segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Rubens Paiva


O desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva é um caso emblemático do Regime Militar brasileiro. Rubens Paiva era deputado federal do PTB e foi cassado logo na primeira leva, após o Golpe de 64. Acreditou que poderia fazer oposição democrática ao governo militar e se deu mal. No dia 20 de janeiro de 1971 teve a sua casa “invadida por seis militares à paisana armados com metralhadoras” e obrigado a “comparecer na Aeronáutica para prestar depoimento”. Foi no seu próprio carro. Nunca mais voltou. Seu corpo está desaparecido até hoje.
No dia 24 de fevereiro de 1971, foi publicada no Diário Oficial da União a versão oficial do episódio: “quando [Rubens Paiva] era conduzido para ser inquirido sobre fatos que denunciam atividade subversiva, teve seu veículo interceptado por elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado”.
Na semana passada, documentos encontrados na casa do coronel reformado Júlio Molina Dias (morto em assalto, no início do mês) dão conta de que o ex-deputado entrou no DOI-Codi / 1º Exército / Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro. Em resumo, não houve a fuga espetacular. O caso é emblemático, pois revela as arbitrariedades cometidas e as posteriores farsas encenadas pelas autoridades.
Rubens Paiva não estava ligado às organizações armadas, mas tinha contato com seus integrantes. Segundo o filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, uma carta de exilado político no Chile, enviada ao ex-deputado, foi interceptada pelos órgãos de segurança e daí seguiu-se a investigação. Os militares tinham contas a ajustar com o ex-deputado (ele guardava provas do auxílio financeiro da CIA às organizações que faziam oposição ao Governo Jango) e se excederam no interrogatório. Um “acidente de trabalho”, segundo o ex-presidente Médici (comentário escutado pelo senador Vitorino Freire).
A notícia do achado dos documentos do DOI-Codi, comprovando ingresso do ex-deputado no 1º Exército, indicam um novo capítulo no caso do “desaparecimento de Rubens Paiva”. Li a matéria na Zero Hora da semana passada e recortei para guardar. Passei na Biblioteca do Campus e retirei o livro Feliz ano velho, do filho do ex-deputado, para reler. O livro é de 1982 e foi um sucesso nos anos 80. Teve quarenta edições. 
Marcelo tinha onze anos quando os militares entraram em sua casa. Logo depois, a mãe o mandou levar um recado para uma vizinha: “O Rubens Paiva foi preso, ninguém pode vir aqui, senão é preso também”.
Segundo depoimento do escritor, após a descoberta de documentos do DOI-Codi na casa do coronel reformado, a surpresa foi geral: “Por que ele guardava (...)? Era uma espécie de souvenir da guerra suja?”
Um souvenir, provavelmente. E quem sabe o indício de que o coronel também queria contar a sua versão do caso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Esquina Maldita


