domingo, 24 de julho de 2022

A questão do El Cid

            Uma das primeiras aulas que ministrei no Curso de História foi a respeito da literatura medieval. A colega responsável pela disciplina “Idade Média” precisava se ausentar e fui substituí-la na sala de aula. Apresentar um panorama a respeito do que era produzido literariamente no medievo e, não sei porque cargas d’água, centrei o foco no Poema de mio Cid. O poema não me empolgara, mas o seu personagem central – Rodrigo Díaz, El Cid, figura histórica do século XI espanhol – era meu velho conhecido.

Li o que encontrei na biblioteca (inclusive o famoso poema) e lá fui encarar os alunos. No corredor, encontrei o meu chefe, ele viu os livros que eu trazia debaixo do braço e catou o do poema (uma tradução em prosa[i]). Folheou o livro e começou a falar a respeito de El Cid, mas, curiosamente, não a partir do poema ou do que a historiografia registra. O El Cid do meu colega era o do épico hollywoodiano, de 1961, interpretado por Charlton Heston.[ii] O Cid que mata o sogro num duelo, o Cid que é flechado nos arredores de Valência (por um guerreiro muçulmano), morre e depois é colocado sobre um cavalo (como se vivo estivesse) para comandar seus soldados na batalha final. O Cid lendário que Hollywood deu um formato espetacular e pouco tem a ver com o do poema medieval.

Não recordo a aula que ministrei naquele distante 1991 ou 92, mas tenho certeza de que foi muito simples e acho que apenas apresentei a “questão”, como se dizia. Em relação ao filme hollywoodiano, afirmei que pouco tinha a ver com o poema, mas era ótimo – daqueles que dá pra falar que é muito melhor do que o livro. Ou, pelo menos, emociona muito mais que o Poema de Cid que acabara de ler.

Recordo esse episódio porque li dias atrás um livro intitulado Em busca de El Cid (“The quest for El Cid”, no original), de um medievalista inglês chamado Richard Fletcher.[iii] Um trabalho minucioso a respeito do guerreiro que foi Rodrigo Díaz, reconhecendo, de saída, a impossibilidade de um retrato do homem “real”. As fontes documentais são escassas e o que o autor faz é inferir a trajetória do guerreiro nos documentos oficiais da época. Pouca coisa. Além desses documentos, destaque para textos literários escritos pouco depois da morte do guerreiro – Carmen Campi Doctorus (“Canção do Campeador”) e Historia Roderici – e alguns escritos árabes da época. O famoso poema, que o autor entende tenha sido escrito por volta do ano de 1200, só é comentado ao final, não servindo como referência para o estudo histórico do personagem, pois trata da construção da lenda, de algo que El Cid “não foi em vida”.

Resumindo, Rodrigo Díaz nasceu (provavelmente) em 1043 em uma família aristocrática de Castela (em Vivar, 9 km de Burgos). Aos 14 anos passou a viver na corte do rei Fernando I, próximo ao príncipe herdeiro (Sancho) e teve treinamento militar e também algum aprendizado de Direito. Quando Sancho tornou-se rei de Castela, exerceu cargo militar importante (chefe da guarda pessoal do soberano) e tornou-se conselheiro político. Ao morrer o rei (em 1072, assassinado) Rodrigo perdeu seus importantes cargos. O novo rei, Fernando VI, arranjou-lhe uma boa esposa, mas a sua situação na corte acabou se deteriorando. Em 1081, acusado de traição, exilou-se no reino muçulmano de Saragoça, para qual prestou serviços militares. Reconciliou-se com Fernando VI mais tarde, mas não era um súdito dócil.

Desde o exílio, passou a cumprir a trajetória de um capitão mercenário e não de um súdito leal a Castela e/ou de um cruzado em pé de guerra com “a expansão do Islã”, como a lenda o transformou. Pelo contrário, era um guerreiro “independente, insubordinado e arrogante”, preocupado com a sua riqueza e seu renome (muito semelhante a um condottiere). E, dessa forma, conquistou a cidade muçulmana de Valência, em 1094, e a governou como uma espécie de príncipe, até a sua morte, em 1099. Morte na cama, acentua o autor. A viúva permaneceu no governo da cidade e, três anos depois, voltou a Castela, trazendo o corpo do marido para ser sepultado no Monastério de Cardeña.

