quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Santa Inês em chamas


O rapaz era zen budista e estávamos conversando num café, numa sessão de lançamento de livro, aqui em Santa Maria. Falávamos sobre religiões, a respeito do filme do Scorsese, “Silêncio”, que trata da introdução do Cristianismo no Japão, por jesuítas portugueses. De repente, ele diz que os cristãos carregam no peito um símbolo de tortura e não se dão conta disso. Sorrio (acho que sorrio) e penso (mas não chego a falar) que não é bem assim.

Penso que talvez a maioria dos cristãos não tenha clareza quanto a cruz ser um instrumento de tortura do tempo do Império Romano. Mas que sabem, sim, que carregam no peito a sombra de um martírio, os ecos de um sacrifício. Afinal, essa referência ao martírio, ao sacrifício, isso é uma obrigação do cristão.

No entanto, não disse nada disso. Ou não falei com essa ênfase. Era conversa de café. O rapaz só queria dizer que o cristianismo tem esse aspecto mórbido, de apego a um símbolo de sofrimento e por isso ele era zen budista. Eu não quis aprofundar o assunto e falei, vagamente, que o martírio é central na história da Cristandade. Taí o filme do Scorsese, o drama de seus personagens missionários, que não me deixa mentir, e trocamos de assunto.

Mas saí do café pensando no tema. Lembrando. Estive na igreja de Santa Inês (Sant’Agnese in Agone), em Roma, no mês de outubro, e fui tocado pela história de martírio da santa.

Estava sentado num banco da igreja, na nave central, e sorvia a magnífica luz do ambiente. A igreja tem forma circular, com uma cúpula enorme abrigando a nave central, e aberturas muito grandes, no alto, que proporcionam uma luz abundante. Era o final de um dia de outono e a luz era suave, quase divina. Eu tinha um folheto da igreja nas mãos (em espanhol) e seguia com os olhos as esculturas, os relevos e as pinturas do entorno. Estava embevecido.

De repente, fui capturado pela escultura de Santa Inês entre as chamas. Uma escultura do século XVII, barroca, num altar lateral. A jovem Inês (13 anos, segundo a tradição) era uma aristocrata do tempo do Império Romano e foi jogada numa grande fogueira, condenada por ser cristã. A escultura representa justamente esse momento. A santa com uma expressão serena, sublime, num momento de extrema dor, vivendo a sua cruz. O fogo não foi capaz de matá-la e um soldado a golpeou no pescoço com uma espada. O ano era o de 304, segundo a tradição.

"Santa Inês em chamas", de Ercole Ferrata.
Naquela hora, no centro da igreja de Santa Inês, fui banhado pela agonia da jovem romana. Pelo seu martírio. Ela se negou à vida profana, a um casamento com um jovem aristocrata e disse ao rapaz que amava alguém “muito mais nobre e de melhor linhagem” (Cristo).

A jovem Inês morreu por conta disso. Recusou um pretendente nobre e foi posta à prova. Obrigada a prestar homenagem aos deuses romanos, afirmou a sua fé cristã e as autoridades a condenaram. A igreja foi construída no local do martírio.

Saí desse templo católico cansado e fiquei por um tempo sentado na Piazza Navona (em frente da igreja). Era entardecer e depois fui caminhar pela cidade até noite adentro. E beber vinho também. Certo de que tinha vivido uma das experiências que Roma sabe proporcionar: a de nos colocar no centro do mundo. Ou, no caso, no centro da Cristandade.

E talvez fosse isso que eu gostaria de dizer ao meu interlocutor zen budista: o fascínio pelo martírio está no eixo do Cristianismo tradicional. Por isso a Cruz, a terrível Cruz, símbolo da tortura que Cristo sofreu e que os santos procuraram simular. E as igrejas católicas romanas, as barrocas especialmente, são pródigas em abordar e exaltar esse assunto. E abordar com um requinte artístico e uma sensualidade que acredito não poder vivenciar em nenhum outro lugar.

Mas isso não dava para falar num café. Talvez apenas numa crônica. Uma estranha crônica de viagem. Dessas em que o viajante relembra as suas visitas às igrejas e procura reviver as emoções provocadas pela grandeza desses templos. Os templos romanos, no caso. Especialmente os barrocos, plenos de representações artísticas do sofrimento sublime vivido pelos santos – Santa Inês, Santa Teresa de Ávila – centrais na história da Cristandade, centrais na nossa tradição ocidental.


Obs.: além do folheto da igreja, conferi informações sobre Santa Inês no livro clássico da hagiografia, escrito no século XIII, por Jacopo de Varazze: Legenda áurea: vida dos santos (Companhia das Letras, 2003, 1.040 p.).

domingo, 8 de dezembro de 2019

A estátua do imperador Constantino


Passei um mês na Europa e ainda estou procurando entender o que vivi. Andei por Roma, Paris e Lisboa, e cada cidade descortinou um universo diferente. Cada cidade um perfil (na verdade, vários perfis) e haja fôlego, paciência e inteligência para decifrá-los. Não chegarei a tanto, isto é, a distinguir as várias faces dessas cidades, mas vou tentando.

No pátio interno do Palazzo dei Conservatori (Palácio dos Conservadores, um dos dois prédios que formam os Museus Capitolinos, em Roma) encontrei a cabeça do imperador Constantino “encontrei” num pátio interno e levei um susto. A cabeça (2,5 metros), uma das mãos e outros fragmentos de uma estátua de mármore de 12 metros do imperador, construída no século IV.

Fragmentos da estátua de Constantino no Palazzo dei Conservatori.
O fundador da Cristandade “jogado” num pátio?, me perguntei. Uma reação exagerada, claro, mas justificável. Constantino foi o imperador romano que acabou de vez as perseguições e trouxe os cristãos para a órbita do Estado. O imperador percebeu que a religião cristã servia aos propósitos das reformas que vinha realizando, no sentido de centralizar a monarquia e não titubeou. O monoteísmo cristão servia como uma luva para a construção do poder absoluto no imperador (uma única divindade, um único soberano) e ele adotou essa visão de mundo.

Constantino não era um piedoso cristão e sim um estadista, o qual, diante da crise e anarquia vividas pelo Império, propôs a sua reestruturação política, administrativa, militar e também religiosa. Costumeiramente, os historiadores leem no rosto dessa estátua – nos grandes olhos, na expressão endurecida – a modulação rigorosa de um imperador que soube projetar o Império para o futuro, tendo o cristianismo como um dos seus pilares. E a Cristandade (o predomínio político-religioso da religião cristã) tem início no seu governo. Os primeiros passos da Igreja como instituição organizada e, décadas depois, seu estabelecimento como religião oficial do Estado romano.

E a famosa cabeça de Constantino, essa figura central para o mundo cristão, estava ali, no pátio do museu – aparentemente exibida sem destaque, como tanta coisa em Roma. Uma peculiaridade romana que tonteia um visitante como eu, embasbacado com a importância histórica dessa cidade e do seu acervo. Peças de valor inestimável – como a cabeça de Constantino (no pátio do Museu), o Discóbolo (no canto de uma sala do Museu do Vaticano), o “Repouso durante a fuga para o Egito”, de Caravaggio (numa simples parede do Palazzo Doria Pamphilj) – exibidas com alguma displicência, com um à vontade, que a chega a tontear.

Ao centro, "O repouso durante a fuga para o Egito", no Palazzo Doria Pamphily.
Mas isso é Roma, conclui. Uma cidade que abriga uma variedade tão grande de objetos e marcas e signos – a Roma dos imperadores, dos papas, dos Renascimento, do barroco, do neoclassicismo, do Risorgimento (para ficar apenas nas camadas que prenderam minha atenção) – que acaba não destacando apropriadamente cada uma delas e as apresentando simplesmente. Certas salas dos museus do Vaticano, dos Capitolinos, do Palácio Doria Pampihly me pareceram assim: com obras exibidas de qualquer maneira, num à vontade, uma naturalidade, que me espantou. Uma percepção exagerada da minha parte (nem sei explicar), talvez fruto da emoção com que vivi esse passeio, experimentando surpresas a cada momento.

A estátua de Constantino foi apenas a porta de entrada no acervo magnífico dos Museus Capitolinos. Uma sucessão de maravilhas, de histórias, de belezas, de deslumbramentos. Quando fui fazer um lanche no meio da tarde – um panini, um cálice de vinho – e encontrei algumas pombas sobre as mesas do restaurante, não estranhei. Elas estavam ali como a estátua de Constantino, a Vênus Capitolina, a Vênus Esquilina, e eu que convivesse – sem estardalhaço nem espanto – com a beleza e a graça que as caracterizam. Pois foi o que fiz – eu, um reles mortal, que teve sorte de cair naquele local.

Na lancheria do Palazzo dei Conservatori.

sábado, 30 de novembro de 2019

Galerias Lafayette


Fazem parte do roteiro turístico lugares que não são para o nosso bico. No Rio de Janeiro, certa vez, entrei no Copacabana Palace, me instalei numa das mesas do pergolado da piscina, tomei um cálice de vinho branco e me senti uma espécie de penetra. Mas só entrei por conta da insistência da minha companheira.

Fomos atendidos por um rapaz argentino que tinha curso de graduação em Arqueologia e acho que ele sacou que não pertencíamos àquele território. Nem por isso deixou de nos tratar bem e até disse que o vinho que eu pedira era uma boa escolha.

Então é esse o mundo dos bacanas?, pensei, lembrando a leitura de “Os Guinle: a história de uma dinastia”, um belo trabalho historiográfico a respeito dessa família que se expandiu a partir da exploração do porto de Santos, concessão adquirida no final do século XIX. Um dos rebentos da família resolveu investir na hotelaria de luxo e o resto faz parte do folclore glamuroso do Rio. Hoje o hotel não pertence mais aos Guinle, mas os novos donos mantem o charme do local.

Conto essa história porque na recente viagem a Paris também me aventurei num território que não é o meu: fui visitar as Galerias Lafayette, o templo da moda parisiense. Fui por insistência da Rose, minha companheira, claro, e acabei gostando. Nem sabia que as tais galerias existiam, pois, afinal, o que sei de produtos da Dior, Louis Vuitton, Saint Laurent e coisas do gênero?

Mesmo assim, com toda a minha ignorância a respeito do mundo da moda e do luxo, uma visita que valeu a pena. Vencido algum constrangimento, achei divertido flanar pelos corredores repletos de grifes famosas, olhar os preços e também as filas diante das lojas, filas de 10 a 15 pessoas, a maioria mulheres – algumas delas milionárias chinesas, essas figuras peculiares criadas pelo socialismo de mercado chinês.

E, diferente do que vivi no Copacabana Palace, não me senti um penetra. Provavelmente porque ali os simples visitantes (isto é, aqueles que não são consumidores potenciais) estão previstos na dinâmica da casa. Para visitar a famosa cúpula (ver fotos abaixo) há uma plataforma que avança pelo espaço, um local para a fila, um funcionário administrando os visitantes e batendo palmas quando termina o tempo da visita. Talvez o mesmo período de tempo permitido pelos guardas do Louvre aos visitantes da “Mona Lisa”. Deleite-se, mas com tempo marcado.

Seja como for, um espetáculo que enche os olhos, não custa nada nem se paga ingresso, como escreveu uma jornalista de turismo que leio regularmente.

Espaço interno da cúpula das galerias, com a plataforma para visitantes.

A plataforma com os visitantes extasiados.
Na primeira vez que fui às Galerias, fiz o roteiro de praxe (entrar no plataforma, tirar fotos) e depois sentei num café no entorno para apreciar melhor a cúpula secular e a infinidade de “lojinhas”, o território pujante do consumo de luxo. Não houve jeito de não lembrar de um filósofo contemporâneo se referindo ao capitalismo como um extraordinário sistema de produção de riquezas – mas também de misérias. No caso, porém, eu estava apenas diante das riquezas. Um grande espetáculo, a Paris dos cartões postais, da moda e do esplendor (como nos tempos do Rei Sol, exagerando).
Observando atentamente o local, minha companheira comentou que nunca vira tanta gente vestida de grife por metro quadrado. E não qualquer grife, mas as mais caras. Achei a observação ótima, talvez a síntese das Galerias ou, ao menos, dos seus personagens principais, os consumidores potenciais. Um território fascinante, distante do bolso da maioria dos turistas, mas nem por isso descartável num roteiro parisiense. Quem sabe o tipo de local que muitos de nós procuram quando viajam ao exterior. O território das fotos deslumbrantes das revistas, das reportagens de TV, que nós vemos sentados no sofá da sala de casa e nos perguntamos: será que existe? 

sábado, 23 de novembro de 2019

O Palácio de Versalhes e o Petit Trianon


Visitei o Palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, no mês passado, e o passeio ainda não me saiu da cabeça. Fiquei mais de duas horas na fila, debaixo da chuva fina, e talvez isso tenha colaborado. Que expectativa! Me senti personagem de filme, naquelas cenas onde a plebe ignara se comprime diante das grades do Palácio Real e olha (furiosa, indignada e cheia de inveja) a riqueza e o luxo dos poderosos.

Quando entrei no palácio, no entanto, errei o caminho. Cabeça formada pelo cinema, disse para a minha companheira que fossemos pela porta central (atravessando o Pátio de Mármore) e ela aceitou. No seriado que vimos no Netflix, “Versalhes”, é por ali que o rei entrava... Mas isso no seriado. Na verdade, os aposentos reais estavam à direita (Ala Norte), os aposentos, a capela e a famosa Galeria dos Espelhos. E o que nos pareceu a principal porta de ingresso é uma porta que conduz aos quartos das princesas (menos impactante que as salas das alas norte e sul) e não o melhor percurso para iniciar a visita.

Pois é, cometi um erro típico de quem tem a cabeça formada pelo cinema (isto é, que tem mais presente na memória os filmes do que os livros de História) e me dei mal. Mas logo acertei o passo, encontrei o roteiro certo e o palácio se revelou na sua grandeza. É de encher os olhos. O absolutismo monárquico era mesmo tudo o que diziam. Luís XIV e seus sucessores sugaram as energias da nação, construíram maravilhas e o Terceiro Estado teve todas as razões do mundo para se rebelar.

Mas pularei a parte do palácio (sobre o qual escrevi na crônica anterior e a respeito do qual há muito mais a falar) e irei para os jardins. Se um dia tiver a oportunidade de visitar novamente Versalhes, darei mais tempo aos jardins.

