tag:blogger.com,1999:blog-83368703887301767362024-03-17T10:38:18.742-03:00A louca que passaVitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.comBlogger304125tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-79223351522159179292024-03-17T10:37:00.003-03:002024-03-17T10:37:42.508-03:00O avesso da pele<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As secretarias estaduais de Mato Grosso do Sul,
Goiás e Paraná afirmaram em nota que o romance <i>O avesso da pele</i>, de
Jeferson Tenório, apresenta “expressões impróprias” e, por este motivo,
recolheram o livro das escolas. A obra foi lançada em 2020, premiada pelo
Jabuti, e selecionada e distribuída pelo PNLD, do MEC, para alunos de Ensino
Médio. No Rio Grande do Sul também houve intenção de retirar o livro das salas
de aula, por parte de uma diretora de escola estadual, em Santa Cruz, mas o
governo estadual não endossou a iniciativa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No caso do Rio Grande do Sul, a professora Janaína
Venzon (a diretora de escola que se manifestou contra o livro) se justificou
com o argumento de que, “nesse momento que a gente vive”, é muito difícil
trabalhar uma obra com “esse vocabulário” com alunos menores de idade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Quem conhece a realidade escolar sabe que a
professora não está dizendo bobagem. A abordagem da sexualidade (seja com
palavras impróprias ou não) é capaz de causar reboliço numa escola e tontear a
vida de um professor. É preciso habilidade & coragem para encarar o
assunto. Não estou justificando a censura, apenas comentando a respeito do mundo
escolar. Por muito menos, uma novela juvenil de minha autoria (<i>Jorge
encontra Lilian</i>, publicada de modo independente) causou um fuzuê numa
escola de Ensino Fundamental. O personagem-narrador (a novela é escrita em
forma de diário) utiliza a palavra “felação”, a mãe de uma aluna ficou sabendo,
foi pra cima da diretora e a coordenadora pedagógica penou para justificar a adoção
do livro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A professora Janaína vive em Santa Cruz e, ao se
referir ao “momento em que a gente vive”, certamente está se referindo ao peso
do conservadorismo na cidade. Afinal, no segundo turno das eleições
presidenciais de 2022, Bolsonaro obteve 60,15% dos votos válidos e, na certa, o
moralismo rasteiro a que essa orientação política dá voz deve estar em alta. Assim,
se o tema da sexualidade (com linguagem impropria ou não, volto a insistir
nesse aspecto) já era complicado de abordar em sala de aula, com o bolsonarismo
a coisa ficou muito mais complicada. A defesa da “inocência das crianças e
adolescentes” é argumento que está na ponta da língua dessa gente e haja
paciência para aguentar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Dito isso, acrescento que li o romance quando foi
lançado e nem lembro das cenas de sexo nem da linguagem que o autor utiliza. O foco
da narrativa é o racismo, a violência policial, e isso (além da qualidade
literária do texto, claro) é o que importa. No ano do lançamento fiz uma
resenha do livro para o boletim do meu sindicato (SEDUFSM), que reproduzo a
seguir.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p></o:p></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDHgRuhyphenhyphenL8wVPNyVu6pUamyT_Hz9DxRT8bJacQAbic-CtRUbo7xuAKZLKzdVwcKf4welGL5_EdjU8JS8GhmCAXueogQUmQvkA4oRSnU5kaWssHNNWBOXxh_Hpz1gxHl4V6wdu_QaVinYWvflChwj_sg9BCoxiU5dy8sPzHHLxlJ-32D3qzT00GfbuHaTs_/s4065/DSCN5607-001.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="3105" data-original-width="4065" height="244" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDHgRuhyphenhyphenL8wVPNyVu6pUamyT_Hz9DxRT8bJacQAbic-CtRUbo7xuAKZLKzdVwcKf4welGL5_EdjU8JS8GhmCAXueogQUmQvkA4oRSnU5kaWssHNNWBOXxh_Hpz1gxHl4V6wdu_QaVinYWvflChwj_sg9BCoxiU5dy8sPzHHLxlJ-32D3qzT00GfbuHaTs_/s320/DSCN5607-001.JPG" width="320" /></a></div><br /> <span> </span><span> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;">A temática da negritude está em alta e o romance </span><i style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;">O
avesso da pele</i><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;">, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras, 2020, 188 páginas) a
atualiza no cenário sul-rio-grandense. Mais especificamente em Porto Alegre,
considerada a cidade mais racista do país, segundo o narrador. Um narrador
muito original, por sinal. Um personagem de 22 anos, negro e estudante de
Arquitetura (cotista, como ele próprio enfatiza) que se dirige ao pai
assassinado durante uma desastrada abordagem policial. Uma narrativa em segunda
pessoa com uma força impressionante, capaz de conquistar o leitor nas primeiras
linhas:</span><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele.
Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era o seu modo
de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a
mim.”<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O pai é um professor negro, nascido no Rio de
Janeiro em 1971, que se radicou em Porto Alegre por volta de 1980. Veio para o
sul com a mãe e as irmãs e foi morar na Vila Bom Jesus, na casa da avó. Sofreu
as agruras por que passam aqueles que têm a pele negra, mas só tomou
consciência do racismo quando foi aluno de Oliveira Silveira, num cursinho
pré-vestibular. Logo com Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do
Grupo Palmares (na década de 1970) e uma das principais expressões da poesia
que tematiza a negritude. Um professor, militante e poeta, que é referido
diversas vezes ao longo do romance, numa clara homenagem ao seu papel no
movimento negro (o Grupo Palmares foi quem primeiro propôs o dia 20 de novembro
como data da Consciência Negra).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pois o pai do narrador se faz um professor de
língua portuguesa nas escolas públicas da periferia de Porto Alegre e, após
vinte anos de magistério, se sente derrotado pelos adolescentes indisciplinados
aos quais se propõe a ensinar. É sobre esse pai, então, que o narrador se
debruça e o recompõe por meio da memória e da invenção. Um homem negro que foi
massacrado não só pelo racismo (em especial aquele que se manifesta nas
abordagens policiais), mas também pelo casamento (que se desfez após o
nascimento do filho e que não foi superado até o fim da vida) e pela atividade
no magistério público (o qual não lhe proporcionou a vida confortável que
sonhara). Um homem que muitas vezes se escondia nos próprios pensamentos e que
o filho vira ao avesso, num exercício doloroso de busca da sua humanidade. Uma
humanidade que está além da cor da pele e que seus assassinos policiais foram
incapazes de perceber. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">“Estou reconstituindo esta história para mim”,
afirma o narrador, o filho do pai morto. “Uma verdade inventada, capaz de me
pôr de pé.” O avesso daquela imagem de homem negro, com atitudes suspeitas, que
foi abordado por policiais do Batalhão de Operações Especiais, na periferia de
Porto Alegre.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-18496878659283621922024-03-14T11:10:00.003-03:002024-03-14T11:11:45.059-03:00Forte de Copacabana<p style="text-align: left;"> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Estive no Forte de Copacabana dias atrás. Além da
fortificação militar, há um conjunto de bares e restaurantes e até uma filial
da Confeitaria Colombo. Fui a confeitaria para tomar café com minha
companheira, depois de andar 60 minutos (cravados no relógio) pelo calçadão de Copacabana.
Após o café, subimos até a parte externa da cúpula dos canhões para olhar a cidade
e o mar. Uma vista e tanto. Com direito a tirar fotos e divagar a respeito da
paisagem, dos canhões... e das invasões estrangeiras ao território brasileiro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Estudante de Ginásio, fiquei fascinado pelas
histórias de piratas na região, em especial aquela comandada por Duguay-Troin,
em 1711, que ocupou a cidade por dois meses (e que li pela primeira vez num
livro do Rocha Pombo). Acho que depois desse episódio não houve outra tentativa
de invasão na baía da Guanabara e não sei qual o inimigo que os militares
brasileiros imaginaram quando instalaram quatro enormes canhões no forte, antes
da Primeira Guerra Mundial. Seja qual for, no entanto, uma obra monumental (das
maiores realizadas pela engenharia militar brasileira) e que logo se tornou
obsoleta devido ao avanço da indústria bélica proporcionada pela Guerra de
1914. (Grande Civilização Ocidental, nenhuma outra criou armas de destruição
tão eficazes como a nossa!)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Na hora (caminhando sobre a cúpula dos canhões)
disse para minha companheira que os canhões nunca dispararam contra um inimigo
estrangeiro. Nunca houve qualquer tentativa de invasão. Mas descobri depois que
os canhões foram utilizados para atingir um cruzador brasileiro na década de
1950. Um episódio estranho, mas corriqueiro na história da República brasileira,
de tentativa de golpe de estado liderado por forças conservadoras temerosas pelo
avanço de um líder progressista, e que passo a narrar a seguir (e convido o
leitor a prosseguir, caso ele tenha interesse a respeito dessas chatices da
história brasileira).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em novembro de 1955, governava o Brasil João Café Filho,
que assumira a presidência em agosto do ano anterior, devido ao suicídio de
Getúlio Vargas.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Café Filho foi conivente
com a oposição a Vargas (aquela mesma que o pressionou, pretendendo a sua
queda) e chamou vários políticos da UDN para ocupar ministérios no seu governo.
Isto, no entanto, não saciou a sede de poder dos udenistas. Contrariados pela
vitória de Juscelino Kubistchek nas eleições presidenciais (em outubro de 55),
a UDN e parte das Forças Armadas voltaram a tramar um golpe de estado. Café Filho
sentiu a pressão e caiu fora, isto é, inventou um problema de saúde e se
licenciou do cargo. (Recordo a professora Helga Piccolo abordando o episódio em
alguma palestra, ironizando o modo como Café Filho deixou a presidência e
tirando sorrisos da plateia. Uma professora inesquecível.)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Café Filho picou a mula, assumiu Carlos Luz (presidente
da Câmara), sintonizado com os golpistas e pronto para concretizar qualquer
coisa que barrasse a posse de Kubistchek (a UDN temia que JK retomasse a pauta
nacionalista de Vargas). O general Henrique Teixeira Lott (Ministro da Guerra)
percebeu a manobra e armou um contragolpe. Os setores legalistas das Forças
Armadas apoiaram Lott e Carlos Luz teve que fugir do Rio de Janeiro. Embarcou no
cruzador Tamandaré (com políticos udenistas, entre eles Carlos Lacerda, e
centenas de militares), partiu em direção ao porto de Santos (de onde pretendia
liderar o golpe) e, ao sair da baía da Guanabara, ficou na mira dos canhões do
Forte de Copacabana...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Foi nesse momento que as canhoneiras funcionaram. Talvez
seu único momento de utilização militar. Os tiros não atingiram o cruzador (que
manobrou de forma hábil para escapar dos disparos) e a história teve um final
feliz, isto é, não houve mortos na jogada. O Tamandaré chegou ao seu destino,
os golpistas foram detidos no porto de Santos pelos militares legalistas, Carlos
Luz foi deposto (mas não preso) e JK assumiu no ano seguinte.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Resumindo, os canhões do Forte de Copacabana só
funcionaram para amedrontar um golpista e seus comparsas. Talvez um episódio
emblemático da nossa história republicana, tão pródiga em golpes (e nem todos
fracassados).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Acrescento, no entanto, que meu passeio ao Forte de
Copacabana não se resumiu ao um “revival” da nossa história política. Foi um
passeio de turista. Momento de se sentir num cenário privilegiado, de encantamento
com o mar e com o Rio de Janeiro, e de poder compartilhá-lo com uma pessoa
querida. Os canhões, quatro enormes canhões (dois de 305 mm, dois de 75 mm),
não passaram de detalhes.</span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjBja1UAtMzQb4Qw5-H_GtMUhI5i3AWePy4v_QGwHq87hOADyTS9-Zk5FpQGbRhmf3RRAluDVJvahnUM3kucoWHVOMImUkA04fie8uHmHQr1OpfKl6UaIky0LIfgDvx-r03SL2G8h3SP4hGhKVhi6fRNeUpiyJSkY0md_lWstlX_flaYWHkITXoq02Cuwjs/s6000/IMG_5925.JPG" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="4000" data-original-width="6000" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjBja1UAtMzQb4Qw5-H_GtMUhI5i3AWePy4v_QGwHq87hOADyTS9-Zk5FpQGbRhmf3RRAluDVJvahnUM3kucoWHVOMImUkA04fie8uHmHQr1OpfKl6UaIky0LIfgDvx-r03SL2G8h3SP4hGhKVhi6fRNeUpiyJSkY0md_lWstlX_flaYWHkITXoq02Cuwjs/s320/IMG_5925.JPG" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Turistas tirando fotos na cúpula dos canhões do Forte de Copacabana.<br />Ao fundo, os canhões de 305 mm.</td></tr></tbody></table><br /><o:p></o:p><p></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-80457141183113376062024-03-03T16:00:00.003-03:002024-03-13T08:56:12.594-03:00As brasas<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem
(um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas
e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de
1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam
de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada
para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada.
Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda
naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele
seria morto. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no
Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são
riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro,
sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua
revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a
esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se
dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é
engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é,
se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique,
mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o
quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor
importância”, me parece antológica.)<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZv-TqUWxZ-ZAsNym-O-as_ii0pMWATjtPkAC-Po3MYdxiJGBpFmYYqBNNsQT6ViJo2R6caPOIN65aGNWO7sduSo00LXkYTm8snsiGTbZ8c0dEzy3jO5T0r4xPR2V-N0WAsUVctI1hGnvRMZj34t2Xlc_lpV_Ve_Hw9FOh_cZn8q2L6DSCVJnpVj1irDU5/s6000/IMG_5875.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="6000" data-original-width="4000" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZv-TqUWxZ-ZAsNym-O-as_ii0pMWATjtPkAC-Po3MYdxiJGBpFmYYqBNNsQT6ViJo2R6caPOIN65aGNWO7sduSo00LXkYTm8snsiGTbZ8c0dEzy3jO5T0r4xPR2V-N0WAsUVctI1hGnvRMZj34t2Xlc_lpV_Ve_Hw9FOh_cZn8q2L6DSCVJnpVj1irDU5/s320/IMG_5875.JPG" width="213" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo
e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala,
rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem
(sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as
brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989)
é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após
a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos
(entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem
principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu
desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por
exemplo, foi traduzido da versão italiana.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- MÁRAI,
Sándor. <i>As brasas</i>. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras,
2021. 180 p.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-33130142043253080792024-02-29T13:01:00.004-03:002024-03-13T08:37:07.086-03:00Fantasias e delírios<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Há pessoas para quem a vida não basta e precisam
inventar alguma coisa que a melhore ou a torne mais suportável. Outras, de
perfil mais realista, se contentam com a vida como ela é e a aceitam, sem
grande inquietação. Um poeta é o típico integrante do primeiro grupo, envolto em
um mundo de sonhos e imaginação, enquanto o engenheiro é a figura exemplar do
segundo, expressão da mentalidade prática, lidando apenas com aquilo que pode
ser pesado, medido e calculado.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Lembrei dessas considerações a respeito das
mentalidades dominantes ao ter a infelicidade de conversar com um homem prático.
Ou, pelo menos, com um homem cuja recente namorada me garantiu que ele era
assim.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Um típico engenheiro – ela me disse – lidando apenas
com os aspectos práticos da vida e com muito êxito, por sinal.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ela o conheceu recentemente, nos apresentou num bar
da cidade e a conversa foi rápida. Eu mais ouvi do que falei. Minha amiga nos
deixou para tratar de alguma coisa e de repente o homem estava falando de política,
indignado com a operação da Polícia Federal a respeito do golpe de Estado urdido
por Bolsonaro e me explicando a inconsistência das acusações. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Uma farsa, uma perseguição política – acentuou. –
Ora um golpe sem tropas e tanques nas ruas – chegou a dizer, ignorando as
peculiaridades da estratégia neofascista em curso no país. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Minha amiga já me dissera que cansou de homens
sonhadores e queria alguém pragmático. Foi dessa maneira que me falou dele e me
espantei quando o sujeito enveredou para as criações mirabolantes dos bolsonaristas
a respeito do 8 de janeiro de 2023, endossando o entendimento de que o
quebra-quebra foi uma armadilha da esquerda.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Os petistas já estavam dentro dos prédios do
Congresso, do Palácio Presidencial e do Supremo Tribunal Federal, quando os
manifestantes chegaram pacificamente – ele disse, acrescentando que iria me
enviar os vídeos, se eu quisesse.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não, eu não quis. Minha amiga voltou nessa hora e felizmente
mudou o rumo da prosa. Certamente não era essa a conversa que ela desejava que eu
ouvisse. O pragmático engenheiro que ela me propagandeara estava, naquele
momento, enveredando para o campo das fantasias delirantes e não era essa a faceta
do homem que ela admirava.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Fiquei calado. Este engenheiro pode ser muito
prático para tomar as decisões quanto a sua empresa e colocá-la no mercado,
mas, quanto ao resto, é só sonho e fantasia. Mais um adepto da utopia
bolsonarista, que se imagina lutando contra o “comunismo petista” e pela
afirmação da democracia e da liberdade. Provavelmente um engenheiro bem
sucedido, mas incapaz de realismo político.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> A extrema-direita
bolsonarista (que não acho mais exagero chamar de neofascista) está num brete e
esperneia. Não assume o seu projeto autoritário e muito menos o quebra-quebra em
Brasília como tática para um golpe que não conseguiu concretizar. A ideia dos
petistas enquanto força maligna, dentro dos prédios antes da chegada dos
manifestantes do 8 de janeiro, aguardando a massa bolsonarista para imputar-lhe
um vandalismo que ela não desejava fazer, é de uma criatividade impressionante.
Haja delírio e teoria da conspiração!<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0yZsUK8UQbKUufsr7PqGVtI4XSdQt6cdwvI0xLf23nEps55U4zudlDHWysXYxX5rnSnViJN5tLoi1qCuxi3pPGDluKbfjaPvuvsBqjlMPv4Ger_FKYF1Ajzx6x2YcJ2qItiqkcflTc_GsIgwZEEs2CJ94jAnrKD0gDIl-VtO7Ab6h-kGbgDK0C9LVP_CV/s4608/DSCN6794.JPG" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="4608" data-original-width="3456" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0yZsUK8UQbKUufsr7PqGVtI4XSdQt6cdwvI0xLf23nEps55U4zudlDHWysXYxX5rnSnViJN5tLoi1qCuxi3pPGDluKbfjaPvuvsBqjlMPv4Ger_FKYF1Ajzx6x2YcJ2qItiqkcflTc_GsIgwZEEs2CJ94jAnrKD0gDIl-VtO7Ab6h-kGbgDK0C9LVP_CV/s320/DSCN6794.JPG" width="240" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Carreata bolsonarista em Santa Maria, em abril de 2021.</td></tr></tbody></table><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: 18.6667px;">Não sei como me despedi do casal, mas, quando dei por mim, estava com a mão sobre o ombro da minha amiga, penalizado com o que ela precisa suportar. E, sem perceber minha hipocrisia, sai desejando felicidade aos dois.</span></span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-76167799114372896392024-02-28T01:26:00.003-03:002024-02-28T11:26:55.875-03:00Memórias da pandemia<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Sou desses que às vezes se espantam com o que
vivemos no período da pandemia. Fiz alguns registros a respeito daquele tempo e,
ao reler o que anotei em 18 de junho de 2020, achei que valia a pena reproduzir
aqui.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhk93Ax24SryH96qJ4Dr8xxgFLi2jiQW6Oylcp_eLtjI8tou1uezroT0DbX49oYeekJ3IcECiv8onjU3E0uhB_Tici4V9Nt-XwOZyh1Hz2y3_tWurIaqr2uTq0YWkp4MSm4HpTJ5hRn_85-8CNjUV7ac1-lb2Et90SuJ2zziw_NhcwubmJ0-GKgJEAB3QJz/s4608/DSCN5164.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="3456" data-original-width="4608" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhk93Ax24SryH96qJ4Dr8xxgFLi2jiQW6Oylcp_eLtjI8tou1uezroT0DbX49oYeekJ3IcECiv8onjU3E0uhB_Tici4V9Nt-XwOZyh1Hz2y3_tWurIaqr2uTq0YWkp4MSm4HpTJ5hRn_85-8CNjUV7ac1-lb2Et90SuJ2zziw_NhcwubmJ0-GKgJEAB3QJz/s320/DSCN5164.JPG" width="320" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Naquela tarde, fui ao médico e conversei
rapidamente com o porteiro do prédio. Nós dois de máscaras e distantes um do
outro mais ou menos dois metros. Ele revelou a sua contrariedade com as medidas
restritivas impostas pelo Governo Eduardo Leite e entendi que não achava
necessário restringir a circulação de pessoas para impedir a disseminação do
vírus. Naquele tempo ele ainda era um entusiástico do Governo Bolsonaro
(posição que mudaria, a partir do adoecimento e morte de familiares pela covid)
e navegava nas águas do negacionismo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Além disso, tive a impressão de que ele estava
incomodado com os que podiam se dar ao luxo de fazer o propalado isolamento
social, enquanto ele não podia, pois precisava estar ali, na portaria do prédio.
Trabalho remoto não era coisa para ele, assim como não era para a maioria da
classe trabalhadora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Naquele mesmo dia a polícia prendera o Queiroz
(assessor do senador Flávio Bolsonaro) e eu entendia que era um cerco ao clã
Bolsonaro. Ao menos, era o que escutava de alguns comentaristas políticos, que divagavam
a respeito de um possível desmoronamento do castelo bolsonarista. Doce ilusão!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Escrevi que estávamos assistindo a um “governo incompetente
na gestão de uma das crises de saúde mais graves que o País já vivera”, mas “a
coisa estava mudando”. Até a Rede Globo migrara para a oposição, só
resguardando o Ministro da Fazenda.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Que tempos! Eu era daqueles que achavam que o
Governo Bolsonaro não sobreviveria até o fim do mandato e fui vencido pelos
fatos. Bolsonaro se manteve firme e forte e até ensaiou uma insurreição no ano
seguinte, em 7 de setembro de 2021. O primeiro ensaio do seu almejado golpe.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Naquele dia, porém, o que me preocupava eram as
medidas para administrar a propagação do vírus e como conviver com tudo isso. Como
conviver com a pandemia!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Saí do médico (com o qual mantive a devida
distância) e fui a lotérica pela primeira vez. Encarei a fila mantendo a devida
distância dos outros clientes (todos nós com máscaras no rosto) e exercitei o
que se chamava “a nova normalidade”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu frequentava o supermercado no horário dedicado
aos idosos (início da manhã) e seguia todos os protocolos. Um amigo me trazia
livros de vez em quando, tocava no porteiro eletrônico, eu descia, e
conversávamos na porta do prédio, de máscaras e com o devido distanciamento. Era uma
prática que esse amigo fazia questão de manter: a troca habitual de livros. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Alguns achavam que os objetos (livros, entre eles)
podiam transmitir a covid, mas nós não embarcávamos nessa. Entendíamos que o
vírus não sobrevivia na capa ou nas páginas de um livro e seguíamos em frente.
