terça-feira, 3 de março de 2020

A Menina do Regimento

           Em 1998, no livro coletivo Quarteto in prosa e verso, o poeta Prado Veppo publicou um poema dedicado a Maria Sem Queixo: A porta-estandarte.
“Maria Sem Queixo / Só não é / Letra de samba / Por que não foi / Contemporânea / de Noel // Pois se ela fosse / Ele teria / Certamente / Posto sua vida / Numa folha / De Papel // E ela seria / Com as cores / Da Bandeira / Porta-estandarte / Da Poesia / Brasileira”[i]
O poema integrava um conjunto que tematizava figuras populares de Santa Maria – mendigos, professores, médicos, poetas, jornalistas e um cabeleireiro –, todas pessoas  mortas – uma e outra de forma violenta, como Luizinho De Grandi (morto num assalto):
“O Luizinho morreu cedo / Como morrem os toureiros / Sangrando dentro da arena / De algum domingo em Granada.”
 Os poemas enfocavam a trajetória dessas pessoas (ou suas mortes) e desenhavam também uma espécie de cartografia de Santa Maria: um mapa das suas gentes, ruas e histórias. Um roteiro que utilizo até hoje para entender nossa cidade.
Eu não sabia coisa alguma a respeito da Maria Sem Queixo, na época, e essa crônica é para suprir essa falta de informação.
Na Feira do Livro de Santa Maria do ano passado encontrei um livro com o título A Menina do Regimento e a associação com o poema do Veppo foi inevitável, afinal Maria Sem Queixo era também conhecida como Menina do Regimento (do 7º Regimento de Infantaria – quando esse ainda se localizava na Avenida Borges de Medeiros). O livro foi lançado na mesma Feira do Livro, mesma praça, vinte anos depois do Quarteto in prosa e verso, e, para mim, foi como se completasse o poema d’A porta estandarte.
O livro, de autoria de Carlinhos Bortoluzzi[ii], tem enfoque memorialístico, priorizando as vivências do autor no NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais Regulares), no final dos anos 60 e início da década de 70, e a figura da Menina do Regimento serve como uma espécie de eixo condutor da narrativa. O NPOR funcionava no 7º Regimento e, em 1969, no primeiro dia em que o autor chega ao quartel, ele se depara com a Maria Sem Queixa. Ela vem entrando pelo portão principal, gritando e fazendo espalhafato.
O autor conhecia a mulher desde guri – quando assistia aos desfiles de 7 de Setembro e a via marchando ao lado do regimento –, mas se surpreende com o modo como ela era tratada. O guarda do portão, por exemplo, a cumprimenta formalmente, isto é, com uma caprichada continência.  

Maria Sem Queixo preparada para desfilar junto ao 7º RI.
Foto obtida na Casa de Memória Edmundo Cardoso.
 Segue daí uma série de informações sobre a Maria Sem Queixo que eu não conhecia. Nos dias de desfile, ela usava um vestido verde amarelado, com uma faixa no peito escrito “Ordem e Progresso”, e um cabo de vassoura no ombro. Na cabeça, um bico de pato (boné militar) verde oliva e, dessa maneira, compunha as cores da bandeira brasileira a que o Veppo se referia no poema.
Naquele tempo, a Avenida Borges de Medeiros era um projeto de rua (não tinha calçamento) e as casas da Vila Militar estavam começando a ser construídas. Maria sem Queixo morava por ali, num "chalezinho" (conforme diz o autor) e usufruía da maior liberdade dentro do prédio do Sétimo.
Segundo Carlinho Bortoluzzi, a história da Maria Sem Queixo remonta ao período da Segunda Guerra Mundial, quando o Exército Brasileiro criou um Batalhão de Carros de Combate (3º BCC), em Santa Maria. Os tanques de guerra vieram do Rio de Janeiro, chegaram no porto de Rio Grande e seguiram de trem para Santa Maria. Os carros alcançaram a cidade em setembro de 1944 e dentro de um deles foi encontrado uma menina magrinha, com cabelo desgrenhado, malvestida, descalça e sem queixo. Ela tinha provavelmente 16 anos e disse se chamar Maria Martins. Os militares não conseguiram saber se ela viera do Rio de Janeiro, de Rio Grande, de alguma parada do trem ou de Santa Maria mesmo. Houve tentativas de localizar familiares, mas ninguém foi encontrado. Enquanto isso o comandante do batalhão providenciou acomodações para a moça e ela foi instalada num barraco nos fundos de um terreno próximo.
Em 1948 o 3º BCC mudou-se para o Boi Morto, Maria Sem Queixo foi proibida de acompanhar o batalhão e ficou instalada num chalezinho abandonado no local da atual Vila Militar. Fez amizades com os guardas do 7º RI e se tornou “integrante do Regimento”.
Com alguns percalços essa história se desenrolou até 1972, quando Maria Sem Queixo morreu. Sua moradia pegou fogo e nunca se soube se foi acidente ou crime. O comandante da 3ª Divisão, general Tácito Theóphilo de Oliveira, determinou que o comandante do 7º RI, coronel Weiss, tomasse as providências e assim foi adquirido um túmulo individual no Cemitério Municipal. No registro do cemitério ela está identificada como “menina do regimento”, sob o nome de “Maria Martins – Sem Queixo”, sem pai, sem mãe, mas com a proteção do Exército Brasileiro.
Prado Veppo tinha razão, se Noel Rose vivesse em Santa Maria, ela seria personagem de uma canção.



[i] ZANATTA, Humberto (org.), FONSECA, Orlando; PRADO VEPPO; e BIASOLI, Vitor. Quarteto in prosa e verso. Santa Maria: s/ editora, 1998.
[ii] BORTOLUZZI, Carlinhos. A Menina do Regimento: Maria Sem Queixo, Mula Sem Cabeça e outras histórias da caserna. Santa Maria: s/ editora, 2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário