de estudos, aos sábados, pela manhã.

O curso de História funcionava próximo ao Parque da Redenção, o AI-5 estava em vigor e tínhamos um colega agente do DOPS, que acompanhava as atividades do diretório. Ele não participava desse grupo de estudos sobre Althusser, mas nos observava com atenção (lia o mural de avisos do diretório) e nos sinalizava a respeito do lugar que ocupávamos no mundo (não sem alguma ironia ou mesmo deboche).

Meu entendimento de Althusser não era dos melhores, eu seguia com dificuldade aquela conversa toda, mas nem por isso com menos entusiasmo. Encerrada a leitura daquele ensaio (não recordo o título, mas era sobre a leitura de O Capital), iniciei a leitura de um de seus livros mais famoso: Os aparelhos ideológicos do Estado (que comprei na CEPAL, uma cooperativa de estudantes que havia na Avenida André da Rocha).

O texto foi outra pedreira difícil de enfrentar, mas creio ter entendido o sentido geral, especialmente o que se referia à escola, essa instituição para a qual eu me preparava para atuar. O desânimo foi total. Se Althusser estava correto na sua abordagem, o que eu iria fazer como professor: ser mero reprodutor da ideologia do Estado burguês? Isso não estava nos planos.

Um dia, o professor Elmar Manique da Silva nos ouviu conversando sobre isso em sala de aula, num trabalho de grupo (a respeito da Revolução Industrial, o estabelecimento do modo de produção capitalista), puxou uma cadeira, sentou entre nós e disse e repetiu para que entendêssemos bem:

– A escola não é uma instituição fechada como Althusser entende. Não é simplesmente um aparelho de reprodução dos valores capitalistas e nós, professores, meros instrumentos para a perpetuação do domínio do Capital.

E continuou:

– A escola é uma instituição aberta a tensões e lutas entre as mais diversas forças ideológicas, nem todas em sintonia com status quo, e há muito o que fazer dentro da escola.

Foi um alívio.

Quando iniciei a lecionar (em 1978, num grupo escolar em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre), Althusser ainda era uma referência, mas já desconfiava que a escola era muito mais do que um aparelho ideológico monolítico.

Levei mais alguns anos a entender, de fato, a dimensão da instituição da qual estava inserido – e professor de História ainda por cima, isto é, de conteudos carregados de ideologia. Constatava que não era uma simples engrenagem de um maquinário de reprodução dos valores capitalistas e, sim, alguma coisa viva, atuante, e os alunos igualmente. A gurizada (era para a quinta série do primeiro grau que eu lecionava) revelava-se portadora de um universo próprio e reagia ao que era solicitado (leituras, exercícios, prova). Alguns faziam cara feia, protestavam, e eu ia me ajustando ao ritmo que eles propunham (e também às orientações da direção da escola, claro). Me ajustava e aprendia.

Creio que naqueles dois anos em Alvorada alguma coisa foi mudando dentro de mim. Os textos de Althusser continuavam guardados na estante, sempre incomodando, querendo me reduzir a um autômato do filme Metrópolis (do Fritz Lang, 1927), os operários que marcham e trabalham, sem expressão alguma no rosto, meras engrenagens de uma grande cidade soturna. 

Cena do filme Metrópolis.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Dando uma banda na Champs Elysées

Alguém já escreveu que a viagem continua, mesmo depois de voltarmos para casa. Acho que foi o poeta Celso Gutfreind. Eu continuo viajando. Há um ano atrás, dei uma banda pela Avenida Champs Elysées e até hoje lembro o que vi, o que senti.

Cheguei a Paris vindo de Roma, enturmei com um grupo de professores e alunos da UFN (Universidade Franciscana) e cumprimos um extenso programa de visitas a locais de moda e de arte (o objetivo da excursão). O museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vitton, o Louvre, o D’Orsay, uma exposição sobre Maria Antonieta, outra sobre Van Gogh, o Palácio de Versalhes e assim por diante. A Catedral de Notre Dame estava fechada, devido ao incêndio do ano passado.

No primeiro dia, após a visita ao antigo atelier do estilista Yves Saint Laurent, saímos pela margem do Sena – Bebeto, Rose, Elsbeth, Lia e eu – a ver o que a cidade oferecia, naquele ensolarado e frio dia de outono. Guiados pelo professor Bebeto, o único que conhecia Paris, fomos descobrindo a cidade. A ponte Alexandre III sobre o Sena, a Avenida Winston Churchill (de um lado o Grand Palais; do outro, o Petit Palais) ocupada por sofisticados carros de food truck, com mesas e bancos sobre o asfalto. Já passava do meio-dia e a fome bateu.

Escolhemos pratos de frutos do mar (com camarões, salmão, ostras) e champanhe em taças de plástico. Nada mal para brindar a Cidade Luz, que cada um de nós enxerga a partir de um imaginário infinito, aonde cabe uma trilha sonora de Stravinsky, outra de Gershwin, um romance de Balzac, outro de Sartre ou Françoise Sagan, um filme de Godard, outro do Woody  Allen, e por aí vai.

Terminada a refeição, seguimos em direção a Champs Elysées e lembrei do filme Paris está em chamas, filmado em P&B, uma ficção ambientada no final da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados chegam a Paris... Com cenas de documentário: Charles de Gaulle, cercado pela multidão, caminhando pela famosa avenida. Vá entender as lembranças de um professor de História! Filme assistido na década de 60, quando eu era guri de ginásio e cantava a Marselhesa nas aulas de francês.