Caminhei do Parterre das Águas (os lagos logo atrás do palácio) até o Petit Trianon (a residência particular de Maria Antonieta) e me senti realizado. Havia caixas de som escondidas entre os arbustos e elas enchiam o ar de uma música solene, com muito som de metais, que imaginei serem do repertório de Haendel (o compositor de "Música Aquática" e "Música para os Fogos de Artifício Reais"), mas posso estar enganado. Seja como for eram músicas adequadas para compor cenas majestosas, dessas que o Rei Sol protagonizava nos jardins.

Alameda central dos Jardins de Versalhes. Ao fundo, o Palácio.
Nessa hora, andando pelos jardins do Palácio, era a imaginação que me guiava. Estávamos na Fonte de Latona e convidei minha companheira para sairmos da alameda central e nos enfiarmos pelos corredores laterais, como talvez fizessem os aristocratas do passado. Avançamos por esses caminhos, de alamedas cercadas por árvores (onde a música desaparecia e o número de visitantes também) e ela me perguntou se eu sabia o caminho. Eu disse que não, mas que encontraríamos. Era um jardim francês (da França racionalista de Racine, pensei, e não um labirinto para iniciados), e o caminho iria surgir. Surgiu.

Continuava caindo uma chuva fina e talvez por isso as alamedas laterais estavam vazias e só se ouvia o farfalhar das folhas. Tive a impressão de ver a Condessa de Lafayette (autora de “A Princesa de Clèves”) conversando com Molière... mas isso na certa nunca aconteceu. Pura imaginação. Eles foram contemporâneos (ao menos nasceram no século XVII), mas brilharam no mundo literário em períodos distintos.

Minha companheira e eu andamos até o Petit Trianon, entramos no “pequeno château” pouco antes dele fechar (a funcionária nos avisando para entrarmos logo) e foi o melhor momento do dia. Uma dessas coisas que a gente vive e não sabe explicar. Pequenos momentos de satisfação, talvez de encontro com alguma fantasia, sei lá.

Olhei para minha companheira e tive certeza de que ela estava contente. Comparado com Versalhes (mas só comparado, como se vê na foto abaixo), o Petit Trianon é modesto e aconchegante (não tão cerimonial como o Palácio Real) e acho que é isso que encanta. 

Uma das salas do Petit Trianon.
Naquele momento, tivemos a impressão de estarmos no cenário dos amores privados de uma rainha que era obrigada a se sujeitar a um casamento político. O território, o ambiente e o climão das cenas de histórias de rainha que sempre nos fascinam.
Jardim privado do Petit Trianon.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A vitrina da França de Luís XIV


É com a expressão acima que o historiador Jacques Wilhelm apresenta o famoso palácio de Versalhes no seu livro “Paris no tempo do Rei Sol”. Nesse palácio, Luís XIV (que reinou entre os anos 1643 e 1715) concentrou o melhor das artes do seu tempo – em especial, o melhor do espetáculo, do cerimonial e da pompa.

Em torno de Versalhes e também da sua figura, Luís XIV fez girar o mundo francês. O Rei pretendia submeter a nobreza ao seu poder e, para isso, passou a abriga-la ao seu redor, primeiramente no Louvre, em Paris, e, quando isso não foi mais possível, num novo palácio, nos arredores da capital.

Deu certo. A nobreza passou a gravitar em torno do Rei e o mundo do espetáculo, das artes e do cerimonial foram instrumentos importantes para dominar esse setor social que representava o maior obstáculo para a consolidação do poder da monarquia. Como o Rei escreveu mais tarde (em "Instruções ao Delfim"), o espetáculo é o melhor meio de prender o espírito e o coração das pessoas, melhor até que recompensas e favores.

Paralelo a essa política do espetáculo, o Rei expandiu a economia (por meio de forte dirigismo estatal), consolidou um poderoso exército profissional, promoveu inúmeras guerras e colocou a França como potência hegemônica na Europa. 

Escrevo as linhas acima como preâmbulo para falar do passeio que fiz recentemente a esse palácio. Fiquei mais de duas horas na fila, às vezes debaixo de uma chuva fina, e creio que foi essa memória glamurosa da França – a da centralidade da arte e do refinamento – que me reteve ali. Quando, ao final, entrei no palácio, devo confessar que fiquei impactado negativamente e não sei precisar o que foi. Talvez a precariedade de algumas salas, a ausência de móveis... Demorei a lembrar que por ali passara o vendaval da Revolução de 1789, os saques, a transferência de importantes obras de artes (como a "Monalisa") e até o leilão de objetos variados para financiar as tropas revolucionárias.

A Revolução Francesa é o nosso paradigma de ruptura violenta da ordem sociopolítica e ali o Antigo Regime foi destruído a marteladas e golpes de guilhotina. Em Portugal a mesma mudança se deu de forma menos violenta e isso se vê no estado do Palácio de Queluz (construído a partir do modelo francês), muito melhor conservado.

Por momentos, então, senti saudade da minha visita a Queluz – menos grandioso, quase modesto se comparado a Versalhes, mas com muitos móveis e objetos que remontam ao período em que foi construído. Com uma cara muito mais simpática, arrisco dizer.

Engraçado o que um turista sente visitando os espaços privilegiados da História. Em Versalhes, quis encontrar o fausto do Antigo Regime e senti, em primeiro lugar, os ecos da Revolução que desmantelou essa estrutura de dominação construída pelo Rei Sol. Custei para perceber os vestígios da antiga pompa imperial – a vitrina da França tão meticulosamente construída por Luís XIV, como citei no início da crônica.

Mas percebi, claro, a grandiosidade da obra – curiosamente, não na famosa Sala dos Espelhos, mas na chamada Sala de Hércules. Entrei e a pintura do teto ("Apoteose de Hércules") puxou meus olhos: o famoso herói grego numa carruagem, no espaço etéreo, com a famosa clava na mão. Virei para uma das paredes e novamente um enorme quadro capturou minha atenção: um grandioso Veronese representando uma cena bíblica: “A ceia na casa de Simão” – Cristo sentado diante de uma mesa, uma perna estirada para o lado e uma mulher ajoelhada junto a ele, lavando o seu pé e secando-o com seus cabelos.

Fiquei encantado. A recriação de cenas das mitologias greco-romana e cristã com muita pompa e circunstância me pegaram. Tudo grandioso e teatral, como mandava o figurino. Espetáculo para prender o espírito e o coração da elite francesa (nobreza, alto clero, alta burguesia) e até de latino-americanos que se aventuram no espaço europeu. 

Sala de Hércules, com a pintura no teto, de Lemoyne, que dá nome ao local.


Quadro de Veronese: "A ceia na casa de Simão".

Detalhe do quadro de Veronese: uma mulher lava e seca os pés de Cristo.


Só a visita dessa sala valeu o passeio. Da minha perspectiva, estava comprovada intenção do Rei: um palácio para embasbacar, seduzir, ganhar corações & mentes. Não sem razão a multidão plebeia fica horas na fila para visitar o palácio, mesmo debaixo de chuva.




