sábado, 16 de dezembro de 2023

Despir a armadura de Cavaleiro Andante

 

Estou lendo A Rainha do Tráfico, romance de Arturo Pérez-Reverte (Ed. Record, 2015, 518 p.), e interrompo a leitura para fazer um comentário a respeito de uma passagem do livro.

A personagem principal, Tereza Mendoza (que vai se tornar mais tarde a chefe de uma rede de distribuição de drogas no sul da Espanha), acorda durante a madrugada, caminha pela casa e vai espiar o amante construindo a maquete de um barco. É o hobby do rapaz. Ele é um exímio piloto de lancha e o casal trabalha no transporte de drogas entre Marrocos e Espanha (na década de 1980).

Ela tem 24 anos e fugiu do México porque o seu companheiro (também traficante) foi morto e ela, jurada de morte. Na Espanha, volta a se envolver com outro criminoso (um galego, 30 anos) e, olhando-o naquela madrugada (enquanto ele está distraído na montagem de uma maquete), ela reflete a respeito da tendência sonhadora dos seres humanos. Todos sonham, mas não do mesmo modo. Enquanto alguns arriscam a vida no mar numa Phantom (o tipo de lancha que o amante espanhol utiliza para traficar drogas) ou no céu em um Cessna (o tipo de aeronave que o antigo companheiro usava para transportar drogas entre o México e os Estados Unidos), outros constroem maquetes como consolo e outros se limitam a sonhar. Alguns, no entanto, constroem maquetes, arriscam a vida e sonham. Tudo ao mesmo tempo.

As reflexões da personagem me calaram fundo. Todos somos sonhadores, não há como escapar. Eu, no entanto, sou daqueles que apenas se limitam a sonhar. Não sei fazer maquete e, muito menos, me arriscar em ações perigosas, como o amante de Teresa.

O casal opera entre Marrocos e Espanha (Teresa, apesar de não ser uma sonhadora, acompanha o companheiro na lancha), traz haxixe da África para desembarcar na Costa del Sol e coloca a vida em risco. Eles navegam próximo a Fuengirola, uma localidade da costa espanhola do Mediterrâneo e interrompi a leitura, quando esse local foi citado...

Fuengirola - Costa del Sol.

Estive em Fuengirola, em 2015. Estava viajando com minha antiga companheira, descemos de Sevilha até a Costa do Sol (numa van, junto com um grupo de turistas) e chegamos em Fuengirola no meio da tarde. Visitamos uma mesquita, caminhamos na beira da praia e tomamos café num bar em frente ao mar. Era um bonito dia de inverno, ensolarado e frio.

Havia um castelo numa colina próxima, convidei minha mulher para ir até lá, porém ela estava cansada e preferiu voltar ao hotel. Eu segui em frente, subi a colina e dei uma volta em torno da fortaleza que, segundo as informações, remontava ao tempo dos mouros. O castelo estava com as portas fechadas para visitação e me sentei num banco no lado de fora, na sombra das muralhas. Era a primeira vez que via o Mar Mediterrâneo e me lembrei das cenas finais do filme El Cid, que assisti pela primeira vez com 10 anos de idade... As cenas do cerco de Valência, pelos mouros, defendida bravamente pelas tropas de Cid, o Campeador. Em Sevilha, dois dias antes, num passeio de charrete pela cidade, cruzara por uma estátua dedicado ao herói da Reconquista e me surpreendera com o fato dele ainda ser festejado na Espanha.

Castelo medieval, em Fuengirola.

Naquele entardecer em Fuengirola, minha imaginação voou longe e “voltei” ao tempo das lutas entre mouros e cristãos. E então, por conta dessas associações malucas que o pensamento faz, me dei conta (numa intensidade rara, que se agudiza a cada vez que relembro o episódio) de que eu era um sonhador inveterado. Em terras de Espanha, nas margens do Mar Mediterrâneo (que lugar propício para um sonhador!), vivi o que sempre fui: um sonhador alucinado. Um guri que sonhou desbragadamente, um homem que continuou com os pés na Lua, idealizando a vida, as pessoas e as mulheres especialmente.

O romance de Pérez-Reverte me devolveu essa experiência vivida na Espanha, na Costa do Sol. Um traficante, piloto de lancha, sonha grandezas e vive perigosamente, enquanto a sua amante, sem os mesmos delírios, o acompanha nas operações de transporte de drogas, navegando ao seu lado. Teresa, uma mexicana telúrica e atávica, que reconhece a propensão de todos os seres humanos ao sonho... mas não se entrega a isso. Antes de mais nada, Teresa quer sobreviver.

Fuengirola se tornou uma referência para mim. Um marco nesse grande esforço, nunca concluído, de romper com o idealismo exacerbado que marca minha vida inteira. Em Fuengirola – em terras de Espanha, revivendo as glórias da Reconquista – senti que já era tempo de despir a armadura de Cavaleiro Andante que vesti na infância e juventude. Acho que nunca vivenciara o assunto com aquela intensidade... Acho que nunca sentira que era preciso (e possível) mudar. Ia completar 60 anos. Não dava mais para bancar Dom Quixote.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Um dente contra a Ditadura

 

Nos anos 1980, um dos meus assuntos recorrentes era o Regime Militar brasileiro. Fui leitor de primeira hora de Brasil: Nunca mais (Ed. Vozes, 1985) e senti verdadeiro embrulho no estômago ao longo da leitura. A truculência da repressão fora bem pior do que imaginara. Encontrei a crônica abaixo (publicada no jornal A Terceira Margem, em setembro de 1991) e acho que o texto dá conta tanto do sentimento com que vivi os anos 80 como o modo como o Regime Militar ainda se fazia presente.

