domingo, 25 de dezembro de 2011

Pinheiro de Natal

O pai pregava a base do pinheiro de Natal no assoalho da sala com dois pregos grandes. O pinheiro ficava firme e depois a mãe coordenava a arrumação da árvore: os enfeites feitos de bolas coloridas, as luzes e até pedaços de algodão para imitar a neve.
Mas ela implicava com a ênfase que o pai dava à montagem da árvore (um pinheiro artificial) e a centralidade que isto passava a ter na comemoração natalina. Para ela, tinha que prevalecer a tradição católica – e portuguesa, ela enfatizava – do presépio e da celebração do nascimento do Menino.
Apesar de se dedicar com afinco à compra dos presentes para a noite de 24, ela lembrava que no tempo dela não existia nada disso. Havia o presépio, a Missa do Galo e pronto. Presentes, as crianças só recebiam no Dia de Reis (6 de janeiro), quando ela e o irmão se acordavam e iam ver o que os Reis Magos haviam deixado dentro dos sapatinhos.
Esta tradição ibérica ela reproduzia entre nós e todas as véspera de Reis lá íamos nós colocar os sapatos na janela. No outro dia de manhã, sempre os encontrávamos cheios de balas, chocolates e histórias em quadrinhos. Um dia meu irmão mais velho insinuou que não eram os Reis Magos que davam os presentes, mas não acreditei nele.
O pai e a mãe, no entanto, divergiam em algumas coisas nessa época do ano – e isto eu percebia. O pai, exageradamente pró pinheiro de Natal e Papai Noel; a mãe, defensora da prioridade do presépio e da centralidade do Menino.
Essa pequena divergência se reproduziu anos a fio e certa vez, quando eu andava com 19 ou 20 anos, o pai e eu conversamos a respeito. Estávamos na mesa, terminando o almoço – bebendo os últimos goles de vinho, enquanto a mãe retirava os pratos – e ele disse que no seu tempo de guri não havia comemoração natalina.
– Na minha casa não tinha nada disso – ele falava.
E fiquei com a impressão de que o Natal devia ser um dia como outro qualquer, na casa dele. Seus pais, imigrantes italianos endurecidos pela vida, talvez achassem as festas natalinas coisa de gente rica ou de barões.
– A tua mãe é que mudou isso tudo – ele completou, indicando que fora a doçura da mãe que possibilitara que ele pregasse o pinheiro de Natal no assoalho da sala e combinasse com um tio para ele se fantasiar de Papai Noel.
– Foi aí que aprendi o que era Natal – ele disse.
E só então descobri que era ele quem mais se divertia com a montagem da árvore. Muito mais do que os seus três filhos, que o olhavam encantados bater com o martelo.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sob a mira de uma metralhadora

Em abril de 1964, logo após o golpe militar, havia um nicho de metralhadora instalado no alto de uma das casas que circundam a Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas. Sacos de areia protegiam dois soldados em torno de uma metralhadora. Eu andava com meu pai pela rua e perguntei a ele o que era aquilo. Mas não lembro o que ele respondeu. Apenas recordo que o cano da arma estava voltado para nós.
O pai não costumava falar de política. Talvez o desaparecimento de um dos irmãos, logo após o golpe, tenha contribuído para esse silêncio. O tio morava em Porto Alegre, era petebista ligado ao Brizola e sumira nos primeiros dias da “Revolução”. Ninguém sabia o seu paradeiro e apenas sussurrava-se sobre o assunto. Um dia veio a notícia de que ele estava num quartel de Pelotas e uma das suas irmãs resolveu visitá-lo. Alguém tinha que acompanhar a tia e eu fui escalado para companhia. Essa tia era uma anãzinha decidida (muito engraçada e querida pelos sobrinhos) e lá fomos nós, levar cigarros e frutas para o tio.
Um soldado nos recebeu no portão quartel e nos conduziu a um prédio de madeira. Lá dentro, num quarto ensolarado, estava o tio, barba por fazer, magro, a nos receber com um sorriso triste.
Imagem inesquecível para o menino de oito anos que eu era. O tio aparecera, depois de preso pelos militares, sem que fosse dada nenhuma notícia à família. Era comunista, não era? O que tio era? Sobre isso ninguém falava e anos depois ouvi o tio contar que ele estivera numa prisão muito úmida do Rio de Janeiro, da qual avistava o mar por uma janela, e depois o trouxeram para o Sul. Foi solto logo depois sem maiores explicações.
O pai não comentava o caso. Talvez por ter combinado isto com a mãe. Afinal, o único irmão dela era oficial do Exército (provavelmente capitão, na época do golpe) e sobre isto não se dizia palavra. Não se comentava sobre o irmão do pai que era brizolista – depois eu soube, o pecado do tio era ser brizolista –, não se dizia coisa alguma sobre o irmão da mãe, militar do tipo Caxias e apoiador das Forças Armadas desde a primeira hora.
Uma rede de silêncio se tecera no meu ambiente familiar. O vô falava de Gaspar Silveira Martins, o grande tribuno do Império, comentava as façanhas do Zeca Neto, mas não falava do Brizola. E quando meu pai e eu andávamos pela Praça Coronel Pedro Osório, sob a mira de uma metralhadora, ele não respondia às dúvidas do filho. Ele comentava sobre o filme que acabara de assistir no Cine-Teatro Guarany, no qual os nazistas haviam tomado Paris.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A ermida do Padre Pio

