sexta-feira, 26 de julho de 2019

Paisagem fluvial

           Passei uma semana em Porto Alegre e todos os dias gastava um tempo olhando o Guaíba da janela do quarto do hotel – paisagem que está registrada na foto abaixo.



No primeiro dia avistei três rebocadores ancorados no cais e diversas vezes procurei as chatas que costumavam ficar estacionadas ao longo do rio. Chatas, para quem não sabe (me disseram que não são mais utilizadas), são navios exclusivamente de carga, sem motores, e que precisam de rebocadores para se locomover. As chatas eram utilizadas para transporte de areia e brita na Lagoa dos Patos, entre as cidades de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, ao menos até os anos 70 do século passado.

Um tio avô era maquinista em um rebocador, vivia fazendo essas viagens (trazendo e levando chatas) e o que sei a respeito desse assunto ouvi ele contar. Era calado esse meu tio avô (irmão da minha avó materna) e não deve ter me contado muita coisa. Sujeito de poucas palavras, magro, a pele curtida pelo calor das máquinas, do sol e do vento da lagoa, fazia um tipo de lobo do mar (ou de lagoa, para ser mais preciso) que agradou ao guri de 14 anos que eu era quando naveguei com ele.

Isso foi no final dos anos 60, em 1969 ou 70. A minha família morava em Porto Alegre e esse tio costumava nos visitar quando aportava na Capital. Uma noite, o pai e ele estavam conversando na sala (provavelmente bebendo conhaque Dreher, a TV desligada) e lá pelas tantas me chamaram e perguntaram se eu queria viajar de navio até Pelotas. Aceitei, claro

Depois soube que fora ideia do meu pai, que bem sabia que aquela seria uma experiência única para o guri de apartamento que eu havia me transformado. No outro dia de manhã bem cedo, eu estava numa pracinha que fica na beira do cais, esperando meu tio. Naquele tempo o Muro da Mauá ainda não fora construído e era possível chegar até cais e seus armazéns. Meu tio chegou, me avistou no local combinado e me chamou para embarcarmos no rebocador. Ele era o chefe do setor das máquinas, tinha uma cabine própria e foi nessa cabine que me instalei.

Foi uma viagem e tanto. O rebocador manobrou no Guaíba, estendeu os cabos de aço até a primeira chata (eram duas, a outra ficava presa igualmente por cabos de aço a da frente) e fomos na direção de Pelotas. Navegamos o dia inteiro, pegamos um temporal no meio da noite e nem sei que horas chegamos. Eu dormia quando o navio aportou e, quando subi ao convés, estava amanhecendo. Um amanhecer de nuvens avermelhadas, nada parecido com “a aurora dos dedos róseos” dos poemas dos livros escolares, e fiquei maravilhado. Uma aurora sangrenta, com o vermelho do céu refletido nas águas do Canal São Gonçalo. Peguei minha sacola, avisei o marujo que estava de guarda (acho que é assim que se diz) e fui caminhando pela zona do porto até a casa dos meus avós maternos.

Lembrei disso olhando o Guaíba da janela do hotel, em Porto Alegre, na semana passada. Os rebocadores estavam lá, parecidos com aquele em que viajei no final dos anos 60, mas não avistei as chatas. O transporte fluvial deve ter mudado muito nesses mais de 40 anos e pouco sei a respeito disso. Meu tio avô morreu, meu pai morreu, mas a paisagem do Guaíba me indica que toda essa paisagem fluvial – daqui até o Canal São Gonçalo, até o Canal do Rio Grande – ainda é capaz de maravilhamentos. Basta olhar, olhar com os olhos da imaginação.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Canta, ó Musa, o amor de Tétis, mãe de Aquiles


Li a Ilíada dias atrás e fiquei surpreso com uma cena logo nas primeiras páginas. Uma cena que não lembrava – ou que talvez nunca tenha me dado conta.

Após a conhecida discussão de Aquiles com Agamenon na assembleia dos guerreiros, na qual Aquiles perde para o seu correligionário a escrava Briseis, o herói se retira furioso para junto dos navios. Solitário, ele se senta “chorando junto à praia do cinzento mar”, estende os braços e dirige “muitas preces a sua querida mãe”.