Mas viajar é assim: a imaginação vai junto; os filmes, os livros e os discos também. E apesar de vibrante, fascinante, a Avenida Champs Elysées é também assustadora. A riqueza grita. Lojas de grifes famosas escancaram suas vitrines (Dior, Louis Vitton), há pequenas filas para entrar, e os seguranças (engravatados) acompanham atentos o movimento. E logo ali, quase vazia, uma perfumaria árabe (Arabian Oud), a respeito da qual a Rose me explica:

– Aqui se vendem frascos de mil dólares.

Paramos na vitrine, o vigilante até parece não nos ver, olhamos, rimos (“Isso não é pra nós”) e seguimos adiante. E vemos, ajoelhada na calçada, o corpo estendido, a cabeça coberta, uma mendiga estender um copo de café e pedir esmolas. Chocante. A Rose pega minha máquina fotográfica e registra a cena. A presença sombria daquilo que os estudiosos franceses apontam: a desigualdade social se multiplica, Paris se torna um território dos muitos ricos (decorrente da globalização, da desindustrialização, da diminuição dos setores médios) e a massa dos muito pobres se expande, alcançando dimensões que o Estado do Bem Estar Social desconhecia.

Mas não estávamos ali para fazer sociologia. Apenas passear, flanar como personagens baudelairianos (“De que valem as leis do que é justo ou injusto?”, escreveu o poeta, em "Lesbos"), e arrisco dizer que éramos como o lírico Baudelaire, escolhidos pelos deuses para cantar os encantos do mundo.

Peregrinamos até o Arco do Triunfo, devidamente embasbacados como convém a quem chega a Paris, e depois regressamos pela mesma calçada da Champs Elysées. As mesmas vitrines, cafés. As mesmas árvores, mendigos. Voltamos a Avenida Winston Churchill (o Grand Palais de um lado, o Petit Palais do outro), a ponte Alexandre III, e compramos bilhetes para navegar no Bateau Mouche.

Mas isso já é outro passeio, outro filme, outras impressões. Uma crônica para outro dia.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Escola partida

           Não é um livro fácil, esse que o professor Ronai Rocha escreveu: Escola partida: ética e política na sala de aula (Editora Contexto, 2020, 160 p.). E a dificuldade não vem da linguagem nem da apresentação dos argumentos. Afinal, é livro de linguagem clara, elegante e precisa quanto aos conceitos, com tiradas de humor e também de poesia. Uma leitura deliciosa, que, ao menos no meu caso, provocou inusitadas gargalhadas. Difícil não rir de certas provocações do autor direcionadas aos educadores progressistas.

A dificuldade vem da disposição inicial do autor: escutar os argumentos do Escola sem Partido e leva-los à sério. Mesmo considerando equivocadas as premissas do movimento (o modo de articular moral e religião), o autor considera o Escola sem Partido um sintoma do que ocorre na escola brasileira: a presença excessiva do debate político na sala de aula. Uma presença que provoca chateação em alguns pais de alunos e coloca uma questão urgente: a de discutir a respeito da ética e da política em sala de aula e, dessa maneira, a de pensar um código de ética do professor, capaz de resguardar as crianças e os adolescentes da presença desse assunto que deve ser exclusivo dos adultos: a política.

Um verdadeiro terreno minado, esse em que o autor entra. Ora dar ouvidos a um movimento sabidamente instrumentalizado pelo neofascismo! – escutei numa livraria. Ora querer afastar a política da sala de aula e fazer da escola um campo alheio às discussões que incendeiam o País!

“O Brasil está partido”, afirma o autor, e é “no meio dessa tragédia que estamos vivendo”. Essa divisão envolve a escola, adentra a sala de aula e o autor entende que foi longe demais. Política é tarefa de adultos em relações de igualdade e não entre adultos-professores e crianças-alunos, em relações claramente assimétricas. A partir daí, Ronai Rocha postula a defesa da escola como “um território neutro, imparcial, porque o coração das crianças é sempre grande demais para abranger apenas uma igreja ou uma pátria”.

Em defesa da sua proposta, o autor se vale das palavras inspiradas de Cecília Meireles (que militou a favor da Escola Nova, nas décadas de 1930 a 50): “a escola tem de ser o território mais neutro do mundo. Pode ser que os homens de hoje tenham o direito de combater outros homens de hoje. Mas, porque assim é, não vai se admitir que as crianças de hoje devam preparar-se, desde já, para, quando forem grandes, continuarem as lutas que seus pais não tiveram tempo de concluir”.

Uma proposta polêmica, que tanto incomoda os professores progressistas (que entendem a educação como ato político) quanto os conservadores (que almejam as afirmações da moral e religião dominantes norteando a escola). Uma proposta muito distante da sensibilidade atual, tanto à esquerda quanto à direita, mas nem por isso menos necessária – caso se pretenda uma escola que cumpra o seu papel essencial: o de transmitir os conhecimentos necessários para o jovem adentrar no mundo adulto. Uma escola que ensine e eduque, antes de politizar as questões do seu tempo. Uma escola capaz de acolher as crianças e os adolescentes de diferentes orientações religiosas, morais e políticas.