Padre Pio é um santo novo da Igreja Católica. Viveu na Itália entre 1887 e 1968, foi beatificado em 99 e santificado em 2002. Em 2004, no alto de um cerro do município de Faxinal do Soturno, construíram uma ermida em sua homenagem. Há dois domingos atrás houve festa no local e lá fomos nós, um amigo fotógrafo e eu, participar da romaria.
Não subimos o cerro a pé – como manda a boa regra dos peregrinos. Fomos de carro – que é o modo como a maioria dos romeiros sobe até a ermida. Uns poucos encaram a caminhada (com cajados distribuídos pela associação mantenedora da ermida) e foram estes que meu amigo registrou com a sua câmara.
Belas fotos ele tirou! Ficamos sentados na beira da estrada e pedimos permissão aos romeiros. Nenhum deles disse não. Tentamos convencer uma menina que vinha com o pai, mas não houve jeito. Foi a única romeira que não quis ser registrada. Uma lástima! Homens e mulheres subiam compenetrados e sorriam para nós. Mesmo aquelas senhoras que estavam exaustas com o esforço desprendido. Senhoras que depois, lá no alto, quase se arrependiam da longa caminhada. Mas a graça obtida pelo Santo, me disse uma delas, valia bem o sacrifício.
Por sinal, foi isto mesmo que nos falou um dos organizadores do evento. Disse que o pessoal que vem até a ermida é muito grato pelas graças recebidas. Expressam isso nas cartas que deixam na capela e também nas doações em dinheiro. O vice-presidente nos falou muito orgulhoso, indicando a capela belissimamente construída, decorada e limpa, apontando o caminhão com lona e aparelho de som que servia para a missa campal, e mostrando os mil e duzentos quilos de carne que estavam sendo assados.
Tenho a impressão que se trata de uma festa religiosa diferente das que tenho acompanhado. Diferente da romaria da Medianeira, que ocorre nas ruas de Santa Maria; da festa de Santo Antão, no bairro do Campestre (igualmente em Santa Maria); e da romaria de N.S. de Lourdes, em torno de uma gruta no Vale Vêneto. Procuro uma distinção entre elas – quem sabe a composição social dos romeiros (predominantemente de classe média), quem sabe a ausência de uma procissão com todos os romeiros juntos – e acabo achando que é o cenário bucólico.
Um bando de andorinhas voa e canta ao redor da ermida e fico convencido de que alguma coisa impregna o lugar. Alguma coisa estranhamente fugidia como aquela menina que subia o cerro e não quis ser fotografada. Ela queria apenas caminhar de mãos dadas com o pai, alheia a tudo mais.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Rio Grande Profundo