Livros para enfrentar o isolamento social, dizíamos, eis o nosso lema.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-1775776912457833432024-01-24T09:00:00.008-03:002024-02-27T20:46:43.645-03:00Pescarias e fantasias<p> <span> </span><span> </span><span> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">Se eu tivesse que escolher um lugar como cenário
privilegiado da minha infância, elegeria um cais abandonado nas margens do Canal
São Gonçalo, em Pelotas, não muito distante do porto. Ou melhor, um local que
era abandonado na década de 1960, quando eu frequentava com o pai, o avô materno
e o irmão mais velho, para manhãs de pescarias.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Jogávamos as chumbadas no canal (que chamávamos de
rio) e de lá retirávamos irrequietos bagres e outros peixes que não recordo o
nome. Os bagres tinham esporões terríveis junto a cabeça que exigiam muito
habilidade do pescador para livrá-los do anzol. Habilidade que eu aprendia
lentamente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Visitei o local em outubro (enquanto participava da
Feira do Livro da cidade) e me surpreendi com o fato de hoje ser um cais muito
frequentado. Muitas embarcações ancoradas, diversas construções ao redor, desde
residências e bares até associações culturais. Principalmente bares, me
disseram, pois tornou-se um ponto de encontros e festas até altas horas da
noite. Local perigoso também.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Alertado quanto aos riscos do “novo cais”, estive
lá num final de manhã e só encontrei calmaria. Os encontros, as festas, as beberagens
começam a partir do final da tarde, me falaram.</span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span></span></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYTpMHPZ92lnFQgCScyoGs-WYvMFLoJaP9RcqYjNaLuVmp2WqkM06QBIABUJxDEqRkHOpZH5SD6BZh26kn4rEzLiVkIk8gh13uvhjz_8iix8xsmVDugwVEpVAOkh4p_Ps1J4h2IdqtqHVyp3WAZoezXHJU_Euv63EbLBoZ8Tfhuj5oGP51sIFotfLR3wR4/s6000/IMG_5045.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="4000" data-original-width="6000" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYTpMHPZ92lnFQgCScyoGs-WYvMFLoJaP9RcqYjNaLuVmp2WqkM06QBIABUJxDEqRkHOpZH5SD6BZh26kn4rEzLiVkIk8gh13uvhjz_8iix8xsmVDugwVEpVAOkh4p_Ps1J4h2IdqtqHVyp3WAZoezXHJU_Euv63EbLBoZ8Tfhuj5oGP51sIFotfLR3wR4/s320/IMG_5045.JPG" width="320" /></a></span></span></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não ia ao local desde 1966 e caminhei de uma ponta
a outra, buscando vestígios desse período. Provavelmente as mesmas pedras, os
mesmos frades de metal para as cordas dos navios, mas nada mais. Olhei para a
direita e avistei as pontes (a ferroviária e as outras duas, para automóveis e
caminhões, uma delas desativada), depois virei para o outro lado e fiquei
observando o porto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O porto era a minha paisagem preferida. Gostava de
identificar os navios, imaginar o dia em que eu subiria num deles e sairia mundo
afora. E nessa lembrança encontrei o menino que eu fui: o guri que queria
cruzar oceanos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma aventura que não realizei. Isto é, não atravessei
o Atlântico de navio. Cumpri esse percurso de avião, acompanhando na tela a
reprodução da rota da aeronave, partindo de São Paulo em direção a Lisboa,
horas e horas cruzando o mar. Depois, na margem do Tejo, caminhei pra cima e
pra baixo, lembrando do Canal São Gonçalo.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: left;">Se tivesse que escolher um local para sintetizar a infância, escolheria esse cais na margem do São Gonçalo. Abandonado na década de 1960, local de pescarias e fantasias.</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: left;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfNgT_UZVRzDkQdydRz4a9Ul1WIK51XmTn6zTxh-9KyirkiAJ79fwPLExEAv2C_4m6CLcmXtOjtV_9VUzaE9fVOWizsuMWqm2G_dBJumzO_bzB9ihe8apFO5hWry9RdaskgngwGPTMLEkIiAcpQNdEykg9v3WyG65ulg8bSfRBMxu50QJMLMeAMV1TLwjU/s6000/IMG_5044.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="4000" data-original-width="6000" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfNgT_UZVRzDkQdydRz4a9Ul1WIK51XmTn6zTxh-9KyirkiAJ79fwPLExEAv2C_4m6CLcmXtOjtV_9VUzaE9fVOWizsuMWqm2G_dBJumzO_bzB9ihe8apFO5hWry9RdaskgngwGPTMLEkIiAcpQNdEykg9v3WyG65ulg8bSfRBMxu50QJMLMeAMV1TLwjU/s320/IMG_5044.JPG" width="320" /></a></div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: left;"><br /></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-23059852914526508142023-12-16T11:39:00.003-03:002024-02-27T21:36:35.091-03:00Despir a armadura de Cavaleiro Andante<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Estou lendo <i>A Rainha do Tráfico</i>, romance de Arturo
Pérez-Reverte (Ed. Record, 2015, 518 p.), e interrompo a leitura para fazer um
comentário a respeito de uma passagem do livro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A personagem principal, Tereza Mendoza (que vai se
tornar mais tarde a chefe de uma rede de distribuição de drogas no sul da
Espanha), acorda durante a madrugada, caminha pela casa e vai espiar o amante
construindo a maquete de um barco. É o hobby do rapaz. Ele é um exímio piloto de
lancha e o casal trabalha no transporte de drogas entre Marrocos e Espanha (na
década de 1980).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ela tem 24 anos e fugiu do México porque o seu
companheiro (também traficante) foi morto e ela, jurada de morte. Na Espanha,
volta a se envolver com outro criminoso (um galego, 30 anos) e, olhando-o
naquela madrugada (enquanto ele está distraído na montagem de uma maquete), ela
reflete a respeito da tendência sonhadora dos seres humanos. Todos sonham, mas não
do mesmo modo. Enquanto alguns arriscam a vida no mar numa Phantom (o tipo de
lancha que o amante espanhol utiliza para traficar drogas) ou no céu em um
Cessna (o tipo de aeronave que o antigo companheiro usava para transportar
drogas entre o México e os Estados Unidos), outros constroem maquetes como
consolo e outros se limitam a sonhar. Alguns, no entanto, constroem maquetes,
arriscam a vida e sonham. Tudo ao mesmo tempo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As reflexões da personagem me calaram fundo. Todos somos
sonhadores, não há como escapar. Eu, no entanto, sou daqueles que apenas se
limitam a sonhar. Não sei fazer maquete e, muito menos, me arriscar em ações
perigosas, como o amante de Teresa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O casal opera entre Marrocos e Espanha (Teresa,
apesar de não ser uma sonhadora, acompanha o companheiro na lancha), traz haxixe
da África para desembarcar na Costa del Sol e coloca a vida em risco. Eles navegam
próximo a Fuengirola, uma localidade da costa espanhola do Mediterrâneo e interrompi
a leitura, quando esse local foi citado...<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbwI0yJTIw8diH3WLH4yqTgHL-AFCjphbRphOFlc5RwJGZMFOfzhSkOdlVF_tQ8YTRGTtAwIdgD4OjVRmmQe1OLnjNHKLIEv7NMJ7j4lV9gJxWmSpwU9QvGqzklmmVM9Kp0vgJ7jCdm9YakR8b_nhgPAKMwpnbXDg9RMa9SiHalPTiT_fhadnwlGdb4KWG/s3971/DSCN3040.JPG" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="3158" data-original-width="3971" height="254" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbwI0yJTIw8diH3WLH4yqTgHL-AFCjphbRphOFlc5RwJGZMFOfzhSkOdlVF_tQ8YTRGTtAwIdgD4OjVRmmQe1OLnjNHKLIEv7NMJ7j4lV9gJxWmSpwU9QvGqzklmmVM9Kp0vgJ7jCdm9YakR8b_nhgPAKMwpnbXDg9RMa9SiHalPTiT_fhadnwlGdb4KWG/s320/DSCN3040.JPG" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Fuengirola - Costa del Sol.</td></tr></tbody></table><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Estive em Fuengirola, em 2015. Estava viajando com
minha antiga companheira, descemos de Sevilha até a Costa do Sol (numa van,
junto com um grupo de turistas) e chegamos em Fuengirola no meio da tarde. Visitamos
uma mesquita, caminhamos na beira da praia e tomamos café num bar em frente ao
mar. Era um bonito dia de inverno, ensolarado e frio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Havia um castelo numa colina próxima, convidei
minha mulher para ir até lá, porém ela estava cansada e preferiu voltar ao
hotel. Eu segui em frente, subi a colina e dei uma volta em torno da fortaleza
que, segundo as informações, remontava ao tempo dos mouros. O castelo estava
com as portas fechadas para visitação e me sentei num banco no lado de fora, na
sombra das muralhas. Era a primeira vez que via o Mar Mediterrâneo e me lembrei
das cenas finais do filme <i>El Cid</i>, que assisti pela primeira vez com 10
anos de idade... As cenas do cerco de Valência, pelos mouros, defendida bravamente
pelas tropas de Cid, o Campeador. Em Sevilha, dois dias antes, num passeio de
charrete pela cidade, cruzara por uma estátua dedicado ao herói da Reconquista
e me surpreendera com o fato dele ainda ser festejado na Espanha. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRCky1BYcgiy1mmOrhXeXZDX8aOfnoEivHdHbztNnUO5Iuge8yMkxYZY8AHSgu8CdPkklCyahr-34Dmi1I1ID_Gr4hgpDTTlNQiMyU-jPHHjuxvxRwbgNNPjeFGysOgjuQYIlJIpeyo4OONCyQ5rjE2lqvC8KL_ivibj4WmX1__l8LF_1jyOx7YlBYkxVl/s4129/DSCN3047.JPG" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="2887" data-original-width="4129" height="224" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRCky1BYcgiy1mmOrhXeXZDX8aOfnoEivHdHbztNnUO5Iuge8yMkxYZY8AHSgu8CdPkklCyahr-34Dmi1I1ID_Gr4hgpDTTlNQiMyU-jPHHjuxvxRwbgNNPjeFGysOgjuQYIlJIpeyo4OONCyQ5rjE2lqvC8KL_ivibj4WmX1__l8LF_1jyOx7YlBYkxVl/s320/DSCN3047.JPG" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Castelo medieval, em Fuengirola.</td></tr></tbody></table><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Naquele entardecer em Fuengirola, minha imaginação
voou longe e “voltei” ao tempo das lutas entre mouros e cristãos. E então, por
conta dessas associações malucas que o pensamento faz, me dei conta (numa
intensidade rara, que se agudiza a cada vez que relembro o episódio) de que eu
era um sonhador inveterado. Em terras de Espanha, nas margens do Mar
Mediterrâneo (que lugar propício para um sonhador!), vivi o que sempre fui: um
sonhador alucinado. Um guri que sonhou desbragadamente, um homem que continuou
com os pés na Lua, idealizando a vida, as pessoas e as mulheres especialmente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O romance de Pérez-Reverte me devolveu essa
experiência vivida na Espanha, na Costa do Sol. Um traficante, piloto de
lancha, sonha grandezas e vive perigosamente, enquanto a sua amante, sem os
mesmos delírios, o acompanha nas operações de transporte de drogas, navegando ao
seu lado. Teresa, uma mexicana telúrica e atávica, que reconhece a propensão de
todos os seres humanos ao sonho... mas não se entrega a isso. Antes de mais nada,
Teresa quer sobreviver.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Fuengirola se tornou uma referência para mim. Um marco
nesse grande esforço, nunca concluído, de romper com o idealismo exacerbado que
marca minha vida inteira. Em Fuengirola – em terras de Espanha, revivendo as
glórias da Reconquista – senti que já era tempo de despir a armadura de
Cavaleiro Andante que vesti na infância e juventude. Acho que nunca vivenciara
o assunto com aquela intensidade... Acho que nunca sentira que era preciso (e
possível) mudar. Ia completar 60 anos. Não dava mais para bancar Dom Quixote.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-37472113724091660172023-12-06T11:12:00.002-03:002023-12-07T09:36:55.037-03:00Um dente contra a Ditadura<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nos anos 1980, um dos meus assuntos recorrentes era
o Regime Militar brasileiro. Fui leitor de primeira hora de <i>Brasil: Nunca
mais</i> (Ed. Vozes, 1985) e senti verdadeiro embrulho no estômago ao longo da
leitura. A truculência da repressão fora bem pior do que imaginara. Encontrei a
crônica abaixo (publicada no jornal <i>A Terceira Margem</i>, em setembro de
1991) e acho que o texto dá conta tanto do sentimento com que vivi os anos 80
como o modo como o Regime Militar ainda se fazia presente.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdDLWvsMK7zB9cLzs2MqmZaO82C1fdqIn9TzrFhucaLOvPN56cCKhYauiDl4FBSMfc7cQ9y2dYk6wKtQIePSO3Us043Di1NnmS_0cLIX30va8YPnvbllKI4j_kKSAXzDv1grQ2pZo_HRkPhqPEePPx6NvlUHHfJCqyQABjYFV2fBAiMrB80Dwfkr4bhLcx/s5540/IMG_5395.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="5540" data-original-width="3988" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgdDLWvsMK7zB9cLzs2MqmZaO82C1fdqIn9TzrFhucaLOvPN56cCKhYauiDl4FBSMfc7cQ9y2dYk6wKtQIePSO3Us043Di1NnmS_0cLIX30va8YPnvbllKI4j_kKSAXzDv1grQ2pZo_HRkPhqPEePPx6NvlUHHfJCqyQABjYFV2fBAiMrB80Dwfkr4bhLcx/s320/IMG_5395.JPG" width="230" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Segue a crônica, feita com personagens imaginários,
criados a partir do que eu experimentava, isto é, um desalento em relações às
condições socioeconômicas do País (que a Nova República / Governo Sarney não conseguira modificar):<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><i style="text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Até um mês atrás, Berenice acreditava em saúde
pública. Mas a última campanha contra o sarampo deixou-a bastante descrente. “Eles
gastam muito em propaganda, têm um pessoal que sabe pousar na TV, mas na hora H
as vacinas estão vencidas”, ela desabafou para o marido.</span></i></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Berenice tem uma filha de cinco anos e fez questão
de atender ao apelo da Secretaria de Saúde. Mas teve receio de contaminação por
agulhas e foi tranquilizada por uma enfermeira. Ela explicou que “pistolas”
injetavam por pressão e não utilizavam agulhas. O marido achou a explicação
razoável e eles resolveram confiar. Berenice perdeu uma tarde de serviço no
Banco e levou a menina ao Posto de Saúde.<o:p></o:p></span></i></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma semana depois, o marido abre o jornal e lê para
ela que as vacinas estavam sob suspeita. Não haviam sido preparadas
adequadamente, os prazos de validade estavam vencidos, técnicos do Rio de
Janeiro vinham investigar. Berenice sentiu o chão faltar aos seus pés e abraçou
a filha como se fosse o fim. Passou metade da noite sentada ao lado da menina, ela
não desconfiou de nada e gostou de ver a mãe junto de si. Berenice comentou com
o marido que agora sabia o que era ser uma cidadã de segunda classe. E acrescentou:
“a maioria dos brasileiros está na mira da incompetência deles”.<o:p></o:p></span></i></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><i><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E hoje eles recordam que há catorze anos, em agosto
de 1977, enfrentavam a polícia de choque na Avenida João Pessoa, sonhando com
um Brasil melhor. Eram estudantes universitários e lutavam contra a ditadura. Expunham-se
diante dos cassetetes da polícia e fugiam quando eles se aproximavam. Numas
dessas fugas, Berenice escorregou na calçada e quebrou a ponta de um dente. Um dente
contra a ditadura. Berenice lembra até hoje. E não sabe se valeu à pena. Se alguma
coisa vale à pena.</span></i></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;">(</span><i style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;">A
Terceira Margem</i><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-indent: 35.4pt;"> – P. Alegre, nº. 7 – setembro / 1991. P. 8, com o título "Saúde Pública".)</span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-75663590861978418912023-12-05T09:01:00.004-03:002024-02-28T01:37:26.817-03:00Violência doméstica<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Há lembranças que não passam de lampejos. Às vezes
apenas uma frase, um olhar, um comentário dito rapidamente. Por exemplo: chego
na escola no início da tarde (em Canoas) e uma professora está contando (na
sala dos professores) que foi ao hospital visitar uma aluna que apanhou da mãe.