Observação: O quadro de Veronese foi presente da República de Veneza a Luís XIV, mas só foi colocado nessa sala pelo seu sucessor, Luís XV, quando foi concluída a pintura do teto (1736), feita por François Lemoyne. Como se vê, um espaço finalizado no reinado do sucessor do Rei Sol. Mesmo assim não retiro o que escrevi: foi nessa sala, diante dessas obras, que vivenciei a grandeza da “vitrina da França de Luís XIV”. Nossas emoções (ou as emoções de um reles turista) nem sempre batem com o rigor dos registros da História.

sábado, 2 de novembro de 2019

Na Piazza della Rotonda


Desconfiava que a recente estadia que passei em Roma pudesse ser impactante... e foi. Passei dezessete dias na chamada Cidade Eterna e tenho a impressão de que ocorreu de tudo. Um exagero, claro. Nenhum acontecimento extraordinário, mas, ao mesmo tempo, experiências raras, ricas de emoção.

Uma tarde, sentado no degrau de uma casa na Piazza della Rotonda (a praça na qual se encontra o antigo Panteão romano, construído pelo imperador Adriano), observava o movimento dos turistas e acompanhei a chegada de um rapaz paraplégico numa cadeira de rodas. Ele vinha acompanhado por quatro mulheres, alegres e falantes, e parecia apresentar algum retardo mental. Tinha os movimentos das mãos e da cabeça travados e logo as mulheres posicionaram a sua cadeira para que ele apreciasse o monumento. Ao arrumarem a cadeira, o rapaz virou a cabeça para mim, sorriu e pude perceber a sua felicidade. Estava radiante. Tanto quanto eu, estava feliz.


Tive a impressão de entende-lo e também a de que ele me compreendia. Ou, ao menos, que sintonizávamos na mesma emoção (cada um ao seu modo), o sentimento prazeroso de estar em Roma, naquela praça, diante de um dos cartões postais da cidade, diante de uma das grandes realizações do Império Romano e assim por diante.

As mulheres continuavam falando entre si, rindo, enquanto o rapaz gesticulava, mexia a cabeça, não dizia uma palavra (acho que não falava) e parecia estar em êxtase. Deslumbrado, pensei eu, tão deslumbrado quanto eu ao contemplar o antigo templo romano, transformado em igreja católica, transformado em ponto turístico.

É a esse tipo de experiência que me referi no início da crônica. Nada de grandioso, de extraordinário, mas uma experiência simples, comum, e ao mesmo tempo profunda, arrasadora, de amplitude colossal.

Não era a primeira vez que eu estava em Roma nem a primeira vez que vinha até a Piazza della Rotonda visitar o Panteão. Nessa temporada romana, o Panteão estava no meu roteiro e várias vezes cruzei pela praça, em diferentes horários do dia e da noite.

Às vezes nem entrava no templo e ficava apenas na praça, sentado nos degraus da fonte ou, como naquela tarde, no degrau de uma porta. E, justo nessa tarde, o encontro com o paraplégico, um encontro sem palavras, apenas de olhares e sorrisos. Um pequeno grande momento.

Tenho a impressão de que o imperador Adriano compreenderia – ou, ao menos, o imperador recriado por Marguerite Yourcenar no seu romance Memórias de Adriano (livro que um dia dei de presente para minha mãe).

Minha estadia em Roma foi assim, marcada por esse tipo de vivência. Momentos muito ricos de emoção. Coisas de um turista atrapalhado (com enormes limitações na compreensão da língua italiana), um turista que foi professor de História e, principalmente, que foi um menino que achava que Roma era o centro do mundo.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Roma Antiga & infância


Meninos gostam de histórias de guerra. Eu gostava. Meninos desconhecem a crueldade das batalhas e veem apenas a coragem, a ação, a habilidade com as armas. Eu era assim. Meninos são assim.

Legionários em campanha militar. Coluna de Trajano.
Guri nos meados dos anos 60, eu frequentava as matinês com meu pai todos os finais de semana e os filmes ambientados no Mundo Antigo estavam entre os preferidos. Por meio deles eu tomava conhecimento dos Argonautas, de Rômulo & Remo e da expansão do Império Romano. Quando o filme terminava, voltávamos a pé para casa, e eu cravava meu pai de perguntas. Queria saber mais. Principalmente se o tema nas telas fora a história romana.

Numa dessas conversas, ouvi pela primeira vez a respeito do combate entre os irmãos Horácios e os irmãos Curiáceos. Um episódio que aconteceu no tempo em que Roma ainda era um povoado de pastores, no governo de Túlio Ostílio, o terceiro rei romano.

Túlio Ostílio declarou guerra a Alba Longa e enfileirou seus soldados diante das tropas inimigas. Os dois reis conversaram e estabeleceram que os seus campeões decidiriam o resultado do confronto. Da parte de Roma, se apresentaram os três irmãos Horácios; de Alba Longa, os três irmãos Curiáceos; e iniciou a luta. A briga foi violenta e ao final restou apenas um Horácio. Roma venceu.

A história tem mais detalhes, mas o essencial é esse: restou apenas o campeão romano, os guerreiros de Alba Longa ficaram mortos no campo de batalha. Alba Longa foi destruída e a sua população incorporada à romana.

Relembro essa história lendária e revivo as emoções do menino que eu fui. Que gostava de histórias de guerra, que não sabia o que era crueldade, que não entendia a complexidade humana. Apenas um menino, com a pureza e a ignorância típicas da infância saudável.

Depois aprendi que essa fórmula narrativa - centrada nos heróis - é apenas um modo de contar a história. Os acontecimentos político-sociais, as guerras inclusive, não cabem em esquemas tão simples. Principalmente, entendi a respeito da crueldade humana e minha compreensão do mundo mudou.

Meninos, no entanto, não entendem nada disso. Meninos gostam de histórias de guerra. Gostam de lendas e heróis, simples e brutais. Eu gostava. Muitas delas aprendi com meu pai, conversando sobre cinema.

Às vésperas de embarcar para Roma e passar nessa cidade duas semanas, reencontro essa história lendária a respeito da Roma Antiga e me emociono. Revivo o entusiasmo do menino que eu fui. Revejo uma das tantas camadas de história que a Roma atual é capaz de proporcionar aos seus visitantes - as ruínas do Monte Palatino, por exemplo, o local da primitiva Roma dos pastores - e tremo de emoção. Uma explosão de emoções conflitantes. A sedutora possibilidade de reencontrar o menino, a infância, o pai.

sábado, 14 de setembro de 2019

Visita ao campus


Fui ao campus da UFSM dias atrás (precisava de um documento do setor de pagamentos, na Reitoria) e escrevo para registrar essa visita. As universidades federais passam por cortes de verbas bastante rigorosos e foi nisso que pensei o tempo inteiro. Na Reitoria, fui atendido por um rapaz que desconfiei fosse um estudante bolsista e perguntei a respeito. Ele respondeu que sim e acrescentou que cursava Tecnologia de Alimentos.  

Depois que me atendeu, conversamos a respeito da universidade e ele disse que os laboratórios do curso já estão com o funcionamento prejudicado por conta dos cortes orçamentários. Falou sem indignação e imaginei que as precariedades do sistema educacional brasileiro não abatem o seu ânimo. Está calejado ou (hipótese mais provável) está muito satisfeito com a sua condição de aluno de um curso que entende que o prepara para um futuro promissor. Falou da indústria de alimentação em crescimento, da necessidade de profissionais qualificados e deu a entender que se imagina um desses profissionais.