Uma das boas surpresas dessa última Feira do Livro, em Porto Alegre, foi o lançamento do livro Esquina Maldita, de Paulo César Teixeira (Editora Libretos, 210 p.). Uma investigação jornalística a respeito dos bares que existiram na esquina da Rua Sarmento Leite com a Avenida Osvaldo Aranha, entre as décadas de 1960 e 1980: Alaska, Estudantil, Copa 70 e Marius.
O Bar Alaska, pioneiro, foi criado em 1965, e na seqüência surgiram os outros três. Os cursos da UFRGS funcionavam nas imediações e esses bares passaram a reunir a juventude universitária. A Esquina foi o point da esquerda estudantil e, ao longo dos 70, agregou também uma outra juventude, nem tão engajada politicamente, isto é, nem tão inserida nos partidos políticos (ou organizações clandestinas) e mais adepta das políticas do corpo, das drogas, das práticas alternativas e coisas assim.
O autor entrevistou os donos dos bares, historiou cada um dos estabelecimentos e também procurou os seus frequentadores mais ilustres: a Nega Lu, a Lucrécia, o casal Chico Daniel e Bete Portugal, entre eles. Talvez as figuras mais emblemáticas do que se considerava ousadia nos anos 70: a postura homossexual assumida, no caso da Nega Lu e Lucrécia; o casamento aberto, no caso de Chico e Bete.
Significativamente, o livro é dedicado a duas figuras emblemáticas da Esquina: Isake Plentis, o garçom do Alaska, e Joãozinho (João Alberto Figueiró), estudante de Ciências Sociais (depois professor), um freqüentador assíduo. Ambos morreram há pouco tempo e não seria exagero dizer que simbolizam a fauna do lugar: Isake, um trabalhador, garçom atencioso, e Joãozinho, o boêmio solitário, bom de copo e ótimo papo.
Como bem afirma o autor, a droga mais utilizada na Esquina era o álcool, mas as outras drogas (ilegais) também circulavam. Maconha, seguramente, a mais utilizada, mas que não era fumada no interior dos bares, só na rua. Havia uma turma que usava drogas injetáveis, mas eram poucos, muito poucos, e se picavam nas imediações. Uma turma que arrancou do escritor Caio Abreu um comentário exagerado: “Isso aqui parece Amsterdam”. Exagerado porque, na maioria, os frequentadores eram apenas adeptos do álcool e grandes conversadores. Não havia música nos bares – tirando as apresentações eventuais da Nega Lu, no Estudantil – e se conversava muito, muitíssimo, assim como se namorava também.
Quanto ao quesito namoro e sexo, muito boa a investigação do autor a respeito dos recintos reservados do Estudantil. Diz a lenda que ali rolava sexo entre os casais, mas o autor não encontrou comprovação. Pura lenda. Apenas amassos, abraços e beijos, e mãos e pernas pra lá e pra cá.
Paulo César Teixeira, autor do livro, faz uma boa história da Esquina e das diferentes gerações que perambularam pelos bares. A turma mais militante dos anos 60 e início dos 70, e a turma mais voltada às práticas alternativas, no final dos 70 e início dos 80. Segundo o autor, “um gueto de boemia com vida intelectual inquieta e independente, cujos protagonistas foram testemunhas e artífices do surgimento de uma cultura urbana contemporânea.” “Muitas idéias que circulavam nas conversas se transformaram em realidade nos anos 2000”, conclui o autor.
Uma avaliação serena e otimista das tantas conversas & delírios que rolaram naqueles bares. Aquele antro de "proselitismo e porra-louquice" abrigou projetos e ousadias - no campo das artes, da cultura e do comportamento - que hoje estão consolidados na vida porto-alegrense. Segundo um dos entrevistados, por ali passou uma revolução e a coisa até deu certo. Pode crer.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Os barulhos da cidade


     Estive em São Leopoldo e passei três noites num hotel do centro da cidade. Num dia de manhã, na portaria, ouvi uma hóspede reclamar dos barulhos da noite e fiquei pensando no assunto. A janela do seu quarto dava para a rua e ela escutara, durante a madrugada, a algazarra de "drogados e prostitutas" na calçada do hotel. Não conseguira pregar no sono. A janela do meu quarto também era voltada para a rua, porém eu não escutara coisa alguma. Ouvira, isto sim, no início da noite, os potentes aparelhos de som de diversos carros. Mas isto até a meia-noite. Depois, praticamente desapareceu o chamado "som automotivo".
     Desapareceu de circulação ou eu ferrei no sono? Não sei. Seja como for, as cidades ficaram demasiadamente barulhentas. A gurizada e seus terríveis conjuntos de auto-falantes nas traseiras dos automóveis tornaram-se uma provação para grande número de moradores. Haja paciência para aguentar a altura das músicas e sua impertinência nas mais variadas horas do dia e da noite!
     Caberia fazer uma história dos ruídos das cidades? Investigar a mudança de perfil sonoro das cidades e descobrir quando elas passaram a ser dominadas por excessos de barulhos, seja de máquinas, ônibus ou trens, seja de instrumentos musicais e aparelhos de som em bares, boates, clubes, templos religiosos e automóveis? Um assunto a pesquisar, me parece.
     Eu sou um nostálgico das madrugadas silenciosas e gostaria de entender essa transformação. Fui criança em Pelotas e gostava de suas noites sossegadas. Abria a porta de casa, avistava o Cruzeiro do Sul e escutava o canto dos grilos. Fui adolescente em Porto Alegre, no bairro Floresta, e ouvia o bonde solitário cruzar a Avenida Cristóvão Colombo durante a noite. Os bondes rareavam depois das 22 horas e parecia que a cidade caia em sono profundo.
   Dia desses escutei um porto-alegrense se queixar da nova regulamentação da Prefeitura para os bares noturnos e achei estranho que ele dissesse que noites silenciosas apenas existiam nas cidades do interior. Um porto-alegrense como muitos, isto é,  que não conhece o interior do Rio Grande e pouco sabe que suas cidades são barulhentas e agitadas, como bem demonstram algumas avenidas de Santa Maria, Cruz Alta e São Leopoldo também.
    Caberia mesmo uma investigação para esclarecer a mudança sonoro  de nossas cidades. Mas quanto aos "drogados e prostitutas" que a hóspede falara... Bem, isto talvez seja outra história. Outro tema para pesquisas, monografias, teses e essas conversas todas que se fazem nos espaços acadêmicos, que tudo transformam em objeto de estudo e discussão teórica. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012