A surra foi tão grande que a menina teve de ser levada ao pronto-socorro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Lembro da professora falando e não recordo se ela
estava indignada com o fato ou não. Ela conta que, ao chegar ao saguão do hospital,
a mãe da menina estava lá, debulhada em lágrimas, dizendo que “não era isso que
queria fazer”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Escuto o relato preparando meu material para as
aulas que teria de ministrar em seguida, a sirene da escola já vai tocar, tenho
quatro ou cinco períodos de aulas pela frente e minha atenção está dividida. Nunca
soube o nome da aluna, nunca identifiquei a guria entre as minhas dezenas de
alunos.<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20212.doc#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Nem recordo o desdobramento do caso: se a menina foi atendida pelo SOE nem se a
mãe também teve algum aconselhamento ou coisa semelhante.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não havia Estatuto da Criança e do Adolescente, não
havia Conselho Tutelar, e não lembro como casos como esse eram conduzidos. Da minha
parte, às vezes tomava conhecimento de casos extremos de violência doméstica (raros),
mas sempre de forma fragmentada. Minha função era falar a respeito das
Capitanias Hereditárias, do trabalho escravo, das revoltas nativistas, da
formação do Estado brasileiro e me limitava a isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Professor ensina conteúdo, educação é tarefa dos
pais. Se os pais ainda acham que devem surrar os filhos, para melhor educá-los,
é problema deles.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Costumava ouvir esse tipo de comentário e não
discordava. Mas ficou a lembrança de que muita coisa ocorria com aquelas
crianças – que eu assistia entrarem sorridentes pelo portão da escola –, muita coisa
a respeito das quais eu vislumbrava e que talvez fosse melhor saber e agir a
respeito.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Muitas delas apanham, como nós apanhamos, Vitor –
me dizia um colega que eu sempre achei que sabia das coisas, isto é, conhecia o modo como
viviam nossos alunos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Eu apanhei pouco – eu falava. – Minha mãe era
professora primária e estudou <i>Emílio</i>, de Rousseau. Ela não era adepta de práticas
pedagógicas violentas. Meu pai fora criado à base de surras, mas ouvia muito
minha mãe e se continha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Assim eu respondia ao meu colega e ele ria. Falava que minha mãe devia
ser uma mulher interessante. Um dia comentei sobre a menina que fora parar no
hospital e ele divagou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Deve ter sabido que ela andava namorando por aí e
teve medo que a guria engravidasse. As mães ficam loucas com isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; mso-prop-change: "vbiasoli\@gmail\.com" 20231205T0848; text-align: justify; text-indent: 35.4pt !msorm;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Obs.: <i>Emílio</i>
ou <i>Da Educação</i> foi um romance a respeito da educação de um
nobre e também de sua possível esposa, publicado por Jean-Jacques Rousseau, em
1762. Tornou-se a base de grandes teorias educacionais e, pelo que contava minha mãe,
ainda constava da bibliografia da Escola Complementar, em Pelotas, no início da
década de 1940.<o:p></o:p></span></p>
<div style="mso-element: footnote-list;"><!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20212.doc#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 10pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Eu
costumava ter entre 14 e 16 turmas (a maioria com dois períodos por semana),
cada uma com 25 alunos (mais ou menos), o que resultava numa média de 350
alunos e uma lista danada de nomes, rostos, perfis e histórias devidamente
embaralhados.<o:p></o:p></p>
</div>
</div>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-23857498774202838842023-11-29T09:16:00.006-03:002023-11-29T09:16:38.983-03:00Mulheres na região de colonização italiana<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Defendi tese de doutorado a respeito da Igreja Católica
numa região de colonização italiana (no caso, na região central do Estado, no
município de Santa Maria, o qual, no final do século XIX, abrigou um núcleo de
colonização, denominado Quarta Colônia, hoje dividido em vários municípios). Assim,
durante muito tempo, frequentei eventos acadêmicos relativos aos estudos de
imigração. Assisti a painéis, comunicações e palestras muito interessantes, mas
do que lembro com mais intensidade são as conversas ao final dos encontros. No bar,
em torno de xícaras de café, ou nas alamedas dos campis universitários, batendo
pernas e falando a respeito de como viviam os colonos.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOaVMx4wl1bkJ_PVlkYkmjZQr-HFkw8Jbly1VMbK0LlMvkmIh8JAn4VpxSxyVV8tqkdtRi0GQU1VYGZm86GLnxdxfs7v5duDSJRsI85zWxQjb1aA9Uif_yXWQ1cZLMJ94J-EF0FLaPzFC5emVh5F9RGbJ5j0nn8X8wrLlJuI0XKMcyNFmMAUYM4Y1cmrGk/s1095/italianos-no-sul.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="480" data-original-width="1095" height="140" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOaVMx4wl1bkJ_PVlkYkmjZQr-HFkw8Jbly1VMbK0LlMvkmIh8JAn4VpxSxyVV8tqkdtRi0GQU1VYGZm86GLnxdxfs7v5duDSJRsI85zWxQjb1aA9Uif_yXWQ1cZLMJ94J-EF0FLaPzFC5emVh5F9RGbJ5j0nn8X8wrLlJuI0XKMcyNFmMAUYM4Y1cmrGk/s320/italianos-no-sul.jpg" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Imigrantes italianos na Serra Gaúcha.<br />Fonte: mulhersingular.com.br/2015/12</td></tr></tbody></table></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Um tema recorrente era o do papel da mulher nessas
regiões de colonização (na Serra Gaúcha, em especial), a inserção feminina no
modelo de economia centrado na pequena propriedade rural (que os colonos tinham
acesso pela política de colonização e que pagavam a longo prazo). Lote de terra
que exigia exploração intensiva para garantir a sobrevivência familiar, com uso
de mão-de-obra constituída por pai, mãe e quantos filhos eles pudessem ter. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nesse projeto, então, a mulher tinha um papel fundamental.
Em primeiro lugar, cabia a ela prover a família de filhos, no maior número
possível. Em segundo, garantir a sobrevivência dos mesmos e manter unidade da
família com o seu trabalho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nos anos 90 orientei um trabalho a respeito do
trabalho feminino nos primórdios da Quarta Colônia e me surpreendi com os dados
que o aluno trouxe. Como as mulheres trabalhavam! No serviço doméstico, na
roça, na horta, no estábulo de animais. E ainda pariam um filho atrás do outro:
oito, dez, doze e até vinte. Um número que não estava na conta das suas mães e
a avós, na Itália, pois lá as condições não eram propícias para uma família
numerosa. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As autoridades civis e religiosas aprovavam tal
projeto de economia e sociedade assim como o papel da mulher nesse modelo. Até
a década de 1960 houve bonificação estatal para as crianças até os três anos de
idade e a Igreja, por sua vez, dava reforço à estrutura familiar e estabelecia as
normas morais, tanto exaltando a família numerosa quanto colocando a atividade
sexual restrita à reprodução. Que os casais tivessem filhos, sim, muitos, mas
que não se refestelassem com as delícias da carne.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As conversas das quais eu lembro eram justamente
sobre isso: os desdobramentos comportamentais da adoção desse modelo de
colonização. Muitos dos meus interlocutores tinham o pé na colônia, com avós e
pais nascidos na região e, muitas vezes, até eles mesmos com vivência infantil
nas colônias. Então falavam de suas famílias com muitos irmãos e nas mães se
queixavam e se orgulhavam da quantidade de filhos. Contavam da trabalhareira, das
diversas atividades domésticas e como as mães dividiam esses afazeres entre as
crianças (as irmãs mais velhas se responsabilizando pelos mais novos, por
exemplo), assim como do trabalho produtivo, comandado pelo pai.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A tirania dos pais era assunto recorrente (mas não
abordado nos trabalhos acadêmicos apresentados nos congressos), um
autoritarismo repartido entre pai e mãe. Muitas vezes, cabendo à mãe o exercício
do poder de forma mais crua, isto é, era ela quem surrava, ficando ao pai algo
simbólico de ser o suporte dessa estrutura doméstica.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Recordo em especial de uma pesquisadora esbelta e
refinada relatando as surras monumentais que as mães praticavam no lombo dos
filhos (em especial das filhas mulheres), enquadrando-as no serviço doméstico,
para aliviá-las das tantas tarefas que eram obrigadas a exercer. Surras nas
quais uma vara de marmelo muitas vezes era o instrumento. A pobre da menina
apanhando da mãe e o pai ali perto, distante, como se isso não tivesse relação
com ele. Afinal o mundo doméstico era espaço do poder feminino e o homem pouco
se intrometia nessa esfera.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Lembro dessas conversas. E também do espanto que
tive quando descobri que minha colega professora estava relatando também a sua
vivência infantil: mulher que na infância foi surrada pela mãe, com a
complacência do pai. Experiência de criança que sofreu os desdobramentos do
modelo econômico da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Tudo em prol da
pequena propriedade rural, base de um projeto socioeconômico exitoso!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Nem sei os
danos que isso acarretou para a guria. Nem sei que feridas (emocionais) ela carregou
o resto da vida, mas tenho a certeza de que elas ficaram sem cicatrização por
muito tempo. Se é que um dia cicatrizaram. Não esqueço a sua expressão, o que
seus olhos gritavam.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– As coisas eram assim naquele tempo – dizia ela. –
Minha mãe foi criada desse jeito. O pai, idem. Todos apanharam. E eles seguiram
batendo nos filhos. Ninguém achava isso ruim. Meus irmãos até hoje me olham
feio, quando eu digo o contrário. Eles dizem que desmereço a criação dada pelos
nossos pais, que tanto se sacrificaram pelos filhos. <o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-61052706183088758132023-11-25T10:02:00.003-03:002023-11-25T10:02:31.595-03:00Ouvindo os alunos<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Meu batismo de fogo no Magistério Estadual foi com
as crianças do Ensino de 1º Grau, em Alvorada e Canoas.<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20202.doc#_edn1" name="_ednref1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Em 1983, no entanto, com minha aprovação em Concurso Público do Estado e a
nomeação nas escolas porto-alegrenses Ana Néri (Bairro Minuano) e José Feijó
(Bairro Rubem Berta) passei a lidar com outra clientela: a dos adolescentes e
jovens adultos.<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20202.doc#_edn2" name="_ednref2" style="mso-endnote-id: edn2;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[ii]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Se
antes ouvia os alunos falarem dos pais trabalhadores, agora escutava os
próprios. Uma gurizada que trabalhava em supermercados (como empacotadores,
carregadores ou, um caso excepcional, como gerente), nos escritórios (como boys
ou nas atividades de limpeza), em serviços gerais (supervisionando a descarga
de arroz), no trabalho doméstico (como empregadas e babás) e até no jogo do bicho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Muitas vezes, na Escola Feijó, durante o horário do
recreio, dava preferência a ficar no pátio com os alunos ao invés da sala dos
professores, com meus colegas de ofício. O Feijó era uma escola de 2º Grau, frequentada
por adolescentes de Alvorada, Parque dos Maias e Rubem Berta, e eu gostava de
ouvir suas histórias. Além das atividades no mundo do trabalho, as histórias
das suas vidas: os bailes comportados em salões paroquiais, a pregação severa dos
pastores evangélicos e os namoros de sofá com vigilância familiar (que eu
imaginava não existirem mais), assim como as histórias de namoros mais ousados,
a dificuldade de acesso à métodos contraceptivos, pílulas anticoncepcionais
tomadas de forma errada e temores em relação à possíveis gravidezes... Histórias
variadas que me permitiam olhar o mundo de outra maneira.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma manhã (eu lecionava apenas no turno da manhã no
José Feijó) um aluno narrou a sua atividade de entregador de bebidas na Sogipa (Sociedade
de Ginástica Porto-Alegrense) e me espantei quando ele disse:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Um clube de burguês. Só gente rica lá dentro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ele descreveu a sua entrada de Kombi pelo portão
dos fundos do clube, os engradados de refrigerante e cerveja que ele
descarregava no bar em frente às quadras de tênis e os tenistas, todos eles,
vestidos de roupas brancas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– As gurias e até as coroas com umas saias
curtinhas mostrando até as calcinhas. Uau!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma realidade que eu conhecia bem, pois fora sócio
do clube desde 1967 (quando chegara a P. Alegre com meus pais e irmãos). No
início dos anos 70 até jogara tênis naquelas quadras, com roupa branca e tudo
mais, e conhecera de perto a formosura das tenistas de saias curtas. No entanto,
nunca me dera conta de que era um “clube de burguês”, apesar de ter ouvido um
diretor da entidade afirmar (por volta de 1980), que não havia mais necessidade
de um grande número de sócios com mensalidade baixa, pois a nova sede já estava
concluída e o clube precisava reconfigurar o perfil dos associados, aumentando
as mensalidades e privilegiando as classes A e B.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nessa reconfiguração dos associados da Sogipa,
claro, eu dancei. Deixara de ser dependente do pai (como fora nos anos 60 e