Um rapaz otimista, um rapaz preparado para a dureza do mundo, pensei, que talvez o governo – com o seu projeto de desmantelamento da universidade pública como a conhecemos – não consiga esmorecer.

Mas isso não acontece com todos. O custo humano da política governamental – suspendendo concessão de novas bolsas para alunos de pós-graduação, por exemplo – já se faz sentir, ceifando projetos e sonhos. Semanas atrás, soube de uma estudante que foi classificada em um programa de mestrado, iniciou o curso, contava com a concessão da bolsa devido à sua pontuação, mas foi informada que novas bolsas não serão concedidas.

Conheço essa situação muito bem, vivi algo parecido em 1990, com o Governo Collor. Ingressara no Mestrado em Letras, na PUC/RS, e também as bolsas foram suspensas. Cheguei a cursar as disciplinas dois meses, entusiasmadíssimo, mas logo a coordenação avisou que o Governo cortara as bolsas, recebi os boletos das mensalidades e cai fora.

Felizmente, nesse meu caso, a situação foi concertada um ano e meio depois. A coordenadora me chamou (sua secretária me ligou – telefonema inesquecível), o curso voltara a ter bolsas de estudo e retornei à sala de aula. Em dois anos conclui as disciplinas, realizei a pesquisa e defendi a dissertação. Um passo fundamental na minha trajetória profissional e também pessoal.

Hoje, não imagino o que possa acontecer com os estudantes que passam por situação semelhante, isto é, que vivem na carne a suspensão das bolsas e o aniquilamento de projetos arduamente construídos. Não sei qual será o desdobramento dessa política agressiva do Governo Bolsonaro em relação às universidades federais. É certo que a nova orientação econômica – excessivamente neoliberal – não tem interesse algum na expansão do ensino público superior. As notícias desses últimos dias apontam para um retorno da concessão de bolsas, mas apenas para os programas de pós-graduação com notas entre cinco e sete. Os cortes orçamentários, dessa maneira, passam a reconfigurar os programas de pós-graduação e a fazer os mestrados e doutorados dançarem a música do governo. E, em relação a juventude, fazem a garotada piar fino, calar projetos e sonhos, e replanejar suas vidas.

Voltei do campus melancólico, naquele dia. Não tive coragem de visitar meus antigos colegas e escrevo essa crônica para registrar esse momento de incertezas. Restou, porém, o consolo do otimismo do bolsista. Provavelmente o guri não está se deixando abater. É um forte, imagino, e só os fortes suportarão o vendaval neoliberal que vivemos.

Detalhe do mural "Quinhentos anos da invasão da América", de Juan Amoretti, nas paredes do CAL. Cena do massacre provocado pelo avanço da civilização europeia.

domingo, 18 de agosto de 2019

Na Basílica de São Francisco de Assis


Acordei lembrando a visita que fiz a Basílica de São Francisco, na cidade de Assis, dois anos atrás. Mais especificamente, na igreja superior da Basílica, onde se encontram os 28 painéis do ciclo “A vida de São Francisco”, feitos por Giotto por volta do ano de 1300. Uma experiência única, desses momentos inesquecíveis em que conseguimos entrar em sintonia com o lugar e as obras artísticas ali expostas.

Meu grupo chegou na Basílica no meio da tarde e fomos direto para a igreja inferior, onde se encontra o túmulo do santo. Havia missa naquele horário, muitos visitantes e peregrinos, uma balbúrdia de vozes e cantos, e não me senti bem. Lembrei dos afrescos de Giotto, consultei meu guia de viagem (Guia da Folha de S. Paulo) e tratei de enveredar para a igreja superior, que encontrei praticamente vazia, com uma luz suave, um silêncio enorme, e parece que a magia começou ali. 


Basílica de S. Francisco (ao fundo).


Procurei o primeiro painel da série e fui parando diante de cada um deles. São painéis muito narrativos, claríssimos na sua simplicidade, na sua beleza de alguma ingenuidade e composição rigorosa. Pinturas que não oferecem maiores complicações de compreender, sentir e se envolver. Fui observando um a um, gostando mais desse do que daquele (o de número 15, São Francisco fazendo sermão aos pássaros, é belíssimo) até que cheguei ao de número de 19, o do Monte Alverne.

Seguindo painel por painel, tive a impressão de que chegara ao clímax da narrativa criada por Giotto: o santo ajoelhado no Monte Alverne e tendo a visão do Cristo sob a aparência de um serafim crucificado. Da imagem de Cristo partem raios diretamente aos pés e às mãos do santo e sabemos que é naquele momento que Francisco recebe os estigmas. O ápice da trajetória do santo: a imitação completa do sofrimento vivido por Cristo para a salvação dos homens.

Painel 19: S. Francisco no Monte Alverne.

Devo dizer que nessa hora fiquei profundamente emocionado e logo senti um grande cansaço. Uma emoção intensa, um cansaço bom – desses que vivemos quando cumprimos uma tarefa almejada. Nesse caso, a sensação de ter completado o percurso de um homem que foi criado desde menino dentro do imaginário cristão, que procurou compreendê-lo e que, de alguma maneira, chegou a uma compreensão mínima a respeito. Não um entendimento racional (este ainda estou procurando), mas um entendimento intuitivo e emocional sobre um dos elementos centrais da cultura cristã: o fascínio pelo sofrimento, pelo martírio, que tanto marcam a Cristandade.

A partir do painel 19, meu fôlego se esgotou e a muito custo continuei a visitação. O painel 20 aborda a morte do santo e fiquei dando passos entre um painel e outro, examinando cada detalhe, reexaminando, certo de que estava no coração da Cristandade.

Acordei hoje de manhã lembrando justamente desse momento: o da visitação ao painel de número 19, a emoção profunda e a sensação de ter alcançado alguma compreensão sobre uma dimensão da Cristandade (a sedução pelo martírio) que muito me intriga e atrai. E, ao relembrar esses momentos dois anos depois, me percebi distante do sofrimento de Francisco e da atração pelo martírio que tanto a Cristandade cultiva.

Ao constatar o quanto o martírio seduziu São Francisco de Assis e como ele conseguiu alcança-lo, me sinto – hoje – distante desse fenômeno central da Cristandade. Aliviado, devo concluir. E humildemente pronto a realizar as mesmas coisas de sempre, as mesmas coisas que fiz a vida inteira, sem o pesado fardo da culpa e da penitência. Ou, ao menos, com o peso do fardo diminuído.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Na Basílica da Santa Casa de Loreto


Sonhei que estava de volta a Basílica da Santa Casa de Loreto e caminhava pelo seu interior.

Essa basílica fica na Itália e a “Santa Casa” a que se refere é uma casa palestina, trazida no século XIII pelos Cruzados e depois instalada no alto de uma montanha, em Loreto. Uma casa que os cristãos medievais acreditavam ser aquela em que a Virgem Maria viveu e recebeu o anjo Gabriel.

Tornou-se um santuário mariano e em torno da pequena moradia (de uma peça só) foram colados grandes blocos de mármore (com duas portas de acesso ao interior da casa), ricamente trabalhados por escultores do Renascimento. Em torno disso tudo, construiu-se uma enorme basílica, com ricas pinturas no teto, mais diversas obras de arte por todos os cantos. Não há espaço que não seja decorado.