Mais tarde, os monges do monastério iniciaram um culto ao guerreiro, em torno de sua sepultura, com apoio do Reino de Castela, então em expansão e necessitado de heróis. A partir daí, então, a criação de várias lendas – das quais o Poema de mio Cid e também aquela utilizada no filme hollywoodiano de forma magistral: a do herói morto, colocado em cima do cavalo, a conduzir seus guerreiros cristãos contra os perversos infiéis.

É história que não acaba mais a desse guerreiro medieval, que se perpetuou ao longo dos séculos e foi recuperado após a derrota do Império Espanhol na guerra contra os Estados Unidos, no final do século XIX, nas colônias de Cuba e Filipinas. Recuperado como grande herói nacional.

          Se eu tivesse lido um livro semelhante ao do medievalista inglês, há 30 anos atrás, talvez tivesse corrigido meu chefe, quando ele me parou no corredor e perorou sobre El Cid. Talvez. Mas é bem provável que ficasse de bico calado. Eu era um soldado novo no front e não queria me queimar com o chefe.


[i] POEMA DO CID. Trad.: Maria do Socorro Almeida. RJ: Francisco Alves, 1988. 98 p.

[ii] EL CID. Dir.: Anthony Mann. C/ Charlton Heston e Sophia Loren. EUA/Itália, 1961. 182 min.

[iii] FLETCHER, Richard. Em busca de El Cid. Trad.: Patrícia Zimbres. SP: Ed. da UNESP, 2002. 290 p.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Via Marguta, 51

             Em 1953, estreou uma das comédias românticas norte-americanas mais famosas: A princesa e o plebeu (Roman Hollyday), com roteiro de Dalton Trumbo e direção de William Wyler. Uma princesa (interpretada por Audrey Hepburn) realiza uma visita oficial a Roma, resolve passear anonimamente pela cidade e conhece um jornalista norte-americano (Gregory Peck). A partir daí os dois realizam um tour pelos pontos turísticos de Roma e se enamoram ternamente.

Além de diversão romântica garantida (para quem curte o gênero, claro), o filme é uma espécie de coleção de cartões postais da cidade: as ruínas do Templo de Saturno, no Fórum Romano (onde ocorre o primeiro encontro entre os personagens), o Coliseu, a Fontana di Trevi, o Pantheon e por aí afora. Até uma rápida cena na Villa Adriana, em Tivoli, nos arredores de Roma (durante um passeio de Lambreta).

Em outubro de 2019, quando eu perambulava pela cidade, parei num desses quiosques que vendem lembranças para turistas (na entrada de uma estação de metrô, em frente ao Coliseu) e encontrei um imã de refrigerador no qual está reproduzido uma das cenas do filme: os dois personagens na Scalinatta (escadaria) della Trinità dei Monti. (Um imã que hoje está na minha geladeira.)

Imã com reprodução de cena de "Vacanze romane", 
tradução italiana para "Roman Hollyday".

Na ocasião tive uma espécie de deslumbramento (voltei a uma sessão de cinema da juventude) e me dei conta de que parte do imaginário que construído a respeito da cidade nasce a partir desse filme. Uma Roma hollywoodiana, em P&B, onde ainda existiam feiras de frutas e legumes na região da Piazza di Spagna (onde o jornalista compra um melão) e não havia fila para aproximar-se da Bocca della Veritá.

Dias atrás liguei a TV e o filme estava passando no Telecine Cult. Assisti novamente, mais atento ao cenário do que a qualquer outra coisa (mas ainda tocado pela beleza de Audrey Hepburn) e me dei conta de mais um detalhe: o endereço do jornalista – Via Marguta, 51. Uma rua da qual andei muito próximo, batendo pernas entre a Piazza di Spagna e a Piazza del Popolo. Poderia ter dobrado uma esquina e visitado a tal Via Marguta... mas segui em frente, pela Via del Babuino, ignorante de mais esse pequeno tesouro (desses que os cinéfilos apreciam) que a Cidade Eterna oferece.

         
           Não sei se um dia voltarei a Roma, mas fica aqui o registro: da próxima vez que sair caminhando da Piazza di Spagna em direção a Piazza del Popolo, vou dobrar a primeira esquina à direita, a Via Alibert, e conhecer o famoso endereço. Certamente não deve ter nada a ver com o cenário bucólico do filme, pois, segundo as informações que encontrei no Google, hoje ali se encontram hotéis de luxo, galerias de arte e restaurantes do mesmo quilate.