70), tornara-me sócio titular e não aguentei o valor das mensalidades com meu
salário de professor. Abandonei o clube sem nunca regularizar minha situação na
secretaria – envergonhado com a minha precariedade financeira, devo acrescentar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Como assalariado, eu<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>vivia um “processo de proletarização” (mesmo
na condição de professor concursado) e, na fala daquele aluno (negro e
entregador de bebidas), estava bem colocado que aquele não era mais um clube
para mim. Um aluno, por sinal, muito participativo em sala de aula, com intervenções
preciosas a respeito do conteúdo. Um aluno a me indicar outros modos de olhar o
mundo, assim como de me reposicionar na estrutura social. <o:p></o:p></span></p>
<div style="mso-element: endnote-list;"><!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="edn1" style="mso-element: endnote;">
<p class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20202.doc#_ednref1" name="_edn1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Fiz
parte da legião de professores que ingressou no Magistério Estadual por meio de
pistolão e ficou aguardando concurso para se tornar efetivo. <o:p></o:p></p>
</div>
<div id="edn2" style="mso-element: endnote;">
<p class="MsoEndnoteText"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20202.doc#_ednref2" name="_edn2" style="mso-endnote-id: edn2;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[ii]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Em Canoas, tive alunos adolescentes. Mas, na minha lembrança, é a partir das
escolas de P. Alegre que eles se impõem. É como se fosse um corte. O período
nas escolas de Alvorada e Canoas ficou marcado pelo predomínio das crianças. <o:p></o:p></p>
</div>
</div>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-88623975889291530312023-11-24T13:55:00.001-03:002023-11-24T13:55:05.366-03:00Pensar a revolução brasileira<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As turmas de supletivo da Escola Ana Néri,
constituídas por jovens adultos, foram uma batalha inglória. Sim, eu era um
professor treinado apenas para atuar com alunos em idade regular. Não, eu não
tinha preparo para lidar com jovens adultos, estudantes de mais de 18 anos que
não haviam concluído o 1º Grau e que tinham com enormes dificuldades para ler e
escrever.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nessas condições, não era raro eu interromper uma
explanação devido à dificuldade dos alunos em compreende-la, ficar parado no
meio da sala e pensar: “E agora, o que eu vou fazer?” Os alunos não estavam
entendendo coisa alguma e eu não sabia como continuar a aula, isto é, como
tornar o conteúdo mais acessível. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Então olhava um aluno – um rapaz cansado, vindo do interior,
do interior do município de Camaquã, <i>boy</i> num escritório do centro da
cidade, almejando um emprego melhor – e sentia a necessidade de encontrar um
jeito de continuar. Voltava ao quadro verde, escrevia com giz as palavras
chaves – latifúndio, lavoura do café, economia de exportação, oligarquias
centrais e periféricas, república oligárquica –, explicava cada uma delas e,
juro, achava que estava resolvido. Estava pelada a coruja!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Quando terminava o turno, descia as escadas em
direção à rua (a escola ficava bem acima do nível da calçada) e caminhava com
um colega em direção à parada de ônibus. Às vezes encompridávamos o trajeto para
conversarmos melhor. Ele e eu muito instigados pelo desafio de lecionar para
aquela gurizada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ele, um professor um pouco mais moço que eu e muito
melhor preparado, com melhor formação teórica. Nós dois nos achando pouco
qualificados para o ensino de jovens adultos e pensando em como melhorar o
nosso desempenho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Numa noite em que resolvemos encompridar o caminho
até a parada de ônibus porque a conversa estava boa, enveredamos para um papo de
política (o que não era raro, educação e política sempre se embricavam na nossa
perspectiva) e, dessa vez, com alguma irritação de parte a parte. Ambos acompanhávamos
sem entusiasmo o modo conciliador como se dava a transição do Regime Militar
para a Democracia. A derrota da emenda das eleições diretas para a Presidência
nos incomodara, a escolha de Tancredo pelo Colégio Eleitoral não nos empolgara
e o governo do Sarney, então, nos parecia patético.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Naquela noite divergíamos quanto aos rumos que a
oposição petista devia tomar e então, de repente, meu amigo afirma:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Assim não dá. É preciso pensar a Revolução
Brasileira.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu me viro para ele e vejo seu rosto voltado para o
alto. Olho na mesma direção, não enxergo coisa alguma e penso em perguntar se
ele está falando sério. Mas não digo nada, escuto seus argumentos a respeito do
“caminho revolucionário” e não sei o que dizer. No fundo, também achava que
assim não dava. Mas era um delírio, um delírio completo, pensar em Revolução. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Alcançamos a parada, vimos o ônibus chegar e subimos.
Passamos a roleta, sentamos no mesmo banco, e ele continuava nas alturas, isto
é, falando das condições objetivas, as condições subjetivas, a correlação de
forças entre a burguesia e o proletariado, as tarefas de um partido que se propõe
a transformar a realidade...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Vejo que está chegando a minha parada, me despeço,
desço do ônibus, ainda tenho cinco longas quadras para andar até chegar no meu
apartamento e faço isso com a cabeça fervendo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Lecionar no supletivo do Ana Néri foi uma batalha
inglória. O confronto entre a formação limitada que recebi na Faculdade de Educação
e um duro embate com a realidade daqueles alunos “carentes” (“carentes de
formação básica”, era assim que se falava). Acho que diante dessa situação, divagar
a respeito da revolução era um sonho que aliviava. Sei lá.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Seja como for, eu não chegava em casa desanimado. Pelo
contrário.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-88075099960074942022023-11-23T10:41:00.003-03:002023-11-23T10:49:07.340-03:00Tesouro roubado<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Entre 1985 e 89, lecionei numa escola da Cidade
Baixa, a Escola Estadual de 1º Grau Olintho de Oliveira. Tinha me mudado para o
centro da cidade e a transferência de uma das minhas matrículas para uma escola
perto de casa não era só uma comodidade, mas também uma economia em passagens
de ônibus.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Dessa maneira, comecei a lecionar pela manhã na
Escola Feijó (quase no limite com Alvorada) e, à noite, no Olintho de Oliveira,
na Rua da República. Uma escolinha que funcionava num casarão antigo, mais um
prédio de construção recente (de tijolos vermelhos) nos fundos do enorme pátio.
O doutor Olintho (a quem a escola homenageava no nome), além de médico e
professor de Medicina, fora um intelectual atuante na vida cultural de Porto Alegre no início do século XX, e isso eu sabia vagamente (devido às leituras
da coluna do Aldo Obino no <i>Correio do Povo </i>e de conversas com minha sogra).<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20200.doc#_edn1" name="_ednref1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O casarão do falecido médico estava em condições
tão precárias que não abrigava nenhuma sala de aula (todas as salas de aula estavam no prédio anexo), apenas a direção, a secretaria, o SOE, a cozinha,
o refeitório e a biblioteca funcionavam ali.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma vez chegaram uns livros do IEL (Instituto Estadual do Livro), enviados pela
DE (Delegacia de Educação), e eu me interessei por uma reedição d’<i>O tesouro
do Arroio do Conde</i>, de Aurélio Porto. Sentado na frente da mesa da bibliotecária
(numa sala do térreo do velho casarão, numa noite chuvosa), comecei a folhear o
livro, me inteirar do assunto – um folhetim publicado em 1931, editado pela Globo
em 1933, reeditado pelo IEL em 1983, com prefácio elogioso de Barbosa Lessa (Secretário
de Cultura do Governo Amaral de Souza) – e a responsável pela biblioteca me
disse:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Leva pra ler em casa, Vítor. Só tu pra se
interessar por isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E completou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Se gostares, fica com o livro. Ninguém vai sentir
falta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pois eu o trouxe para casa, levei um tempão para ler
do início ao fim... e nunca mais devolvi. Até hoje tenho o livro como uma
espécie de tesouro roubado desse mundo escolar que frequentei. Um folhetim
romântico (de “sabor popular”, diz Barbosa Lessa), na qual uma moçoila de 15
anos, numa estância na região de Guaíba, no ano de 1777, desencadeia paixões em
dois marmanjos. Um deles, um contrabandista semibárbaro (filho de Jerônimo de Ornellas);
o outro, um tenente do Regimento dos Dragões, educado em Academia Militar e com
atos de bravuras na defesa da Colônia de Sacramento. Dois marmanjões caídos de
amores por uma guria.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdKWdn8842tzRqmI9XDZMvH-xXgoSp7dICQxgqT5USDmrU2JXgaDVmWrg4PO4dQTv0bh016KIMG4hWuXz8bQtc3pSc5H4hJ9Oh2evEwHoag7J39dh4p-QcoMuThuDnyPeHlq9cUlH2SIpFG7XzQcsIgxndpC3SFPIDRQ0EAWd31ODED5UJrfIDO5tHfABN/s4853/IMG_5339-001.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="3898" data-original-width="4853" height="257" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdKWdn8842tzRqmI9XDZMvH-xXgoSp7dICQxgqT5USDmrU2JXgaDVmWrg4PO4dQTv0bh016KIMG4hWuXz8bQtc3pSc5H4hJ9Oh2evEwHoag7J39dh4p-QcoMuThuDnyPeHlq9cUlH2SIpFG7XzQcsIgxndpC3SFPIDRQ0EAWd31ODED5UJrfIDO5tHfABN/s320/IMG_5339-001.JPG" width="320" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Além dessa trama romântica, uma narrativa da
formação da sociedade rio-grandense (a mistura dos bárbaros do campo com os conquistadores
europeus, mediados pelo amor de uma donzela) e a tentativa de criação de uma
lenda em torno disso. Um resultado sofrível, do meu ponto de vista, mas nem por
isso menos interessante.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Com a imaginação povoada por essas fantasias gauchescas
e românticas, eu atravessava o pátio entre o casarão e o prédio anexo e ia dar
aulas de História para as turmas de 5ª a 8ª séries. Algumas vezes falava do
passado sul-rio-grandense – as lutas de fronteiras, a presença dos indígenas, a
figura do gaúcho, as primeiras estâncias –, mas nunca sobre <i>O tesouro do
Arroio do Conde</i>. Essa estranha preciosidade eu sempre guardei só para mim.<o:p></o:p></span></p>
<div style="mso-element: endnote-list;"><!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="edn1" style="mso-element: endnote;">
<p class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20200.doc#_ednref1" name="_edn1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 10pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Aldo Obino
(1913-2007) fez crítica de arte no <i>Correio do Povo</i> (de 1938 a 1984) e era uma referência para quem se interessava por arte (mesmo não concordando
com sua perspectiva conservadora). Além disso, às vezes historiava a vida
cultural porto-alegrense e recordo que num dos seus artigos citou o papel de
Olintho de Oliveira (1865-1956) na criação da Academia Rio-Grandense de Letras
(1901) e do Instituto de Belas Artes (1908). Minha sogra, dona Célia (nascida
em 1912), era leitora voraz do Correio do Povo (das colunas de Obino inclusive)
e conversámos muito a respeito da vida cultural da cidade. A partir das suas
observações (muitas delas oriundas da sua vivência) fui aprofundando meu
entendimento sobre o passado porto-alegrense e, numa das nossas conversas, entrou o
doutor Olintho – que ganhou relevo para mim a partir do momento em que comecei
a trabalhar na casa onde ele morou algum dia.<o:p></o:p></p>
</div>
</div>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-20826086333187287662023-11-20T15:43:00.000-03:002023-11-20T15:43:07.742-03:00Motorista bonita e atraente<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Peguei um aplicativo na saída do shopping e entrei
no carro fazendo comentários a respeito do tempo: as temperaturas altas, as
chuvas que não acabam, essas coisas. Banalidades. Mas logo percebi a extrema
beleza da motorista – mulher loura de cílios longos, unhas grandes e pintadas,
figura de capa de revista – e me calei. Vê só o que pensei: “Ela vai achar que
estou dando em cima”. Me aquietei e fiquei olhando pela janela. Sete quilômetros
entre o shopping e o meu apartamento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Tenho escutado tanto a respeito de mulheres que se
sentem abusadas, agredidas, humilhadas, que nem sei mais avaliar. Às vezes acho
exagero por parte delas, mas vá saber. Melhor estar atento e ter cuidado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Então ouvi a motorista falando e demorei a entender
que não era comigo, mas com alguém num aplicativo do celular fixado no painel
do carro. Uma conversa que eu não compreendia, pois o som era baixo, de repente
aumentava exageradamente e depois voltava a diminuir. Quando o som aumentou novamente,
a voz gritando dentro do veículo, a motorista se desculpou e disse que era
coisa do aplicativo. “O som não é bom”, ela falou, “não é equilibrado”. E
explicou que era um grupo de motoristas, mais de cem, na cidade e na região, e
que eles estavam em contato o tempo inteiro. Se algum fosse assalto e agredido,
eles logos socorriam. Se sumisse, por qualquer razão que fosse, eles logo
encontravam. Acionavam Deus e o Mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Observei mais uma vez o perfil bonito e atraente da