Visitei a basílica em fevereiro de 2017 e até então nada sabia a respeito. Segunda a lenda, foram os anjos que trouxeram a casa da Palestina. Uma lenda bonita, que contribui para a emoção da visita: a casa da Mãe se instala no alto de uma colina italiana, vindo de muito longe, da Palestina, trazida pelas mãos dos anjos.

Como é proibido tirar fotos dentro da igreja, coloco abaixo uma foto do exterior para dar a uma ideia da dimensão grandiosa do templo. E logo abaixo outras fotos, do chafariz em frente da igreja, com destaque para as figuras fantásticas e monstruosas – que, de certa forma, fazem um contraponto ao sublime que a igreja encerra. 







Mas o importante é dizer que sonhei com a basílica. Que caminhava pelo interior da igreja, dava a volta em torno da Santa Casa e uma voz me inquiria a respeito do que eu fazia ali. “Voltando ao princípio dos tempos”, eu respondia. Mas depois, acordado, com o pensamento sereno, reconheci que apenas voltava ao princípio de mim mesmo. Voltava ao território da Mãe – não a Mãe Celestial do panteão católico, mas aquela mãe que me proporcionou nascer e me criou. Me questionava a respeito do lugar que essa mulher, minha mãe, ocupa dentro de mim.

No sonho, eu caminhava em torno da Casa da Mãe e pensava sem aflição, feito um arqueólogo escavando a si próprio. Um arqueólogo em busca da sua Tróia, o local mítico da própria fundação. Lugar de conflitos, embates sangrentos - território do Pai e da Mãe -, e que um dia adquire uma estranha paz, a almejada paz das paisagens bucólicas. A paz desejada e nunca, completamente, compreendida e aceita.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Paisagem fluvial

           Passei uma semana em Porto Alegre e todos os dias gastava um tempo olhando o Guaíba da janela do quarto do hotel – paisagem que está registrada na foto abaixo.



No primeiro dia avistei três rebocadores ancorados no cais e diversas vezes procurei as chatas que costumavam ficar estacionadas ao longo do rio. Chatas, para quem não sabe (me disseram que não são mais utilizadas), são navios exclusivamente de carga, sem motores, e que precisam de rebocadores para se locomover. As chatas eram utilizadas para transporte de areia e brita na Lagoa dos Patos, entre as cidades de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, ao menos até os anos 70 do século passado.

Um tio avô era maquinista em um rebocador, vivia fazendo essas viagens (trazendo e levando chatas) e o que sei a respeito desse assunto ouvi ele contar. Era calado esse meu tio avô (irmão da minha avó materna) e não deve ter me contado muita coisa. Sujeito de poucas palavras, magro, a pele curtida pelo calor das máquinas, do sol e do vento da lagoa, fazia um tipo de lobo do mar (ou de lagoa, para ser mais preciso) que agradou ao guri de 14 anos que eu era quando naveguei com ele.

Isso foi no final dos anos 60, em 1969 ou 70. A minha família morava em Porto Alegre e esse tio costumava nos visitar quando aportava na Capital. Uma noite, o pai e ele estavam conversando na sala (provavelmente bebendo conhaque Dreher, a TV desligada) e lá pelas tantas me chamaram e perguntaram se eu queria viajar de navio até Pelotas. Aceitei, claro

Depois soube que fora ideia do meu pai, que bem sabia que aquela seria uma experiência única para o guri de apartamento que eu havia me transformado. No outro dia de manhã bem cedo, eu estava numa pracinha que fica na beira do cais, esperando meu tio. Naquele tempo o Muro da Mauá ainda não fora construído e era possível chegar até cais e seus armazéns. Meu tio chegou, me avistou no local combinado e me chamou para embarcarmos no rebocador. Ele era o chefe do setor das máquinas, tinha uma cabine própria e foi nessa cabine que me instalei.

Foi uma viagem e tanto. O rebocador manobrou no Guaíba, estendeu os cabos de aço até a primeira chata (eram duas, a outra ficava presa igualmente por cabos de aço a da frente) e fomos na direção de Pelotas. Navegamos o dia inteiro, pegamos um temporal no meio da noite e nem sei que horas chegamos. Eu dormia quando o navio aportou e, quando subi ao convés, estava amanhecendo. Um amanhecer de nuvens avermelhadas, nada parecido com “a aurora dos dedos róseos” dos poemas dos livros escolares, e fiquei maravilhado. Uma aurora sangrenta, com o vermelho do céu refletido nas águas do Canal São Gonçalo. Peguei minha sacola, avisei o marujo que estava de guarda (acho que é assim que se diz) e fui caminhando pela zona do porto até a casa dos meus avós maternos.

Lembrei disso olhando o Guaíba da janela do hotel, em Porto Alegre, na semana passada. Os rebocadores estavam lá, parecidos com aquele em que viajei no final dos anos 60, mas não avistei as chatas. O transporte fluvial deve ter mudado muito nesses mais de 40 anos e pouco sei a respeito disso. Meu tio avô morreu, meu pai morreu, mas a paisagem do Guaíba me indica que toda essa paisagem fluvial – daqui até o Canal São Gonçalo, até o Canal do Rio Grande – ainda é capaz de maravilhamentos. Basta olhar, olhar com os olhos da imaginação.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Canta, ó Musa, o amor de Tétis, mãe de Aquiles


Li a Ilíada dias atrás e fiquei surpreso com uma cena logo nas primeiras páginas. Uma cena que não lembrava – ou que talvez nunca tenha me dado conta.

Após a conhecida discussão de Aquiles com Agamenon na assembleia dos guerreiros, na qual Aquiles perde para o seu correligionário a escrava Briseis, o herói se retira furioso para junto dos navios. Solitário, ele se senta “chorando junto à praia do cinzento mar”, estende os braços e dirige “muitas preces a sua querida mãe”.

Nunca tinha lido a Ilíada do início ao fim, mas conhecia diversos trechos (o primeiro canto, entre eles, onde se encontra a cena acima). No entanto não lembrava do herói derramando lágrimas e chamando a mãe:

– “Mãe, já que me tiveste, por mais breve que a minha vida possa ser, pelo menos a honra Zeus troante deve me ter concedido. Agora, porém, não me está honrando, de modo algum, pois o filho de Atreu [Agamenon], o rei dos homens, ultrajou-me. Tomou minha presa de guerra [Briseis] e a conserva.”

Tétis, sua mãe (uma nereida que vive no fundo do mar), o escuta e vem correndo sentar-se ao seu lado, dizendo:

– “Por que choras, meu filho? Que dor te atormenta o coração? Fala, nada escondas em teu espírito, a fim de que nós possamos saber.”

Aquiles se queixa para a mãe, fala mal de Agamenon e pede que ela o ajude a se vingar. Tétis não titubeia em atender ao filho, vai buzuzar nos ouvidos de Zeus e o resto é bem conhecido: Zeus faz a guerra virar a favor dos troianos, faz os aqueus sofrerem duras perdas humanas e Agamenon se arrepender da sua loucura contra a honra de Aquiles dos pés ligeiros.

