terça-feira, 31 de março de 2020

D. Maria I, Rainha de Portugal


      Li o último livro da historiadora Mary Del Priori, D. Maria I – as perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca” (Editora Benvirá, 2019, 212 p.). Desde que visitei o Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, tinha muita curiosidade a respeito dessa rainha. O palácio foi construído durante o seu reinado e, logo na entrada, há um enorme monumento dedicado a ela.
        Nos livros de História do Brasil D. Maria I é simplesmente a mãe de D. João VI e há poucas referências a seu respeito – o que a historiadora confirma. Os jornais do Rio de Janeiro, da época, quase nunca trazem notícias sobre a rainha. Quando a Família Real portuguesa foge para o Brasil, em 1808, ela já é dada como demente. Não é ela quem governa, mas seu filho, D. João – que só vai assumir como rei depois da sua morte, em 1816.
      Uma história que se repete nos livros (e que eu muitas vezes contei em sala de aula) é a do episódio que ela protagoniza durante a fuga da Família Real, no porto de Lisboa. Episódio que a historiadora confirma. Os serviçais a estão carregando numa cadeirinha, em direção ao navio que a transportará ao Brasil, e ela pede que eles não andem depressa. Afinal não está fugindo. Ao que tudo indica, ela não compreendia a gravidade da situação.
     Segundo a historiadora, D. Maria foi uma boa rainha, preocupada com os seus súditos. Era profundamente religiosa e seguiu o padrão da monarca absolutista: muito piedosa e em completa sintonia com a Igreja Católica e a aristocracia. Sucedeu ao pai, D. José I, que tinha como principal ministro o Marquês de Pombal, mas não seguiu a orientação iluminista e modernizadora desse reinado. Quando se tornou rainha, demitiu o marquês. Não chegou a desfazer as reformas implementadas por Pombal, mas restaurou o poder da velha aristocracia, afrontada por Pombal.
      Aos 20 anos, em 1759, D. Maria assiste a uma das cenas mais tenebrosas da história portuguesa: o Massacre dos Távora. Um episódio no qual diversos membros da família Távora e outros nobres são torturados e mortos em local público (próximo à Torre de Belém). Um espetáculo de vingança promovido pelo rei D. José I (pai de D. Maria) e seu poderoso ministro (o Marquês de Pombal). Uma cena de justiçamento exemplar promovida com pompa e sadismo.
       A partir daí a figura do pai se torna insuportável para a jovem princesa. No entanto, mais tarde – quando a sua saúde mental está abalada –, ela passa a assumir os atos do pai (o Massacre dos Távora, entre eles) como se fossem seus. Um sentimento de culpa pavoroso, que ela, religiosa como era, passa a entender como sinal de danação divina e busca purgar. Um entendimento que seus conselheiros religiosos (seu confessor, em especial) só reforçam. E ela, como boa católica do seu tempo de exarcebações religiosas, não tem como se defender.
     Mas segundo a autora o quadro de saúde mental de D. Maria se desequilibra a partir de sucessivas mortes de familiares entre os anos de 1786 e 88. D. Maria é uma rainha zelosa do seu papel desde a morte do pai (1777), mas a morte do marido, da filha mais próxima e do filho que vinha sendo preparado para sucede-la, uma ao cabo da outra, a abalam profundamente. As águas negras da melancolia a envolvem e ela não consegue livrar-se delas. Tristeza, culpas – pela morte dos parentes e até pelos atos do pai (o Massacre dos Távoras) – não a deixam mais em paz.
       Segundo a autora, tratava-se de uma depressão profunda – que a medicina da época (em especial a medicina orientada pela religiosidade católica) não tinha condições de identificar e, muito menos, de lidar e minimizar seus efeitos. Pouco tempo depois, então (em 1792), a rainha é considerada demente, afastada do governo, e seu filho D. João assume como regente.
      O drama da rainha, sua depressão, me tocou profundamente. Acho que o modo como a historiadora conduz a narrativa favorece isso. Mary Del Priori, como boa biógrafa, prioriza os conflitos íntimos da sua personagem. Ao final do livro ela escreve que D. Maria não foi “só uma pessoa que adoeceu”, mas também uma “esposa e mãe querida, avó e sogra generosa”, “boa rainha e adorada por seus súditos”, “uma mulher como tantas”. 

quarta-feira, 4 de março de 2020

"Leitura", de Almeida Júnior


Almeida Júnior pintou o quadro abaixo – “Leitura” – em 1892. É uma cena paulistana, segundo os historiadores da arte. Alguns chegam a identificar o Teatro São José, ao fundo, que se localizava próximo à Rua da Glória, em São Paulo, próximo também ao atelier do artista. O quadro também evidencia o engajamento do pintor à causa dos republicanos que ocupavam o governo do estado de São Paulo, preocupados com a educação das mulheres.