motorista e pensei se ela estava me avisando de alguma coisa. “Tá me tomando
por bandido ou abusador?”, pensei. Eu estava de bermudas, barba de três dias, e
quis que a viagem terminasse logo. A mulher seguia falando e explicava os
cuidados que tinha de tomar, especialmente fazendo horário noturno. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eram nove da noite e eu só pensava se eu pisara na
bola, dissera alguma coisa indevida, sei lá, os protocolos de convívio social
se complicaram, as palavras passaram a ser alvo constante de vigilância (para
identificar e coibir linguagens racista, machista, discriminatória), eu às
vezes não policio minha fala... e bem posso cometer algum deslize.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A motorista continuava a conversa a respeito do
grupo, que tinha como símbolo uma caveira e não fazia distinção de sexo, orientação
sexual nem raça. “Afinal é tudo igual”, ela dizia, “por trás da pele, do sexo,
é só osso e esqueleto, uma caveira, não é mesmo?” E eu respondi que sim e ela
emendou, animada: “Um grupo preocupado com segurança de todos”. E fui
percebendo que não tinha nenhuma mensagem sub reptícia para mim. Era apenas a
fala de uma mulher entusiástica com a sua atividade profissional, certamente feliz
por estar na noite, conversando com seus colegas de profissão e criando uma
rede de comunicação fraterna sobre o traçado da cidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Quando ela estacionou perto do meu prédio, desci
aliviado. Era uma motorista bonita e atraente, a mais bonita que já encontrei
até hoje. Engraçado eu ter achado que pisara na bola e ela estava dando o
troco... Devo andar muito assustado, ressabiado e imaginando coisas.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-28856726576745194192023-10-24T18:04:00.002-03:002023-10-24T18:04:42.620-03:00Modelos de negócios e de crimes<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em julho de 2018 fiz um passeio a Rocinha, no Rio
de Janeiro. Uma caminhonete com carroceria adaptada para transporte de
passageiros passou na frente do hotel, minha companheira e eu embarcamos, e tive
a impressão de que íamos a um safari. Num grupo de dez pessoas, canadenses na
sua maioria, éramos os únicos brasileiros. “São os estrangeiros que gostam de
visitar as favelas”, explicou o guia da excursão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Descemos no alto da Rocinha, o guia trocou sinais com os moradores (para se assegurar que
“a situação estava sob controle”) e seguimos
a pé pelo bairro durante toda a manhã, caminhando até o asfalto da Av. Engenheiro
Mac Dowell. Ruas estreitas, habitações de todos os tipos (muitas delas com
pouca iluminação solar), “lajes” com acomodações para festas, motocicletas
de alta cilindrada nas ruas e dentro das casas. Um bairro com aparência tranquila,
com pessoas idosas na porta das casas cumprimentando os passantes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No entanto, lá pelas tantas, o guia me avisou que
segurasse a máquina fotográfica de maneira que não parecesse que eu estivesse
filmando. “Os olheiros do tráfico estão atentos”, ele avisou. No caminho
cruzáramos por policiais fortemente armados, mas isso não significava que os
traficantes não tinham algum controle da área. Algo difícil de entender: um
território compartilhado pelos poderes da polícia (do Estado) e o dos
traficantes. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Realidade difícil, claro, para quem não é carioca. Na
véspera escutara uma moradora do bairro (garçonete na Confeitaria Colombo, no
interior do Forte de Copacabana) e ela garantira que a Rocinha era um local bom
de morar. “Às vezes tem tiroteio, mas a gente aprende a conviver”, ela
explicara.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Retomo esse passeio inesquecível, pois terminei de
ler <i>A República das Milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro</i>,
de Bruno Paes Manso (Ed. Todavia, 2020), e a Rocinha é o único local que
conheço dessa vasta região de bairros cariocas disputados por bicheiros,
traficantes e milicianos. Locais dominados por “elites
armadas, tirânicas e criminosas”, segundo o autor. Grupos que se constroem como
verdadeiros reinos (semelhantes aos de “Game of Thrones”, compara o autor) que tanto
enfrentam a ordem estatal quanto se misturam com o aparelho do Estado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Bruno Manso é jornalista e seu livro é tanto uma
abordagem jornalística quanto histórica e sociológica dos modelos de crime no
Rio de Janeiro. O modelo já tradicional dos bicheiros, dos traficantes de drogas
(a partir da década de 1980) e das atuais milícias (formadas no início dos anos
2000), todos eles inter-relacionados. Modelos de domínio territorial, de
negócios e de crimes, expressões do empreendedorismo carioca e com
características distintas do crime paulistano. Em São Paulo, por exemplo, o PCC
(um dos campos de estudo do autor) assume a sua “condição marginal” e seus
integrantes se dizem atuar “do lado certo de uma vida errada”. No Rio de
Janeiro, não, os criminosos são mais confiantes. No caso específico das
milícias (lideradas por policiais) eles se sentem “como se representassem o
estilo de vida correto”, como se os seus argumentos tivessem vencido os dos
defensores do Estado de Direito.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPaCK06nCrUqkKRRSh_69UAEczPm-UnO1Lj8W7oTFcIcz5aUMYdagTyShJ_r1Xv7OLeQ_WkJ5gcm7U6W1OCAg_CsyZ8rFJmKzYQ1VGGcVPAVSwi7lUH0VmDxkip2HCjZvUvSmxXAWhxiQkKg4bpDBShA2SXVp77sozN-FTclns-rtWPERRjyAHakq4WpDc/s6000/IMG_5007.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="6000" data-original-width="4000" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPaCK06nCrUqkKRRSh_69UAEczPm-UnO1Lj8W7oTFcIcz5aUMYdagTyShJ_r1Xv7OLeQ_WkJ5gcm7U6W1OCAg_CsyZ8rFJmKzYQ1VGGcVPAVSwi7lUH0VmDxkip2HCjZvUvSmxXAWhxiQkKg4bpDBShA2SXVp77sozN-FTclns-rtWPERRjyAHakq4WpDc/s320/IMG_5007.JPG" width="213" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Para exemplificar essa certeza e confiança, o autor
cita os diversos casos de milicianos homenageados e condecorados pela
Assembleia do Rio de Janeiro (ALERJ), como ocorreu com o policial Ronnie Lessa
(o assassino de Marielle Franco) e o cap. Adriano da Nóbrega (integrante
do Escritório do Crime). Homenagens que parecem legitimar a prática miliciana aos
olhos de uma população (um grande setor da sociedade brasileira) que não
acredita nem confia em instituições democráticas, Direitos Humanos e Estado de
Direito. Sinais assustadores
(as milícias e sua expressão política) de um tempo que alguns de nós achávamos
impossível de se estabelecer na atual sociedade brasileira.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-43230643464987100092023-10-11T10:35:00.002-03:002023-10-11T10:35:32.420-03:00Uma cena kafkiana<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma manhã acordei na cama de uma mulher e senti a
minha pele transformada numa superfície cheia de escamas (semelhante a um
besouro), como se eu fosse um Gregor Samsa, o personagem da <i>Metamorfose</i>,
de Kafka. Eu tinha 20 anos, a noite não fora ruim, pelo contrário, mas parecia
que eu transpusera algum limite e isso não passaria sem punição. Nunca vivera uma
experiência sexual tão satisfatória e precisei me esforçar para vencer a sensação
pavorosa de me metamorfosear em um ser repulsivo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Há um ano eu era paciente de uma psicoterapia e um
dos resultados do tratamento se revelou naquele amanhecer. Sim, eu venci o
monstro, isto é, a mim mesmo, e pude (após momentos angustiantes) voltar à
realidade do meu corpo e sentir (com prazer) a respiração da mulher ao meu lado.
A luz do amanhecer entrava pelas frestas das venezianas, revelava os contornos do
quarto (um armário com livros na parede em frente a cama, um armário de roupas
à minha direita) e o corpo da mulher ao meu lado, dormindo suavemente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A sensação da pele escamada como a de um inseto foi
desaparecendo, eu passei a mão sobre meu peito, sobre as pernas, senti que tudo
estava normal e foi como se regressasse de um poço muito sombrio... A mulher ao
meu lado respirava mansamente, os dois braços junto aos seios, uma de suas
pernas me roçando, tocando em mim, me fazendo existir como eu nunca conseguira
até então.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu apenas sabia o seu primeiro nome, no que e onde
trabalhava (era secretária bilíngue de uma grande indústria), algumas
preferências literárias e cinematográficas, e não muito mais que isso. Nós nos conhecêramos
numa janta na casa de amigos comuns, na véspera, e nem sei como terminamos
juntos... A primeira noite de uma relação que se estendeu por quatro ou cinco
meses e não posso me queixar de coisa alguma. Apenas da minha juvenilidade e do
modo como pus tudo a perder, isto é, fazer a nossa relação ir água abaixo. Incapacidade
completa de saber os limites do nosso relacionamento (éramos, no mínimo,
pessoas com trajetórias distintas: ela, uma mulher independente de 24 anos; eu,
um universitário sustentado pela família), incapacidade de equacionar aquela
relação/namoro completamente inusitada para mim. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Muitos anos depois nos encontramos na Avenida
Salgado Filho – ela casada e com filhos; eu, também casado e já com uma filha –
e pude sentir que não ficaram mágoas. Éramos dois antigos amantes mostrando fotos
de nossos rebentos e dando vagas do que fizéramos e fazíamos de nossas vidas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mas naquela manhã de inverno de 1976, eu era um corpo
que se debatia com uma transformação semelhante a de Gregor Samsa. Por um triz
não embarquei no mesmo infortúnio do personagem kafkiano e afundei na minha fantasmagoria.
Por um triz não perdi a minha frágil humanidade. Recordo que um dia, num café
da manhã, tentei lhe contar a angústia daquele amanhecer, a minha história kafkiana...
e ela não quis entender. Colocou mais leite e café na minha xícara e achou
graça da minha maluquice.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não recordo a minha reação. Acho que fiquei calado,
observando-a admirado, saboreando sua maneira de ver a vida sem grandes
complicações e conduzindo o jovem que eu era para o coração da vida adulta.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-29601436825769203312023-10-09T07:56:00.003-03:002023-10-10T11:12:53.543-03:00Uma nova mulher<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><a name="_Hlk147490847"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma amiga me perguntou porque dei
a ela, dois meses atrás, uma xícara com o desenho de um bigode. Eu disse que
não sabia direito, mas que intuíra, na época, que ela andava com namorado novo.
Contei, então, que eu estava tomando café numa confeitaria, olhei as prateleiras
com diversas xícaras, doces e chocolates, e lembrei dela. Seu aniversário era
por aqueles dias e eu escolhi a xícara com bigodes e a enchi de bombons. Uma presente
simples, uma lembrança, que deixei com a sua secretária. Eu a havia encontrado
semanas antes, ela falara sem parar e dera algumas pistas quanto a “alguém
andar na área”, a principal delas a de que aderira ao consumo de vinhos.<o:p></o:p></span></a></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Uma taça
relaxa, tu disseste, me olhando de um modo enviesado e engraçado que me fez
imaginar coisas – expliquei. – Afinal tu nunca gostaste de bebida alcoólica e pensei
num homem experiente te convencendo a beber uma ou duas taças para relaxar.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Trabalhei
com minha amiga anos atrás e acredito que ela esteja beirando os cinquenta anos.
Ela sempre fez mistério em relação à idade e imagino, devido aos filmes que assistiu
no cinema, que ande nessa faixa etária. Digo isso a ela - depois de comentar que ela anda sempre muito vistosa, atraindo olhares por onde passa - e recebo um
sorriso de volta. É uma das suas habilidades esses cuidados: o da pele, da silhueta e das
roupas, investir no visual e embaralhar as impressões que os outros tenham
dela. Habilidade plenamente exitosa.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Minha amiga
terminou um casamento sem filhos e aparentemente ficou sozinha desde então. Cultivou
uma narrativa de agressões verbais e humilhações sofridas no convívio com o
ex-marido – um relato exagerado, no meu entendimento, mas vá saber o que vive uma
mulher com o seu parceiro. Eu acompanhei a vida dos dois, conheci o seu marido razoavelmente,
e acho minhas dúvidas pertinentes (mas não ponho a mão no fogo). Sei que ele
leu Simone de Beauvoir, defendia as pautas feministas e um dia até achou que
era capaz de entender as mulheres. Uma fantasia muito comum entre os homens do
meu círculo social: achar que a leitura d’<i>O segundo sexo</i> nos habilitou a
um entendimento e aproximação do universo feminino.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Vocês
nunca conseguiram se desprender do machismo dominante – ouvi minha amiga
afirmar certa vez e desconfio, em parte (mas só em parte), que ela tem razão.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Seja como
for, alguma intuição eu tenho em relação às mulheres, isto é, no caso da minha
amiga bispei e acertei que um homem andava frequentando o seu apartamento. Ela confirmou.
E acrescentou que se reinventou após a separação, que não é mais aquela mulher
que se deixava calar e que, nos novos relacionamentos que tem vivido, está
aproveitando muito mais. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Novos? –
eu pergunto surpreso e ela apenas diz que eles são melhores que o “falecido”.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pergunto também
se alguma vez ela se calou, se alguma vez ela deixou de fazer o que queria, e
ela responde que “não é bem isso”.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Eu sou
outra mulher, compreende?<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="mso-bookmark: _Hlk147490847;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não compreendo.
