sábado, 16 de dezembro de 2017

As famílias são eternas

A Companhia das Letras acaba de lançar o último romance de Leonardo Brasiliense, intitulado Roupas sujas. Uma “saga familiar” (como está indicado na contracapa) ambientada na zona colonial italiana do Rio Grande do Sul. O romance anterior de Leonardo (publicado pela Editora Saraiva) também é ambientado na mesma região: Decapitados. Mas as duas obras poderiam se passar no sertão pernambucano ou no litoral paulista que não faria muita diferença. Afinal, “as famílias são eternas”, diz um dos quatros narradores desse último livro. Famílias são como uma equação e funcionam de modo muito semelhante em qualquer lugar: os elementos da operação são os mesmos e infinitas as suas variações. 


Num caso – em Decapitados – é a cabeça do Pai da comunidade que sumiu (a cabeça do pai, já defunto, colocada como relíquia numa capela). No outro caso – nesse último romance, Roupas sujas – é a Mãe o elemento central. A Mãe morre e deixa a família (o marido e sete filhos) obrigados a se reorganizarem. Pai, Mãe e filhos são peças de um jogo infinito, eterno, e haja talento para lidar com isso. Como o talento é escasso, sobra jogadas infelizes e é com esse material que Leonardo Brasiliense opera para deleite dos seus leitores.
O resultado são essas Roupas sujas familiares, compostas por quatro narradores: três deles membros dessa família infeliz que perde a Mãe num parto mal sucedido  (morre a Mãe, sobrevive a criança) e um quarto narrador não identificável, mas nem por isso menos importante para o andamento e desfecho da narrativa. A Mãe morre num parto sem assistência médica (a Medicina era luxo na região colonial italiana, na década de 1970) e mais de vinte anos depois um filho romancista reconstitui o drama familiar decorrente dessa morte (a primeira parte do romance, a mais longa). Uma das filhas (professora) escreve cartas ao irmão escritor (a segunda parte do romance, menos extensa que o anterior), tendo como mote o romance escrito pelo irmão a respeito dos desdobramentos da morte da Mãe. E um outro filho (aquele que nasceu no parto em que a Mãe morreu) escreve um sucinto diário, às vésperas de ser ordenado padre, relatando seu comovente drama de culpa e sacrifício.
Famílias exigem sacrifícios para se perpetuarem e possibilitarem a continuidade da vida e Pedro cumpre esse ritual, se oferecendo em holocausto, isto é, ao sacerdócio. Famílias exigem corpos e mentes ardendo em sofrimento, especialmente nas dores da culpa. Ou, pelo menos, tem sido assim que a maioria de nós tem operado e é dentro dessa longa tradição de dor e de culpa que Leonardo Brasiliense arma esse magnífico e curto romance. Uma peça de dor e de culpa, muito próxima do compasso de uma tragédia. 
Mas o último narrador – o narrador indefinido, que intervém na narrativa por meio de notas de rodapé – indica que a coisa poderia ser contada de outra maneira, próxima ao ritmo de um samba, quem sabe. Afinal, “as famílias são eternas”, ele afirma, e isso as torna “muito difícil de compreender”. Talvez nem seja possível, eu acrescentaria, mas nem por isso deixamos de empreender a dolorosa tarefa de mergulhar e procurar algum sentido nas roupas sujas dos dramas familiares.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

D. João V e Madre Paula

D. João V, rei de Portugal entre 1706 e 1750, não poupava dinheiro quando se tratava das coisas da Igreja. Pensei nisso sentado num dos bancos da igreja de São Roque, em Lisboa, assistindo a um concerto de música sacra com composições dos séculos XVII e XX. Um espetáculo sóbrio, comparado aos que o rei D. João patrocinou naquele mesmo local.
Interior da Igreja de São Roque. Capelas laterais.
Na época de D. João V, a igreja de São Roque pertencia aos jesuítas e o rei mandou construir no seu interior uma capela luxuosíssima dedicada a São João Batista. A capela foi feita na Itália, “o maior viveiro das artes”, mas com orientações precisas do rei e do arquiteto-ourives da corte portuguesa (um detalhe importante para entender a pouca sensualidade da obra e a preponderância de um barroco mais clássico, menos dado ao gozo dos sentidos como era próprio do barroco italiano do período). Depois de ser sagrada pelo papa, a capela foi desmontada, enviada a Portugal em três naus e remontada onde hoje se encontra. Assisti ao concerto sentado próximo a Capela de São João Batista e usufrui um e outro espetáculo.
D. João governou “à sombra do ouro que chegava do Brasil” (uma média de oito toneladas ao ano) e não sabia o que era controlar gastos. Além dessa capela mandou construir o Convento de Mafra e a Biblioteca Joanina (na Universidade de Coimbra), isso para ficar em apenas mais dois exemplos de realizações grandiosas do seu reinado. Considerado o Rei Sol da monarquia portuguesa, esse título dá conta do investimento em ostentação que o soberano fazia.
Objetos litúrgicos da Capela de S. João Batista, expostos no Museu de São Roque.
Saí satisfeito do concerto, naquela noite, e desci a Rua da Misericórdia em direção ao Chiado. No caminho lembrei de Madre Paula, “a carne gloriosa”, “a flor de claustro perfumada de incenso”, que encantou a vida do rei durante treze anos. Em relação a ela, D. João V também não poupou dinheiro algum. Quando a conheceu, ela era freira no Convento de Odivelas e amante de um conde. O rei a negociou com o conde e consta que ela não reclamou. Pelo contrário, arrogante, passou a exercer até com crueldade o poder que a condição de preferida do rei lhe dava. D. João mandou construiu aposentos luxuosos para ela (no convento), com muito ouro, prata, e nove criados para servi-la. Madre Paula usufruiu esses benefícios mesmo quando deixou de ser amante do rei e, provavelmente, utilizou até o fim da vida a lendária banheira de prata maciça (100 kg de prata) presenteada pelo soberano.
Afirmam os historiadores que a colaboração entre a Coroa e a Igreja atingiu picos elevados durante o reinado de D. João V. O rei não poupava esforços para engrandecê-la, tinha gosto pelas cerimônias litúrgicas espetacularizadas e as utilizava para afirmação do seu poder. Do mesmo modo, sabia usufruir com requintes “as flores adocicadas” que o claustro é capaz de fornecer. Além de Madre Paula, sabe-se da existência de outra freira do mesmo convento que foi amante do rei: Madalena de Miranda. Com ambas o rei teve filhos, os quais foram reconhecidos após sua morte. Um deles se tornou arcebispo de Braga; o outro, inquisidor-geral do Reino. Coisas da Igreja e da monarquia portuguesa que um reles turista não compreende muito bem, mas, nem por isso, deixa de usufruir com prazer.