Segue a crônica, feita com personagens imaginários, criados a partir do que eu experimentava, isto é, um desalento em relações às condições socioeconômicas do País (que a Nova República / Governo Sarney não conseguira modificar):

Até um mês atrás, Berenice acreditava em saúde pública. Mas a última campanha contra o sarampo deixou-a bastante descrente. “Eles gastam muito em propaganda, têm um pessoal que sabe pousar na TV, mas na hora H as vacinas estão vencidas”, ela desabafou para o marido.

Berenice tem uma filha de cinco anos e fez questão de atender ao apelo da Secretaria de Saúde. Mas teve receio de contaminação por agulhas e foi tranquilizada por uma enfermeira. Ela explicou que “pistolas” injetavam por pressão e não utilizavam agulhas. O marido achou a explicação razoável e eles resolveram confiar. Berenice perdeu uma tarde de serviço no Banco e levou a menina ao Posto de Saúde.

Uma semana depois, o marido abre o jornal e lê para ela que as vacinas estavam sob suspeita. Não haviam sido preparadas adequadamente, os prazos de validade estavam vencidos, técnicos do Rio de Janeiro vinham investigar. Berenice sentiu o chão faltar aos seus pés e abraçou a filha como se fosse o fim. Passou metade da noite sentada ao lado da menina, ela não desconfiou de nada e gostou de ver a mãe junto de si. Berenice comentou com o marido que agora sabia o que era ser uma cidadã de segunda classe. E acrescentou: “a maioria dos brasileiros está na mira da incompetência deles”.

E hoje eles recordam que há catorze anos, em agosto de 1977, enfrentavam a polícia de choque na Avenida João Pessoa, sonhando com um Brasil melhor. Eram estudantes universitários e lutavam contra a ditadura. Expunham-se diante dos cassetetes da polícia e fugiam quando eles se aproximavam. Numas dessas fugas, Berenice escorregou na calçada e quebrou a ponta de um dente. Um dente contra a ditadura. Berenice lembra até hoje. E não sabe se valeu à pena. Se alguma coisa vale à pena.

(A Terceira Margem – P. Alegre, nº. 7 – setembro / 1991. P. 8, com o título "Saúde Pública".)

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Violência doméstica

 

Há lembranças que não passam de lampejos. Às vezes apenas uma frase, um olhar, um comentário dito rapidamente. Por exemplo: chego na escola no início da tarde (em Canoas) e uma professora está contando (na sala dos professores) que foi ao hospital visitar uma aluna que apanhou da mãe. A surra foi tão grande que a menina teve de ser levada ao pronto-socorro.

Lembro da professora falando e não recordo se ela estava indignada com o fato ou não. Ela conta que, ao chegar ao saguão do hospital, a mãe da menina estava lá, debulhada em lágrimas, dizendo que “não era isso que queria fazer”.

Escuto o relato preparando meu material para as aulas que teria de ministrar em seguida, a sirene da escola já vai tocar, tenho quatro ou cinco períodos de aulas pela frente e minha atenção está dividida. Nunca soube o nome da aluna, nunca identifiquei a guria entre as minhas dezenas de alunos.[1] Nem recordo o desdobramento do caso: se a menina foi atendida pelo SOE nem se a mãe também teve algum aconselhamento ou coisa semelhante.

Não havia Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia Conselho Tutelar, e não lembro como casos como esse eram conduzidos. Da minha parte, às vezes tomava conhecimento de casos extremos de violência doméstica (raros), mas sempre de forma fragmentada. Minha função era falar a respeito das Capitanias Hereditárias, do trabalho escravo, das revoltas nativistas, da formação do Estado brasileiro e me limitava a isso.

– Professor ensina conteúdo, educação é tarefa dos pais. Se os pais ainda acham que devem surrar os filhos, para melhor educá-los, é problema deles.

Costumava ouvir esse tipo de comentário e não discordava. Mas ficou a lembrança de que muita coisa ocorria com aquelas crianças – que eu assistia entrarem sorridentes pelo portão da escola –, muita coisa a respeito das quais eu vislumbrava e que talvez fosse melhor saber e agir a respeito.

– Muitas delas apanham, como nós apanhamos, Vitor – me dizia um colega que eu sempre achei que sabia das coisas, isto é, conhecia o modo como viviam nossos alunos.

– Eu apanhei pouco – eu falava. – Minha mãe era professora primária e estudou Emílio, de Rousseau. Ela não era adepta de práticas pedagógicas violentas. Meu pai fora criado à base de surras, mas ouvia muito minha mãe e se continha.

Assim eu respondia ao meu colega e ele ria. Falava que minha mãe devia ser uma mulher interessante. Um dia comentei sobre a menina que fora parar no hospital e ele divagou:

– Deve ter sabido que ela andava namorando por aí e teve medo que a guria engravidasse. As mães ficam loucas com isso.

 

Obs.: Emílio ou Da Educação foi um romance a respeito da educação de um nobre e também de sua possível esposa, publicado por Jean-Jacques Rousseau, em 1762. Tornou-se a base de grandes teorias educacionais e, pelo que contava minha mãe, ainda constava da bibliografia da Escola Complementar, em Pelotas, no início da década de 1940.



[1] Eu costumava ter entre 14 e 16 turmas (a maioria com dois períodos por semana), cada uma com 25 alunos (mais ou menos), o que resultava numa média de 350 alunos e uma lista danada de nomes, rostos, perfis e histórias devidamente embaralhados.