Mas essa crônica é uma homenagem a essa mulher que se sente mais dona de si própria,
da sua vida e do seu corpo, e assim se coloca no mundo, com maior autonomia e
capacidade de conquistar o próprio prazer (um prazer que entende que o mundo
lhe negou). </span></span><span style="color: red; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-67381652378856138662023-09-28T06:46:00.005-03:002023-10-03T08:12:02.418-03:00Proposta irrecusável<p><span> </span><span> </span><span> </span> <span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">Foi um ano de aflição e tristeza e Sabrina não
suportou viver dessa maneira. Terminara um casamento de longos anos sem saber o
motivo do companheiro fazer as malas e ir morar no outro lado da cidade e
resolveu aceitar a “proposta irrecusável” de um amigo com quem conversara nos
últimos meses. Amigo de conversas por telefone na madrugada que a ajudaram a vencer a solidão
e a insônia.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Enquanto via o antigo companheiro reorganizar sua
vida com outra mulher, sentiu-se incapaz de qualquer outra coisa além de
cumprir os horários de trabalho na escola, vir para o seu apartamento, ver TV, relaxar
e dormir (quando conseguia dormir). Sem filhos, sem gato nem cachorro, foi um
amigo viúvo que ocupou as suas horas e a distraiu. Num final de tarde, ele a pegou
na saída das aulas, a levou para o seu apartamento e, logo depois que ela entrou na sua sala, disse:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Minha empregada preparou um camarão como tu
gostas. – Apontou a mesa posta e foi abrir um espumante da Campanha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Com a taça na mão, bebericando deliciada – era um
vinho produzido numa vinícola do pampa, numa paisagem que fora a mesma da sua
infância –, sentiu o amigo se transformar num homem encantador:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Se quiseres, terás uma vida de princesa. Tu vens
morar aqui, tem lugar para montares um escritório e seguires fazendo o que
gostas. Se preferires continuar lecionando, continua. Se resolveres parar, não
tem problema, te sustento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ela tomou mais de uma taça de espumante (não tinha
o costume de beber) e quando se acordou no outro dia, na cama do amigo, soube
que ganhara “a vida que merecia”. Andou pelo apartamento de 180 metros
quadrados (como ele acentuara diversas vezes), pisando o chão com os pés
descalços, vestindo uma camisa do namorado, e decidiu que iria “viver com
Henrique e com tudo que ele proporciona”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Seis meses depois, no entanto, se pegou repetindo
para a manicure uma conversa antiga, da qual não conseguia se desprender:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Os homens não nos dão o devido valor. Eles não
sabem o que é isso: valorizar uma mulher. São machistas, nunca saíram do mundo
campeiro onde foram criados e têm enorme dificuldade de nos verem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A manicure levantou o rosto, parou de lhe fazer as
unhas dos pés, e perguntou se o Henrique não estava cumprindo o prometido. Ela havia
acompanhando o casamento da cliente desde o início e sabia tudo a respeito da “vida
de princesa”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A mulher olhou a manicure, olhou o ambiente ao
redor – um salão com várias mulheres, todas falando sem parar – e disse que não
ia deixar ser dominada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Ele está habituado a determinar tudo, no escritório,
na fazenda, mas ele que não pense que vai ser assim comigo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Mas ele já está mandando na tua vida?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Sabrina mirou a manicure e disse que não, ainda não.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Mas homem é homem – acrescentou.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A outra riu e comentou que a nova coleção de verão está
privilegiando padronagens de cores fortes e que ela deveria ver o que chegou na
loja junto ao salão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Sabrina voltou para casa, encontrou Henrique
esperando-a ansioso (com uma espumante no refrigerador, ele explicou) e logo a
abraçando e beijando atrás da orelha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Não, hoje não – ela falou. – Estou com enxaqueca.
Vou tomar um banho e me deitar. – E saiu apressada para o quarto, jogando bolsa
e pasta no sofá, e logo depois se dirigindo ao banheiro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">“Desde a separação não tenho sossego”, Sabrina diz
para si mesmo, sentindo sua vida de princesa escorrer pelo corpo junto com o
sabonete, a espuma no chão do box desenhando uma proposta que não soube recusar:
uma vida organizada, sem coisa alguma com a qual se preocupar. Escuta Henrique
abrir a porta do banheiro, sentar-se sobre a tampa fechada da privada e perguntar como
foi o seu dia, o que houve, e dizer que ele tem a solução para ela:<o:p></o:p></span></p>
<span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> – Conheço
um chá muito bom. Aprendi com a minha vó. Ela tinha dores de cabeça terríveis e
é tira-e-queda.</span>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-32919056064104244002023-09-26T10:51:00.001-03:002024-02-29T10:34:45.640-03:00Garotas com mães terríveis<p> <span> </span><span> </span><span> </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">Uma amiga me recomendou o filme “Uma garota de
muita sorte”, atualmente no catálogo da Netflix, e sua indicação não foi devido
ao tema central do filme (o estupro) e, sim, ao papel da mãe na trama. Uma
personagem secundária, minha amiga escreveu, dizendo que a figura a fez lembrar
conversas que tivemos a respeito de “Mamãezinha querida”, um filme que nos
impactou no início da década de 1980 e nos levou a pensar (no meu caso, a descobrir)
o papel das mães na formação das filhas.</span></p><p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSd0gvvStmRzNWcuIC62Jix7q7r71I-zt0ewZVMydSsf2HgjDVhHbPHeYlYuaIlr8l6H7qsfXrriouNF35isfqvRx9oaK1j-lzy857OVP83fcA5y0u6AKFsA5IfutFUwTBVCmXgIhZzrSv8v7zy8a17DXeEqZ8xHjEbNkVjT5-rRr0a1zpyrkzr8N3MQRz/s1600/3403894.webp" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1080" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSd0gvvStmRzNWcuIC62Jix7q7r71I-zt0ewZVMydSsf2HgjDVhHbPHeYlYuaIlr8l6H7qsfXrriouNF35isfqvRx9oaK1j-lzy857OVP83fcA5y0u6AKFsA5IfutFUwTBVCmXgIhZzrSv8v7zy8a17DXeEqZ8xHjEbNkVjT5-rRr0a1zpyrkzr8N3MQRz/s320/3403894.webp" width="216" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Adianto que “Mamãezinha querida” é a respeito de Joan
Crawford (a memorável atriz de “Johnny Guitar”, de 1954), baseado num livro de Christina
Crawford, uma das filhas. Posteriormente surgiram críticas à visão de Christina,
feitas por amigos e os outros filhos, apontando exageros e uma dose de vingança
da filha em relação à mãe. A cena de surra com um arame de cabine, no entanto,
é antológica no quesito crueldade materna. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Seja como for, a adequação ou não da versão cinematográfica
à verdade da atriz não é o assunto dessa crônica. Nem tenho conhecimento para
tanto. O assunto é simplesmente as mães e o que elas podem fazer/causar às filhas,
quando não conseguem ser “mães nutrientes e acolhedoras” – uma conversa
que minha amiga e eu tínhamos no início da década de 1980, quando as relações entre
pais e filhos eram “o feijão nosso de cada dia”, intrigados que estávamos com a
dinâmica das famílias de nossos alunos e também as nossas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em “Uma garota de muita sorte” a mãe não é tão tirânica
quanto em “Mamãezinha...”, mas igualmente cumpre o triste roteiro de não
acolher a filha e, dessa maneira, colaborar para que ela se sinta "uma mulher ferida”, antes mesmo do episódio central
da narrativa (o estupro coletivo da filha, numa farra estudantil, inclusive
pelo namoradinho). De certa forma “a garota de sorte” do título (uma ironia) já
entra na adolescência (na fase do despertar da sexualidade) desprotegida, e o
filme é claríssimo nisso ao expor o tipo de relação da mãe com a filha (sem
surras, mas com muito rigor). Uma mãe que conduz a filha na direção da ascensão
social e é severa quanto a qualquer deslize que possa comprometer esse projeto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No início da década de 1980, minha amiga e eu
comentávamos trajetórias femininas menos dramáticas do que as vividas pelos
filmes citados, mas o cinema era a nossa chave para ingressarmos nesse mundo complicadíssimo
das relações entre mães e filhas (sempre com acréscimo de pais ausentes, como
no caso das obras citadas). O emaranhado mundo das chamadas “mulheres feridas”
que um dia eu pensei entender e a respeito do qual essa amiga avisou: “Tu não
vais entender, homem nenhum compreende”. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Realmente eu nunca entendi, mas nem por isso deixei
de estar atento ao assunto. Assisti ao filme indicado e mais uma vez me deparei
com esse tema tão delicado e brutal ao mesmo tempo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- “Uma
garota de muita sorte”, dir. de Mike Barke, c/ Mila Kunis no papel principal.
EUA, 2022, 115 min.<o:p></o:p></span></p>
<span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- “Mamãezinha querida”, dir. de Frank Perry, c/
Faye Dunaway no papel de Joan Crawford. EUA, 1981, 130 min.</span>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-85458678368505215862023-08-10T13:24:00.002-03:002023-09-23T16:03:17.648-03:00Tango argentino<p> <span> </span><span> </span><span> </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em 1967, minha família se mudou de Pelotas para
Porto Alegre e fomos morar num apartamento no Bairro Floresta. Até então vivíamos
em casa com quintal e prédios de apartamentos não faziam parte do nosso
cotidiano. Lembro que eu visitava alguns parentes que moravam “nessas casas empoleiradas
umas por cima das outras” e achava graça. A disposição espacial das peças era
diferente das casas “normais”, isto é, aquelas construídas diretamente em cima
do chão, e eu não imaginava que um dia faria parte dessa população... aérea.
Entretanto, com onze anos de idade essa realidade mudou... e nunca mais voltei
a morar numa casa.<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDWoaoYj1vi2tC7ZYK_NXIh66U2HvhnMLOqg8Znf29XJgB3OcZWpb33QrXy3Mb8ex-uidKBVwTtXxiR5Ge0cd4tsVfXQqNg36samo6U5Qg8_YSDwa4abK93Zo4KxO2epKcuTg7y4v9EoYAoGsWUWI577dk4wxKbiXaDZtOn9345oS_v8YbKPGLHtTExXWV/s1200/Gardel.webp" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1200" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDWoaoYj1vi2tC7ZYK_NXIh66U2HvhnMLOqg8Znf29XJgB3OcZWpb33QrXy3Mb8ex-uidKBVwTtXxiR5Ge0cd4tsVfXQqNg36samo6U5Qg8_YSDwa4abK93Zo4KxO2epKcuTg7y4v9EoYAoGsWUWI577dk4wxKbiXaDZtOn9345oS_v8YbKPGLHtTExXWV/s320/Gardel.webp" width="320" /></a></div><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Lembrei disso escutando um tango de Gardel, vejam
só. Meus pais costumavam ouvi-lo numa eletrola que ficava na sala do
apartamento no qual passamos a morar em Porto Alegre e onde havia um corredor
ligando esta peça à cozinha. Um corredor por onde eles, o pai e a mãe, dançavam
um “tango figurado” volta e meia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Recordo o pai realizando o ritual de colocar um
disco na eletrola e vou me estender na descrição da cena. Tirar o disco da
embalagem (um envelope colorido, com requintada capa com foto do cantor), segurar
o disco pelas bordas (para não sujar os sulcos), encaixá-lo num pino sobre o prato,
trazer um braço de metal para segurar o disco e então ligar o aparelho. Aí,
então, de modo automático, o braço soltar o LP sobre o prato e, ao mesmo
tempo, outro braço, com uma agulha na ponta, avançar, colocar a ponta da agulha sobre a
primeira faixa do disco... e então iniciava a reprodução da música.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O pai chamava a mãe para um tango argentino e
lá vinha ela (às vezes de avental) e os dois saiam dançando, primeiro umas
voltas pela sala pequena, depois pegavam o corredor e iam em direção à cozinha. Faziam um floreio na frente do refrigerador e retornavam até a sala,
enquanto eu os observava admirado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Isso acontecia geralmente aos domingos pela manhã,
enquanto o almoço era preparado. A mãe ria inebriada, dizia que “tinha mais o
que fazer” e depois de alguns <i>passitos</i> largava o pai na poltrona me contando
como eram os bailes que eles frequentavam nos clubes Comercial e Diamantino, em
Pelotas, que sempre encerravam com um tango, mesmo no Carnaval.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pois comecei essa crônica falando do apartamento
que fomos morar em Porto Alegre para melhor descrever o corredor estreito
(estreitíssimo, comparado às pistas de dança do Comercial e Diamantino), onde
meus pais davam alguns <i>passitos</i>, dançavam um tango argentino e se divertiam.