Coisas da vida e da literatura

Maximo Gorki conheceu o avô no dia em que leu o romance Eugênia Grandet, de Balzac. O pai de Eugênia era um homem que controlava os torrões de açúcar que a família consumia, proibia leituras à noite para não gastar vela, e muito se assemelhava ao avô de Gorki. O famoso escritor russo só conseguiu compreender o seu avô – avarento e mesquinho como o pai de Eugênia Grandet – no dia em que teve acesso ao livro de Balzac. Foi por meio da descrição de pai Grandet que Gorki desvelou a figura do avô.
Esta história é emblemática do quanto a literatura pode servir como forma de conhecimento do mundo, o quanto o material de ficção possibilita a muitos de nós o acesso à realidades que estão na nossa frente, prontas para serem desveladas, só necessitando que alguém nos auxilie. E esse alguém, muitas vezes, pode ser um poeta ou romancista.
Exemplos semelhantes a este talvez cada um de nós, leitores de livros de ficção, poderia contar. No meu caso, penso que foi O tempo e o vento, de Erico Veríssimo, que me auxiliou no conhecimento de algo fundamental na vida: o reconhecimento da figura paterna. No conflito do personagem Floriano Cambará com o seu pai, o doutor Rodrigo Cambará, aprendi a reconhecer que eu também precisava fazer as pazes com meu pai e construir alguma forma de entendimento entre nós. Li o romance com 19 anos, durante os meses de abril a junho de 1975, e acho que nunca mais fui o mesmo. O esforço consciente de Floriano para compreender e se aproximar do pai me revelou um caminho que eu deveria trilhar.
Meu pai ainda estava vivo e hoje posso dizer que me aguardava. Era um homem generoso, que não guardava rancores do filho arrogante, e esperava. Me aproximei, nos aproximamos, e penso que a leitura d’O tempo e o vento me auxiliou a compreender os nossos conflitos de pai e filho. Auxiliou, esclareceu, verdadeiramente iluminou. Três anos depois meu pai morria e nesses poucos anos construímos um entendimento que foi fundamental para a minha construção como homem.
Assim, se Gorki conheceu o avô lendo Balzac, posso dizer que conheci meu pai lendo Erico Veríssimo. Coisas da vida e da literatura. Coisas possíveis de serem vividas por quem se deixa encantar pelo mundo da leitura. Histórias que me vêm a mente enquanto caminho pela Feira do Livro de Porto Alegre e penso que sempre é necessário festejar todas as ações que favoreçam a formação de leitores. A formação de homens e mulheres que um dia poderão ler Balzac, Gorki ou Erico Veríssimo, e conhecerem melhor os seus pais e avós. Conhecerem melhor o próprio mundo e talvez viverem com maior intensidade.