Eu não lembrava, porém, da presença fundamental da mãe na vida de Aquiles, o mais destemido e cruel dos guerreiros. Espanto talvez seja compreensível. Afinal, no entendimento habitual que temos dos heróis, estes são solitários, movem-se sem família, e até as mães não costumam ser presentes e muito menos decisivas. E, jamais, os heróis suplicam qualquer coisa para as mães. Ora, pedir arrego para a madrecita!

No final do poema, quando Aquiles resolve voltar a lutar, novamente a mãe intervém de forma marcante. Aquiles está sem armadura e é a mãe quem providencia uma nova. A antiga fora usada por Pátroclo e, quando este foi morto por Heitor, o grande guerreiro troiano a pegou como troféu. Tétis consegue que o deus Hefesto produza uma nova de um dia para o outro e a traz para o filho.

– “Recebe esta gloriosa armadura de Hefesto: a mais bela, tal como um homem jamais trouxe sobre os ombros. (...) Convoca os guerreiros aqueus em uma assembleia, renuncia ao teu rancor contra Agamenon, pastor do povo, e arma-te, sem demora, para a guerra, revestindo-te de valor.” (Livro XIX)

 É uma figura com voz e protagonismo a madrecita de Aquiles, o herói que tanto serviu de modelo de coragem e de masculinidade na civilização greco-romano. O destemido guerreiro, arrogante e cruel (modelo para Alexandre, o Grande, conquistador da Pérsia), não escapou de uma mãe constante e devotada. (Não escapou ou teve o privilégio - faça sua escolha, prezado leitor.) E Homero, sempre humano, “demasiadamente humano” como apontam os estudiosos, não esqueceu disso.

Procurei no Google alguma obra de arte representando Tétis consolando o filho logo depois dele desentender-se com Agamenon, mas não encontrei. As cenas de Tétis e Aquiles mais tematizadas nas artes plásticas (ou mais presentes no Google) são as do banho na infância do herói e a da entrega da armadura de Hefestos. Escolhi essa última para ilustrar a crônica: o quadro de um pintor neoclássico, Benjamin West (desconhecido para mim).

É uma cena dramática e solene: Aquiles chora o amigo morto em combate (Pátroclo) e sua linda mãe (linda demais, jovem demais para ser mãe de um guapo mancebo) lhe traz a armadura e o exorta ao combate. "Canta, ó Musa, o amor de Tétis, mãe de Aquiles", compus na hora, "o amor que tanta alegria trouxe ao mais destemido dos aqueus". 

Tétis entregando a armadura a Aquiles (1805), de Benjamin West.

A Ilíada é um poema sem fim, uma leitura que não termina. O texto que li dessa vez foi uma tradução em prosa, feita por Fernando C. de Araújo Gomes e publicada numa coleção da Folha de S. Paulo, “Clássicos da Literatura Universal” (Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. 426 p.) Ao final do livro, há uma nota explicando que o tradutor pretendeu um texto acessível ao leitor médio, “o leitor de certa cultura”, e para isso fugiu do “eruditismo excessivo”. Penso que a intenção do tradutor se concretizou e o leitor mediano que sou leu com prazer essa tradução. E de todos os dramas da “maior história de guerra do mundo” foi a relação de um filho com sua mãe o que mais se impôs na leitura. Tétis, certamente, bem merecia um poema só seu.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Sala Amarna, uma visita fascinante


A Sala Amarna, do Museu Egípcio (no Cairo), é de encher os olhos. Na verdade, é de revirar os olhos. Encher os olhos e o coração. Fiquei impactado.

A sala tem o nome da cidade criada pelo faraó Amenófis IV, do Novo Império, que, em função de sua devoção ao deus Aton, o Disco Solar, mudou o seu nome para Akhenaton. E também criou uma nova capital, Akhetaton, depois conhecida como Amarna (daí o nome da sala).

Amenófis tinha um projeto religioso revolucionário: a implantação de uma religião monoteísta, a transformação da religiosidade politeísta egípcia e, em especial, o fim do predomínio do culto a Amon, o fim do poder do clero de Amon (que competia com o poder dos faraós). Ao reformar a religiosidade egípcia, o faraó também pretendia a supremacia do poder real sobre novas bases, contendo não só os sacerdotes de Amon, mas também os militares (outro tradicional sustentáculo do poder real) que já se estendiam na Ásia Menor (na Palestina e Síria) e também na África (na Núbia e atual Sudão). Além de monoteísta, Akhenaton tinha um projeto pacifista (como se o poder de um império pudesse prescindir das armas). Seu projeto era religioso, político, e também ético e artístico. Era pretensão demais e os sacerdotes de Amon não tiveram dificuldade em conspirar e ganhar apoio da sociedade em geral para a retomada do poder. O faraó reinou 16 anos (de 1352 a 1336 a.C.) e se supõe que tenha sido assassinado.

Quando entrei na sala Amarna, o que chamou atenção foi a mudança no padrão artístico das peças, a transformação na representação do faraó - "as zigomas salientes, os olhos oblíquos, a boca sensual" - e de sua rainha. Depois de andar pelo museu, ver as tantas peças de faraós estáticos e hierárquicos, salta aos olhos a chamada “revolução naturalista” que Akhenaton desencadeou. A sala é um pouco confusa (como é, de modo geral, o museu inteiro), as peças estão exibidas de maneira um pouco caótica, mas nem por isso o impacto é menor. Uma grande estatua do faraó monopoliza a atenção (primeira foto abaixo) e logo sabemos que estamos diante dos registros de um reinado diferenciado dentro da civilização egípcia. Um faraó revolucionário e sua belíssima rainha, Nefertiti. A escultura da cabeça da rainha, de apenas 33 centímetros (segunda foto abaixo), me deixou maravilhado. Na sequência, uma pedra com o relevo do faraó, a rainha e as filhas adorando o Sol (terceira foto) e indicando o que talvez seja a síntese da reforma religiosa pretendida: a família real como agente principal da adoração de Aton e, dessa maneira, o vínculo entre a população egípcia e o mundo divino.

Uma sala do Museu do Cairo que é impossível esquecer.

Colosso de Akhenaton.

Cabeça de Nefertiti.


Relevo de Akhenaton, esposa e filhas adorando Aton, o disco solar.

Ao voltar da viagem, li o romance de Naguib Mahfuz, “Akhenaton, o rei herege”, que tinha guardado há anos. Também li uma peça teatral de Agatha Christie, “Akhenaton”, igualmente sobre o personagem central da Sala Amarna. Não procurei literatura especializada sobre o tema, isto é, material escrito por historiadores,  e me refestelei apenas com a produção dos ficcionistas.

Mahfuz registra diversas versões sobre o reinado do faraó e parece sintetizar o que existe sobre o tema. No seu romance, ambientado poucos anos após a morte de Akhenaton, um rapaz sai em busca da verdade a respeito do reinado recém encerrado e entrevista diversos personagens que tiveram contato com o faraó, inclusive a rainha Nefertiti. Por meio desse recurso (que não resulta num romance empolgante) o autor registra versões conflitantes a respeito do rei – inclusive a de que ele não manteve relações sexuais com a rainha, que as suas filhas são de amantes de Nefertiti (entre eles, o general Horemheb, grande amigo do faraó), e que ele apenas conseguiu transar com a mãe, a rainha Tyie, tendo uma filha com ela. O personagem investigador, no entanto, não se decide por nenhuma versão, não refuta as hipóteses conflitantes, e conclui afirmando seu "entusiasmo pelos hinos religiosos" de Akhenaton e seu "profundo amor pela belíssima senhora".