         As histórias contadas pelo vô Octaviano (meu avô materno) me colocaram em sintonia com as revoluções rio-grandenses: a Revolução Federalista, a Revolução de 1923, a Revolução de 30 e todo o ciclo de Vargas. O Vargas caudilho que tomou o Governo Federal em 1930, o Vargas ditador do Estado Novo e, principalmente, o Vargas que se tornou Pai dos Pobres, o Velhinho que volta ao poder em 1951 e peita os poderosos.
Claro que as histórias do vô não apontavam toda a cronologia e detalhes indicados acima. Isto eu aprendi depois, no Curso de História e quando me tornei professor. O que o vô fazia era simplesmente aproximar a criança que eu era da longa tradição guerreira e até revolucionária do Rio Grande do Sul – o Rio Grande histórico e também lendário.
Mais tarde, quando comecei a lecionar (em Alvorada e Canoas, no final dos anos 70 e início dos 80), os alunos me traziam a imagem de Vargas no mesmo diapasão das histórias do vô Octaviano. Os pais desses alunos lhes transmitiam a imagem do Vargas Pai dos Pobres, o estadista preocupado com o povo, e a gurizada não entendia o modo como eu tratava o ex-presidente. Afinal, como bom aluno da UFRGS e versado na sociologia paulista, eu enquadrava Vargas no conceito de populista e desmontava a figura do Pai dos Pobres. Vargas se tornava um líder que manipulava a classe trabalhadora e a impedia de agir de forma autônoma. A tal legislação trabalhista passava a ser vista como forma de controle da classe trabalhadora e lá se ia a imagem positiva do Doutor Getúlio. Ideias desenvolvidas por Octávio Ianni e Francisco Weffort, figuras emblemáticas da escola de sociologia paulista (USP) e até pouco tempo dominantes no mundo acadêmico.
E recordo que havia momentos, na sala de aula, em que eu me calava e ouvia os alunos falarem do Vargas que seus familiares desenhavam para eles. Nessas horas, era meu avô que eu escutava também.
Terminada a aula, eu saia a caminhar pela estrada de chão batido que passava na frente da escola e me sentia conectado com o glorioso ciclo das revoluções rio-grandenses. Um ciclo que precisava ser revisto, patati-patatá – mas isso não vem ao caso, agora. Meu avô morreu por aquela época (1982) e eu parecia regressar a um tempo primitivo escutando a fala dos alunos: as conversas meu avô sobre Vargas e uma plêiade de heróis rio-grandenses, do chamado Rio Grande Profundo.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Zona do Porto

Em Pelotas, morei na chamada zona do porto. Não propriamente junto ao porto, mas nas imediações. Se o leitor conhece a cidade, morei a duas quadras da Igreja do Sagrado Coração de Jesus (também conhecida como Igreja do Porto). Meu avô materno (nascido em 1897), este sim viveu a poucas quadras do cais. E, quando criança, ia com ele numa barbearia que ficava nessa zona, na Rua Benjamin Constant, próximo à ex-Cervejaria Rio-Grandense. Naquela época, completamente desativada.
Eu me sentava na porta da barbearia e ficava olhando aquele enorme conjunto de prédios, impressionado com o fato de que aquilo tudo um dia funcionara...
A cervejaria fazia parte do cenário da infância e juventude do meu avô, e lhe trazia boas recordações. Uma empresa pujante, que começara a funcionar em 1889, expandira-se na década de 1910 e ganhara aquelas dimensões arquitetônicas que eu via e admirava, na década de 1930. Segundo um levantamento atual, “um conjunto arquitetônico com volumetria bastante diversificada (...) toda ela marcada por uma heterogeneidade estilística”. Em 1944, foi comprada pela Cervejaria Brahma e fechada logo depois. Na década de 60, quando eu a conheci, estava rigorosamente transformada em ruínas.
A Brahma comprara a fábrica para calar a concorrência que ela fazia na região, ouvi contar. E nunca soube se alguma vez a Brahma a utilizou para produzir cerveja. Meu avô e os amigos – todos eles na faixa dos 60 anos – olhavam a imensidão das paredes da fábrica e apenas recordavam... Lembravam de quando eram jovens, a cidade parecia mais dinâmica, e eles iam a bailes e namoravam.
Quanto fui a Pelotas neste ano (para um congresso na UFPel), me dei conta de que o evento estava acontecendo num antigo estabelecimento industrial reformado, que fazia esquina com a Benjamin Constant. Não era a ex-Cervejaria Rio-Grandense, mas provavelmente um prédio remanescente daqueles tempos – daquele conjunto de prédios industriais que funcionaram na zona do porto na primeira metade do século XX.  
Então fiquei sentado na sala, escutando as comunicações acadêmicas e, súbito, tive a impressão de ouvir meu avô e os amigos. Eles falavam e riam, e imaginei que eles falassem das melindrosas, que todos namoraram com o devido respeito.
         Quando terminou o evento, era noite e dei uma breve olhada na Rua Benjamin Constant. Mas não avistei a ex-Cervejaria. Que sei continua existindo – eternamente em ruínas, conforme li numa reportagem sobre a cidade.