"Leitura" (1892), de Almeida Júnior.
As mulheres dominavam apenas os rudimentos das letras, naquela época, e as novas autoridades estavam interessadas em incrementar a educação feminina. No quadro, uma moça mergulha na leitura de um livro e indica o seu rompimento com a postura tradicional das mulheres (mesmo de elite) de não realizar leitura de livros. A moça é uma mulher avançada, moderna, mas seu repertório de leitura seguramente era aquele indicado pelos pais e pelo marido. Não é uma mulher independente, segundo essa interpretação.

Nesse aspecto, cabe assinalar a cadeira vazia ao lado da jovem leitora. Sobre a cadeira há uma vestimenta de homem a indicar uma figura masculina que se faz ausente, mas que provavelmente a observa e registra a cena.

Existe também uma discussão a respeito de quem é a modelo: Rita de Paula Ybarra (a companheira com a qual o pintor teve um filho) ou Maria Laura (casada com um primo e com a qual o artista teve um caso por longos anos). Tudo indica que se trata de Rita de Paula, devido às fotografias que existem dela. São muito parecidas e podem ser encontradas no Google. A hipótese de a modelo ser a amante não tem muito fundamento – se bem que há certa semelhança entre uma foto da moça (também encontrável no Google) e a modelo.

A hipótese da amante ganha relevo, no entanto, quando pensamos que o caso entre os dois durou muito e as cartas da moça, encontradas pelo marido, revelam paixão intensa. Logo após a descoberta das cartas o marido trata de se separar da esposa e mata o pintor, em 1899. O crime se dá em Piracicaba (onde o marido era conhecido cafeicultor) e nessa mesma cidade ocorre o julgamento. Os jurados entendem que o autor do crime estava privado dos sentidos e da inteligência quando esfaqueou o artista e o inocentam.

Quatro anos antes do assassinato, em 1895, o quadro fora negociado pelo artista junto às autoridades paulistas e adquirido pelo Estado de São Paulo. Hoje se encontra na Pinacoteca do Estado de São Paulo e foi lá que eu o vi e revi, em lugar de honra. É um grande quadro, de um dos principais artistas paulistas.

Outro dia reparei numa reprodução desse quadro – na parede do consultório do psiquiatra – e o associei a viúva Noronha, personagem do romance Memorial de Aires, de Machado de Assis. Engraçada a associação... Estávamos conversando sobre o mundo das elites, olhei o quadro e lembrei do Machado, do seu retrato das elites do segundo reinado... Só me dei conta de que fizera uma associação equivocada (pelo menos quanto à geografia) quando saí do consultório.

“Leitura” é uma cena paulistana, apenas contemporânea ao mundo retratado por Machado no Memorial...  (ambientado nos anos 1888 e 1889, no Rio de Janeiro). Seja como for, também retrata o universo dos ricos e talvez eu não tenha errado tão feio. Mas sei lá qual o motivo de associar o quadro “Leitura” a um romance de Machado. Talvez uma dessas voltas inexplicáveis do nosso pensamento, prezado leitor, e que nem convém investigar.

A vida tem se tornado tão inexplicável e tão desnecessário explica-la, que eu apenas registro as voltas que ela dá. Procuro formatar esses pensamentos no gênero crônica (é o que eu tenho, o que sei fazer) e deixo-as voar à cata de leitores.