Nunca tinha lido a Ilíada do início ao fim, mas conhecia diversos trechos (o primeiro canto, entre eles, onde se encontra a cena acima). No entanto não lembrava do herói derramando lágrimas e chamando a mãe:

– “Mãe, já que me tiveste, por mais breve que a minha vida possa ser, pelo menos a honra Zeus troante deve me ter concedido. Agora, porém, não me está honrando, de modo algum, pois o filho de Atreu [Agamenon], o rei dos homens, ultrajou-me. Tomou minha presa de guerra [Briseis] e a conserva.”

Tétis, sua mãe (uma nereida que vive no fundo do mar), o escuta e vem correndo sentar-se ao seu lado, dizendo:

– “Por que choras, meu filho? Que dor te atormenta o coração? Fala, nada escondas em teu espírito, a fim de que nós possamos saber.”

Aquiles se queixa para a mãe, fala mal de Agamenon e pede que ela o ajude a se vingar. Tétis não titubeia em atender ao filho, vai buzuzar nos ouvidos de Zeus e o resto é bem conhecido: Zeus faz a guerra virar a favor dos troianos, faz os aqueus sofrerem duras perdas humanas e Agamenon se arrepender da sua loucura contra a honra de Aquiles dos pés ligeiros.

Eu não lembrava, porém, da presença fundamental da mãe na vida de Aquiles, o mais destemido e cruel dos guerreiros. Espanto talvez seja compreensível. Afinal, no entendimento habitual que temos dos heróis, estes são solitários, movem-se sem família, e até as mães não costumam ser presentes e muito menos decisivas. E, jamais, os heróis suplicam qualquer coisa para as mães. Ora, pedir arrego para a madrecita!

No final do poema, quando Aquiles resolve voltar a lutar, novamente a mãe intervém de forma marcante. Aquiles está sem armadura e é a mãe quem providencia uma nova. A antiga fora usada por Pátroclo e, quando este foi morto por Heitor, o grande guerreiro troiano a pegou como troféu. Tétis consegue que o deus Hefesto produza uma nova de um dia para o outro e a traz para o filho.

– “Recebe esta gloriosa armadura de Hefesto: a mais bela, tal como um homem jamais trouxe sobre os ombros. (...) Convoca os guerreiros aqueus em uma assembleia, renuncia ao teu rancor contra Agamenon, pastor do povo, e arma-te, sem demora, para a guerra, revestindo-te de valor.” (Livro XIX)

 É uma figura com voz e protagonismo a madrecita de Aquiles, o herói que tanto serviu de modelo de coragem e de masculinidade na civilização greco-romano. O destemido guerreiro, arrogante e cruel (modelo para Alexandre, o Grande, conquistador da Pérsia), não escapou de uma mãe constante e devotada. (Não escapou ou teve o privilégio - faça sua escolha, prezado leitor.) E Homero, sempre humano, “demasiadamente humano” como apontam os estudiosos, não esqueceu disso.

Procurei no Google alguma obra de arte representando Tétis consolando o filho logo depois dele desentender-se com Agamenon, mas não encontrei. As cenas de Tétis e Aquiles mais tematizadas nas artes plásticas (ou mais presentes no Google) são as do banho na infância do herói e a da entrega da armadura de Hefestos. Escolhi essa última para ilustrar a crônica: o quadro de um pintor neoclássico, Benjamin West (desconhecido para mim).

É uma cena dramática e solene: Aquiles chora o amigo morto em combate (Pátroclo) e sua linda mãe (linda demais, jovem demais para ser mãe de um guapo mancebo) lhe traz a armadura e o exorta ao combate. "Canta, ó Musa, o amor de Tétis, mãe de Aquiles", compus na hora, "o amor que tanta alegria trouxe ao mais destemido dos aqueus". 

Tétis entregando a armadura a Aquiles (1805), de Benjamin West.

A Ilíada é um poema sem fim, uma leitura que não termina. O texto que li dessa vez foi uma tradução em prosa, feita por Fernando C. de Araújo Gomes e publicada numa coleção da Folha de S. Paulo, “Clássicos da Literatura Universal” (Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. 426 p.) Ao final do livro, há uma nota explicando que o tradutor pretendeu um texto acessível ao leitor médio, “o leitor de certa cultura”, e para isso fugiu do “eruditismo excessivo”. Penso que a intenção do tradutor se concretizou e o leitor mediano que sou leu com prazer essa tradução. E de todos os dramas da “maior história de guerra do mundo” foi a relação de um filho com sua mãe o que mais se impôs na leitura. Tétis, certamente, bem merecia um poema só seu.