quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fantasias e delírios

 

Há pessoas para quem a vida não basta e precisam inventar alguma coisa que a melhore ou a torne mais suportável. Outras, de perfil mais realista, se contentam com a vida como ela é e a aceitam, sem grande inquietação. Um poeta é o típico integrante do primeiro grupo, envolto em um mundo de sonhos e imaginação, enquanto o engenheiro é a figura exemplar do segundo, expressão da mentalidade prática, lidando apenas com aquilo que pode ser pesado, medido e calculado.

Lembrei dessas considerações a respeito das mentalidades dominantes ao ter a infelicidade de conversar com um homem prático. Ou, pelo menos, com um homem cuja recente namorada me garantiu que ele era assim.

– Um típico engenheiro – ela me disse – lidando apenas com os aspectos práticos da vida e com muito êxito, por sinal.

Ela o conheceu recentemente, nos apresentou num bar da cidade e a conversa foi rápida. Eu mais ouvi do que falei. Minha amiga nos deixou para tratar de alguma coisa e de repente o homem estava falando de política, indignado com a operação da Polícia Federal a respeito do golpe de Estado urdido por Bolsonaro e me explicando a inconsistência das acusações.

– Uma farsa, uma perseguição política – acentuou. – Ora um golpe sem tropas e tanques nas ruas – chegou a dizer, ignorando as peculiaridades da estratégia neofascista em curso no país.

Minha amiga já me dissera que cansou de homens sonhadores e queria alguém pragmático. Foi dessa maneira que me falou dele e me espantei quando o sujeito enveredou para as criações mirabolantes dos bolsonaristas a respeito do 8 de janeiro de 2023, endossando o entendimento de que o quebra-quebra foi uma armadilha da esquerda.

– Os petistas já estavam dentro dos prédios do Congresso, do Palácio Presidencial e do Supremo Tribunal Federal, quando os manifestantes chegaram pacificamente – ele disse, acrescentando que iria me enviar os vídeos, se eu quisesse.

Não, eu não quis. Minha amiga voltou nessa hora e felizmente mudou o rumo da prosa. Certamente não era essa a conversa que ela desejava que eu ouvisse. O pragmático engenheiro que ela me propagandeara estava, naquele momento, enveredando para o campo das fantasias delirantes e não era essa a faceta do homem que ela admirava.

Fiquei calado. Este engenheiro pode ser muito prático para tomar as decisões quanto a sua empresa e colocá-la no mercado, mas, quanto ao resto, é só sonho e fantasia. Mais um adepto da utopia bolsonarista, que se imagina lutando contra o “comunismo petista” e pela afirmação da democracia e da liberdade. Provavelmente um engenheiro bem sucedido, mas incapaz de realismo político.

 A extrema-direita bolsonarista (que não acho mais exagero chamar de neofascista) está num brete e esperneia. Não assume o seu projeto autoritário e muito menos o quebra-quebra em Brasília como tática para um golpe que não conseguiu concretizar. A ideia dos petistas enquanto força maligna, dentro dos prédios antes da chegada dos manifestantes do 8 de janeiro, aguardando a massa bolsonarista para imputar-lhe um vandalismo que ela não desejava fazer, é de uma criatividade impressionante. Haja delírio e teoria da conspiração!

Carreata bolsonarista em Santa Maria, em abril de 2021.

Não sei como me despedi do casal, mas, quando dei por mim, estava com a mão sobre o ombro da minha amiga, penalizado com o que ela precisa suportar. E, sem perceber minha hipocrisia, sai desejando felicidade aos dois.    

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Memórias da pandemia

 

Sou desses que às vezes se espantam com o que vivemos no período da pandemia. Fiz alguns registros a respeito daquele tempo e, ao reler o que anotei em 18 de junho de 2020, achei que valia a pena reproduzir aqui.

Naquela tarde, fui ao médico e conversei rapidamente com o porteiro do prédio. Nós dois de máscaras e distantes um do outro mais ou menos dois metros. Ele revelou a sua contrariedade com as medidas restritivas impostas pelo Governo Eduardo Leite e entendi que não achava necessário restringir a circulação de pessoas para impedir a disseminação do vírus. Naquele tempo ele ainda era um entusiástico do Governo Bolsonaro (posição que mudaria, a partir do adoecimento e morte de familiares pela covid) e navegava nas águas do negacionismo.

Além disso, tive a impressão de que ele estava incomodado com os que podiam se dar ao luxo de fazer o propalado isolamento social, enquanto ele não podia, pois precisava estar ali, na portaria do prédio. Trabalho remoto não era coisa para ele, assim como não era para a maioria da classe trabalhadora.

Naquele mesmo dia a polícia prendera o Queiroz (assessor do senador Flávio Bolsonaro) e eu entendia que era um cerco ao clã Bolsonaro. Ao menos, era o que escutava de alguns comentaristas políticos, que divagavam a respeito de um possível desmoronamento do castelo bolsonarista. Doce ilusão!

Escrevi que estávamos assistindo a um “governo incompetente na gestão de uma das crises de saúde mais graves que o País já vivera”, mas “a coisa estava mudando”. Até a Rede Globo migrara para a oposição, só resguardando o Ministro da Fazenda.

Que tempos! Eu era daqueles que achavam que o Governo Bolsonaro não sobreviveria até o fim do mandato e fui vencido pelos fatos. Bolsonaro se manteve firme e forte e até ensaiou uma insurreição no ano seguinte, em 7 de setembro de 2021. O primeiro ensaio do seu almejado golpe.

Naquele dia, porém, o que me preocupava eram as medidas para administrar a propagação do vírus e como conviver com tudo isso. Como conviver com a pandemia!

Saí do médico (com o qual mantive a devida distância) e fui a lotérica pela primeira vez. Encarei a fila mantendo a devida distância dos outros clientes (todos nós com máscaras no rosto) e exercitei o que se chamava “a nova normalidade”.

Eu frequentava o supermercado no horário dedicado aos idosos (início da manhã) e seguia todos os protocolos. Um amigo me trazia livros de vez em quando, tocava no porteiro eletrônico, eu descia, e conversávamos na porta do prédio, de máscaras e com o devido distanciamento. Era uma prática que esse amigo fazia questão de manter: a troca habitual de livros.

Alguns achavam que os objetos (livros, entre eles) podiam transmitir a covid, mas nós não embarcávamos nessa. Entendíamos que o vírus não sobrevivia na capa ou nas páginas de um livro e seguíamos em frente. Livros para enfrentar o isolamento social, dizíamos, eis o nosso lema.