terça-feira, 3 de março de 2020

A Menina do Regimento

           Em 1998, no livro coletivo Quarteto in prosa e verso, o poeta Prado Veppo publicou um poema dedicado a Maria Sem Queixo: A porta-estandarte.
“Maria Sem Queixo / Só não é / Letra de samba / Por que não foi / Contemporânea / de Noel // Pois se ela fosse / Ele teria / Certamente / Posto sua vida / Numa folha / De Papel // E ela seria / Com as cores / Da Bandeira / Porta-estandarte / Da Poesia / Brasileira”[i]
O poema integrava um conjunto que tematizava figuras populares de Santa Maria – mendigos, professores, médicos, poetas, jornalistas e um cabeleireiro –, todas pessoas  mortas – uma e outra de forma violenta, como Luizinho De Grandi (morto num assalto):
“O Luizinho morreu cedo / Como morrem os toureiros / Sangrando dentro da arena / De algum domingo em Granada.”
 Os poemas enfocavam a trajetória dessas pessoas (ou suas mortes) e desenhavam também uma espécie de cartografia de Santa Maria: um mapa das suas gentes, ruas e histórias. Um roteiro que utilizo até hoje para entender nossa cidade.
Eu não sabia coisa alguma a respeito da Maria Sem Queixo, na época, e essa crônica é para suprir essa falta de informação.
Na Feira do Livro de Santa Maria do ano passado encontrei um livro com o título A Menina do Regimento e a associação com o poema do Veppo foi inevitável, afinal Maria Sem Queixo era também conhecida como Menina do Regimento (do 7º Regimento de Infantaria – quando esse ainda se localizava na Avenida Borges de Medeiros). O livro foi lançado na mesma Feira do Livro, mesma praça, vinte anos depois do Quarteto in prosa e verso, e, para mim, foi como se completasse o poema d’A porta estandarte.
O livro, de autoria de Carlinhos Bortoluzzi[ii], tem enfoque memorialístico, priorizando as vivências do autor no NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais Regulares), no final dos anos 60 e início da década de 70, e a figura da Menina do Regimento serve como uma espécie de eixo condutor da narrativa. O NPOR funcionava no 7º Regimento e, em 1969, no primeiro dia em que o autor chega ao quartel, ele se depara com a Maria Sem Queixa. Ela vem entrando pelo portão principal, gritando e fazendo espalhafato.
O autor conhecia a mulher desde guri – quando assistia aos desfiles de 7 de Setembro e a via marchando ao lado do regimento –, mas se surpreende com o modo como ela era tratada. O guarda do portão, por exemplo, a cumprimenta formalmente, isto é, com uma caprichada continência.  

Maria Sem Queixo preparada para desfilar junto ao 7º RI.
Foto obtida na Casa de Memória Edmundo Cardoso.
 Segue daí uma série de informações sobre a Maria Sem Queixo que eu não conhecia. Nos dias de desfile, ela usava um vestido verde amarelado, com uma faixa no peito escrito “Ordem e Progresso”, e um cabo de vassoura no ombro. Na cabeça, um bico de pato (boné militar) verde oliva e, dessa maneira, compunha as cores da bandeira brasileira a que o Veppo se referia no poema.
Naquele tempo, a Avenida Borges de Medeiros era um projeto de rua (não tinha calçamento) e as casas da Vila Militar estavam começando a ser construídas. Maria sem Queixo morava por ali, num "chalezinho" (conforme diz o autor) e usufruía da maior liberdade dentro do prédio do Sétimo.
Segundo Carlinho Bortoluzzi, a história da Maria Sem Queixo remonta ao período da Segunda Guerra Mundial, quando o Exército Brasileiro criou um Batalhão de Carros de Combate (3º BCC), em Santa Maria. Os tanques de guerra vieram do Rio de Janeiro, chegaram no porto de Rio Grande e seguiram de trem para Santa Maria. Os carros alcançaram a cidade em setembro de 1944 e dentro de um deles foi encontrado uma menina magrinha, com cabelo desgrenhado, malvestida, descalça e sem queixo. Ela tinha provavelmente 16 anos e disse se chamar Maria Martins. Os militares não conseguiram saber se ela viera do Rio de Janeiro, de Rio Grande, de alguma parada do trem ou de Santa Maria mesmo. Houve tentativas de localizar familiares, mas ninguém foi encontrado. Enquanto isso o comandante do batalhão providenciou acomodações para a moça e ela foi instalada num barraco nos fundos de um terreno próximo.
Em 1948 o 3º BCC mudou-se para o Boi Morto, Maria Sem Queixo foi proibida de acompanhar o batalhão e ficou instalada num chalezinho abandonado no local da atual Vila Militar. Fez amizades com os guardas do 7º RI e se tornou “integrante do Regimento”.
Com alguns percalços essa história se desenrolou até 1972, quando Maria Sem Queixo morreu. Sua moradia pegou fogo e nunca se soube se foi acidente ou crime. O comandante da 3ª Divisão, general Tácito Theóphilo de Oliveira, determinou que o comandante do 7º RI, coronel Weiss, tomasse as providências e assim foi adquirido um túmulo individual no Cemitério Municipal. No registro do cemitério ela está identificada como “menina do regimento”, sob o nome de “Maria Martins – Sem Queixo”, sem pai, sem mãe, mas com a proteção do Exército Brasileiro.
Prado Veppo tinha razão, se Noel Rose vivesse em Santa Maria, ela seria personagem de uma canção.



[i] ZANATTA, Humberto (org.), FONSECA, Orlando; PRADO VEPPO; e BIASOLI, Vitor. Quarteto in prosa e verso. Santa Maria: s/ editora, 1998.
[ii] BORTOLUZZI, Carlinhos. A Menina do Regimento: Maria Sem Queixo, Mula Sem Cabeça e outras histórias da caserna. Santa Maria: s/ editora, 2019.