Na peça teatral de Agatha Christie, muito mais empolgante para o leitor de ficção, há conspiração, traição e envenenamento, e também algum romantismo. Além de dar concretude a propalada versão da conspiração dos sacerdotes de Amon e do assassinato do faraó, a famosa escritora apresenta uma Nefertiti amorosa, que não trai o marido nem o abandona quando sacerdotes e generais solapam o seu poder. Na versão da peça, Nefertitti até se suicida quando percebe que o faraó foi envenenado, como uma versão mais antiga da conhecida Cleópatra. Literariamente, a trama convence. Um bom final para quem se emocionou com as peças expostas na Sala Amarna e não consegue esquecer o seu impacto.



Livros citados:

MAHFUZ, Naguib. Akhenaton, o rei herege. Rio de Janeiro: Record, 2005. 222 p. (O autor recebeu o Prêmio Nobel da Literatura em 1988.)
CHRISTIE, Agatha. Akhenaton – uma peça em três atos. Porto Alegre: L&PM, 2018. 168 p. (Segundo informações da contracapa, a autora se baseou nas lendas que lhe foram contadas pelo arqueólogo Howard Carter.)

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Peregrinação ao Templo de Ísis

         Visitei o famoso Templo de Philae, dedicado a deusa Ísis, e me senti um peregrino – um peregrino do velho Império Romano –, vá entender uma coisa dessas. Coisa de professor de História, na certa.

O Templo, ou conjunto de templos, pois são vários prédios, com a mão de diversos faraós (especialmente da dinastia ptolemaica, mais imperadores romanos), foi construído a partir do século III a.C. e se tornou um grande centro de peregrinação no Mundo Antigo. O culto a Ísis ultrapassou as fronteiras do Egito, se expandiu pelo mundo greco-romano e chegou a competir com o nascente cristianismo. A devoção só se extinguiu com a proibição do imperador Justiniano, no ano 513. Padres cristãos ocuparam o lugar, tentaram apagar a imagem da deusa, mas a coisa não deu certo.

No início do século XX, o templo estava semicoberto pelas águas de uma represa e, na década de 1960, com a criação do Lago Nasser (para uma nova e maior represa), a UNESCO coordenou um projeto de desmontagem da construção e seu restabelecimento em outro local. O Templo de Philae, construído na ilha de Philae, foi reassentado em novo local, numa ilha próxima, especialmente preparada para isso. Uma obra de engenharia impressionante. O mesmo aconteceu com outros templos e túmulos da região – inclusive o complexo templário de Abu Simbel, dedicados ao faraó Ramsés II e a sua esposa favorita, Nefertari.

O Templo de Philae, visão lateral, do lago, quando se chega de barco.
Quando avistei o templo, de dentro da lancha que conduzia meu grupo para a visita, me senti um velho romano em peregrinação... Devo ter lido sobre o culto de Ísis quando era estudante universitário, no Curso de História da UFRGS... Os romanos se encantavam com as religiões orientais, capazes de responder à inquietações (especialmente em relação à morte) que a religião oficial não dava mais conta. Acho que foi nessa época de estudante também que um amigo (hoje falecido) passou a utilizar a expressão “queimar incenso no altar de Ísis” para todas as vezes que saia para namorar. Queimar incenso, incensar Ísis, a mulher, honrar e venerar o feminino. Na Antiguidade as deusas eram sexualizadas (muito diferente do que veio acontecer com as figuras femininas da cristandade) e tal expressão não era um sacrilégio, pelo contrário, era uma possiblidade da devoção religiosa. As deusas eram mulheres que viviam a sua sexualidade, muito ao contrário das divindades cristãs.

Assim, ao entrar no espaço do Templo de Ísis, não apenas realizei uma viagem ao Mundo Antigo, mas uma volta a minha própria história. Um peregrino trilhando diversos tempos, tanto o do período da crise do Império Romano desencadeada no final do século II d.C. (Toynbee era uma referência para esse assunto), quanto o da década de 1970, vivido de forma tumultuada pelo jovem estudante que eu era. Estudante que aprendia e se surpreendia com as divindades femininas da Antiguidade – Ishtar, Ísis, Diana, Afrodite – e a tremenda mudança que aconteceu com a vitória e supremacia do cristianismo.

Ísis era filha de Nut (Céu) e de Geb (Terra), irmã de Osíris, Seth e Néftis. Ísis e Osíris se casaram e desceram ao mundo dos homens para civiliza-los. Osíris separou os homens dos animais, ensinou-lhes as técnicas agrícolas, deu-lhes leis e foi seu primeiro monarca. O irmão Seth ficou enciumado (ele também queria governar o Egito) e terminou matando Osíris e retalhando o seu corpo em diversos pedaços (14, segundo algumas versões). Ísis recolheu as diversas partes do marido morto e conseguiu reavivar a sua força vital. Morto, Osíris fecundou Ísis - em grande parte, graças as artes mágicas da esposa - e depois renasceu no Mundo dos Mortos.

Uma história e tanto, com diversas versões – inclusive a de que Ísis não encontrou o pênis do marido (que fora engolido por um peixe das águas do Nilo) e a fecundação se deu exclusivamente devido aos seus poderes mágicos da deusa. Poderes, magia e artes (propiciatórias de renascimento) que depois seriam ensinados aos iniciados nos mistérios da religião de Ísis.

Percorri as diversas salas de complexo templário lembrando as tantas leituras a respeito do mito, a religião que daí surgiu, assim como o movimento dos peregrinos que vinham adorar a deusa, queimar incenso no seu altar. Os faraós da dinastia ptolemaica deram especial destaque a esse culto e ele se expandiu pelo mundo greco-romano, com templos na Grécia, em Roma e até na distante Lusitânia. Uma devoção que atraiu a atenção do historiador Plutarco, no século I d.C., e o levou a escrever uma compilação mito osiriano. As religiões orientais penetravam com força na sociedade romana – a de Ísis, Mitra, a de Cristo também – e nós bem sabemos qual saiu vencedora. Com o predomínio cristão o Templo de Philae foi fechado – assim como o Templo de Éfeso, dedicado a Diana, outra importante deusa da Antiguidade – e nunca mais o mundo ocidental cultuou divindades femininas com atributos sexuais tão evidentes. Que longa luta em torno do feminino!

Peregrino ou não (cansado de uma longa caminhada pelos espaços do templo), encontrei a melhor evidência da grandeza da deusa Ísis numa das salas do fundo. Esculpido numa parede, vi o relevo da deusa com o filho sobre as pernas, uma imagem terna, a da Deusa Mãe e o Filho Divino (Hórus), que ela conseguiu do marido morto graças a sua determinação e arte. Uma representação certamente precursora das Madonas com o Menino que a Cristandade, séculos mais tarde, consagrou. Uma imagem reveladora das transformações - e também da continuidade - do culto às divindades femininas. Uma imagem a indicar o sonho e o desejo de muitos de nós. Uma mulher que acolhe, uma mulher que incendeia. A imagem ideal para um peregrino. Me senti realizado.

Deusa Ísis e o Filho Hórus.