Momentos felizes que eles encenavam no espaço diminuto de um apartamento de
classe média porto-alegrense e que compartilhavam com os filhos. Lembranças que
trago como um tesouro. Pérolas que reviro uma por uma, me deslumbrando com os detalhes
ao som de “Por uma cabeza” e “La Cumparsita”.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-48921076671195133862023-06-26T22:20:00.001-03:002023-06-26T22:20:28.354-03:00Tempo de entusiasmo<p style="text-align: justify;"> <span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">Muito bom lembrar o tempo em que lecionava em
Canoas. Eu tinha entre 24 e 27 anos e é chover no molhado proclamar que é um
tempo de entusiasmo. Mas vá lá. Eu ainda me sentia experimentando o magistério
e tanto me emocionava acompanhando os alunos numa festa cívica (como o desfile
de 7 de setembro), quanto participando de reuniões com os pais dos alunos nos bairros
Harmonia e Mathias Velho nos períodos de greve.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Numa dessas reuniões de professores grevistas com os
pais dos alunos, um senhor se aproximou de mim e disse que não sabia que
ganhávamos tão pouco.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Estávamos numa sede de CTG, na Mathias Velho, o
senhor tinha um jeito de gaúcho e explicou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Me desculpa a franqueza, mas eu não estudei grande
coisa e ganho muito mais do que vocês. Assim não está certo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não lembro a atividade profissional do homem (certamente
um operário qualificado) e apenas recordo o meu constrangimento. Sim, eu fiquei
sem jeito. Meu pai já havia cantado a pedra, alguns anos atrás, quando tentara
me dissuadir de prestar vestibular para o Curso de História e ser professor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Tu vais te sentir melhor no Direito – ele falou. –
E não precisa advogar, se não quiseres. O Curso de Direito abre um leque grande
de possibilidades, o Judiciário tem cargos muito bem remunerados, e tu vais ter
condições de comprares os livros de História que quiseres – acrescentou. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Aquele homem de rosto envelhecido me observava de
alto a baixo e eu o ouvi como se fosse meu pai (falecido há pouco tempo, naquela
época). Os alunos também já haviam me dito algo parecido:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Meu pai não completou o ginásio e tá melhor que
muito professor de faculdade completa. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O pai desse aluno trabalhava numa fábrica
barulhenta em Canoas. Lembro desse detalhe porque ele falava do cuidado do pai com
os ouvidos (“Não dá pra trabalhar sem fones de proteção”, ele dissera), mas não
se queixava do salário.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Ossos do ofício aquela barulheira toda – esse aluno
comentou, numa aula em que eu abordava a industrialização, as condições de
trabalho no interior das fábricas, a construção do mundo contemporâneo. Uma realidade
fabril da qual Canoas era um exemplo e que eu conhecia muito pouco.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Cruzava as ruas da cidade, entrava nas casas e me
espantava com o que me contavam. Me admirava, por exemplo, com o modo como as
pessoas encaravam as condições de vida (a precariedade, a dureza das jornadas
de trabalho), sem grandes esperanças quanto à alguma possibilidade de mudança.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Olha, Vítor – me disse uma colega, numa tarde em
que saímos de uma reunião do Núcleo do CPERS e fomos na direção da sua casa
tomar café. – Eu sou filha de pai e mãe operários. Meus irmãos também trabalham
em fábrica. Minha mãe não trabalha mais. E eles nunca falaram em revolução e
socialismo para transformar o mundo. Isso eu aprendi só na universidade. E, se
eu contar para eles, vão achar que não é coisa muito certa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– As coisas andam devagar por aqui – ela me avisou.
– É um mundo muito diferente do que imaginas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Acho que ela sabia dos meus entusiasmos
mirabolantes. Eu não queria apenas ensinar, eu pretendia colaborar “na construção
de uma consciência crítica capaz de transformar a realidade”. Eu não queria
apenas conhecer o mundo da periferia das metrópoles, eu queria intervir na sua
dinâmica ou algo assim.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E escrevo isso lembrando que eu pousei a caneca de
café sobre a mesa, me servi de uma fatia de bolo, e não esmoreci. O mundo podia
ser muito diferente do que eu imaginava, mas isso não mudava coisa alguma
dentro de mim.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> </span></p>
<span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">Detalhe: essa reunião do Núcleo do CPERS que nós
participáramos era para tratar da preparação de uma greve cuja pauta incluía um
piso salarial de 2,5 salários mínimos. Uma luta e tanto, da qual eu estava
certo de que sairíamos vencedores. Assunto para outra crônica, mais adiante.
Assunto difícil de encarar.</span></div></span>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-66401969070454680102023-06-15T16:13:00.002-03:002023-06-15T16:13:38.845-03:00Tu sabias que não existe racismo no Brasil?<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em 1978 e 1979, lecionei no Grupo Escolar Júlio
César Ribeiro de Souza. Recém concluíra a Licenciatura em História, tinha 22
anos, e estava super disposto a entrar na lida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A escola ficava na entrada de Alvorada, numa
baixada, e, às sete da manhã, não era raro estar envolta pela neblina, devido a
um rio que passava nas imediações e que nunca conheci. Eu desembarcava do ônibus,
atravessava a estrada e entrava pelo portão da escola. Pouco conhecia dos
arredores da escola.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma escola sem muro de tijolos. Apenas uma cerca de
tela com um grande furo numa das extremidades, que a D.E. já avisara que não
tinha verba para consertar. A escola que providenciasse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Um dia, por volta do meio-dia (a escola sem alunos,
algumas professoras almoçando numa sala), um homem arrastou uma menina para debaixo
dos prédios das salas de aula e ninguém viu nem ouviu coisa alguma. (A escola
era do tipo brizoleta, com os prédios de madeira erguidos a uma pequena distância
do chão, numa altura que dava para um homem entrar, se arrastando.)<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O homem queria violentar a guria, mas ela escapou. Saiu
correndo, gritando, pelo pátio da escola, e o sujeito escapou pelo mesmo buraco
da tela por onde havia entrado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As professoras acudiram a menina e ela, logo que
viu que o homem sumira, também escapuliu.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As professoras contavam aliviadas que nada havia
acontecido. O estupro não se consumara. A menina não era aluna da escola,
estava passeando por ali e o homem a atacou. Eram conhecidos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Escutei essa história na sala dos professores, ao
lado de uma janela, olhando o espaço entre o chão e os prédios, onde volta e
meia se escondia algum cachorro com o qual a gurizada tinha se divertido jogando
pedras.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Um mundo girando ao meu redor com os seus fatos
comezinhos e eu preocupado com o fato da escola ser “um aparelho ideológico do
Estado” e eu não saber como atuar para não ser um agente da reprodução da dominação
burguesa... Sem saber como desenvolver o pensamento crítico na gurizada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Boa essa, não é mesmo? Mas eram essas as minhas
preocupações centrais. Um dia entreguei para a Coordenadora Pedagógica as
provas que iria aplicar nos alunos das quintas séries (a escola só atendia até
a quinta série do 1º Grau) e ela só corrigiu um e outro deslize no português. O
tema era a colonização, a montagem do sistema colonial e escrevi a palavra “açúcar”
(cana-de-açúcar, engenho de açúcar) sem acentuar. Que cochilo!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Havia uma questão sobre escravidão e racismo, a
Coordenadora não fez nenhuma objeção, mas me avisou que havia uma determinação
da D.E. recomendando que racismo não fosse abordado, pois isso não existia no
Brasil.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Tu sabias que não existe racismo no Brasil?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A Coordenadora era uma mulher de cabelos louros,
pele alva, muito alva, e eu não sabia se era para rir ou não. Ela percebeu meu embaraço
e sorriu.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Apliquei a prova e os alunos não se saíram mal na
questão sobre as relações entre o nosso passado escravista e o racismo existente
na sociedade brasileira dos anos 1970.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Tenho a impressão de que a maioria dos alunos não
era negra, o tema, porém, era conhecidíssimo deles todos. Não houve polêmica. Certamente
eles ignoravam o que os pedagogos da D.E. pensavam a respeito das relações raciais
no Brasil.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-68296931149977558262023-04-15T15:21:00.002-03:002023-05-06T19:00:40.881-03:00Pra que estudar essas coisas?<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No final dos anos 1970, a violência urbana parecia
ser um fenômeno exclusivo da periferia das cidades, especialmente das
metrópoles. Em 1979, cursei uma disciplina de sociologia no Curso de Comunicações
da UFRGS (estava pensando em ser jornalista, além de professor) e este foi um dos temas das aulas:
o mapeamento da violência urbana. Rádio e televisão passavam a dar maior
destaque aos casos e se tinha a percepção de que houvera um crescimento do
fenômeno.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Não é bem assim – afirmava o professor. – Os dados não apontam um aumento das ocorrências nem um avanço dos
casos para a região central das cidades. O que acontece é um aumento do foco,
da quantidade de notícias e de um certo sensacionalismo a respeito.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Seja como for, a percepção que se tinha era de que a
periferia das grandes capitais, em especial as vilas populares, eram o
território por excelência da violência e essa se expandia. Isto, por exemplo,
era o que se comentava entre os professores, na Escola Estadual Affonso Charlier, em
Canoas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– A Mathias Velho é um exemplo disso. Aqui se formaram
algumas gangs, inclusive uma que fez muitos assaltos no Litoral Norte até pouco
tempo – afirmava um colega, que morava em Canoas desde muito tempo, endossando
a hipótese da bandidagem como fenômeno das periferias. – Eu até conheço essa
gente porque alguns foram nossos alunos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Quando ficava na escola após o turno da tarde,
aguardando as aulas da noite, conversava com esse colega e ele me atualizava as
histórias da região.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Canoas sempre recebeu gente de tudo quanto é lugar. Meus pais vieram de Santa Catarina e eu nasci aqui. O pai já tinha um
pouco de conhecimento técnico, começou de baixo, fez cursos e se deu bem. Mas
não havia nem há lugar para todos. Nem a maioria está preparada. Afinal, quem possui
qualificação para entrar na Refinaria Alberto Pasqualini?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele apontava
os livros que nós utilizávamos na escola e perguntava:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– O que isso soma para a gurizada? </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Muito pouco - ele próprio respondia. – Nós, numa escola de Primeiro Grau, somos só o ponto de
partida para eles. Essa gurizada precisa de muito mais<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Essa conversa se dava no contexto da abertura do
Regime Militar (Governo Figueiredo), quando havia o
questionamento a respeito da democracia ser a melhor alternativa para a sociedade
brasileira ou não. Um tempo em que era comum alguém dizer que a “ditadura não
tinha sido tão ruim”, como era o caso do meu colega. No meu entendimento, no entanto, nem havia esse questionamento. O Regime Militar era o pior dos mundos e
agravara todos os índices sociais do Brasil, tradicionalmente periférico e
subdesenvolvido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pelo que lembro, meu colega considerava hipótese de
que o Poder Militar fora capaz de manter a segurança pública e tivera até bons
projetos educacionais, como o PREMEM, no qual surgira aquela escola.<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20197.doc#_edn1" name="_ednref1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a>
Mas isso era uma conversa dele que eu não compreendia. No que concordávamos era
de que a violência se tornara um problemão e a escola poderia colaborar no
sentido de, ao menos, “salvar a criançada”, preparando-a para o mundo do
trabalho moderno. Mas o que fazer, como reformatar a escola? Questões que
angustiavam alguns professores.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Pra que estudar essas coisas todas? – perguntavam
os adolescentes mais salientes e antenados ao modo como a roda do mundo girava,
apontando os currículos oficiais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Era nesse clima que eu entrava em sala de aula para
vender o meu peixe, isto é, desenvolver o currículo mínimo: falar a respeito da
emancipação das antigas colônias de Portugal e Espanha, “um fenômeno que deve
ser entendido no quadro mais amplo do desenvolvimento do capitalismo europeu,
suas necessidades”, etecetera.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mais de quarenta anos depois, fico pensando: O que
será que os alunos pensavam a respeito da minha conversa? O que o conteúdo das
minhas aulas somava para aquela gurizada?<o:p></o:p></span></p>
<div style="mso-element: endnote-list;"><!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="edn1" style="mso-element: endnote;">
<p class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20197.doc#_ednref1" name="_edn1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span face=""Calibri",sans-serif" style="font-size: 10pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> O PREMEM (Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio) funcionou entre 1968 e 1976 e deu origem a Escola Affonso Charlier. Os professores que ingressaram no projeto falavam especialmente dos salários altos que recebiam e se queixavam do fato de terem sido colocados na vala comum do
Magistério Estadual. Era um tempo (o da segunda metade da década de 1970) que se começava a discutir a respeito da “proletarização dos
professores”, isto é, o rebaixamento salarial da categoria e a sua perda de controle do
processo de ensino.<o:p></o:p></p>
</div>
</div>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-7862166468700858272023-04-13T16:59:00.003-03:002023-04-15T09:35:56.023-03:00"Você não soube me amar"<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Entre 1978 e 1991, lecionei em diversas escolas
estaduais, em Alvorada, Canoas e Porto Alegre. A única que eu lembro que tinha
o costume de realizar quermesses era a Escola Affonso Charlier, em Canoas, e a atividade durava um sábado inteiro. A festa começava no início da tarde, ia até meia-noite (um tempo de
trabalho depois trocado por turnos de folga). Trabalho extenuante, mas
divertido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Numa dessas festas, em 1982, estou no pátio interno
da escola e escuto nos autofalantes a canção “Você não soube me amar”. Sucesso recente
que eu desconhecia. Comentei isso com uma colega e ela me perguntou, espantada:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Onde é que tu andas com a cabeça? <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Era a canção de estreia da banda Blitz, já fazia
meses que fazia sucesso no rádio e na TV, com apresentação no “Fantástico”, e
eu não sabia. Por onde eu andava mesmo com a cabeça?<o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgD8WWXjxOL44aWgRgPs8gYIopGQ1KnZGySuAxgkpz3gNyQ_kYBDwaxNs64XhI_pBUGJRiW9CszMj6_DfiBVqr3QwEoGq5e6w0jG8qWwBWfTkwSF9ogrZdp0RusG6OB1L2enz8mcbnmfdrzAHQQWZsKd5XGRNc8u70ADeTSnaSsCETatTiCsjYbm2TNyw/s860/blitz-v.webp" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="484" data-original-width="860" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgD8WWXjxOL44aWgRgPs8gYIopGQ1KnZGySuAxgkpz3gNyQ_kYBDwaxNs64XhI_pBUGJRiW9CszMj6_DfiBVqr3QwEoGq5e6w0jG8qWwBWfTkwSF9ogrZdp0RusG6OB1L2enz8mcbnmfdrzAHQQWZsKd5XGRNc8u70ADeTSnaSsCETatTiCsjYbm2TNyw/s320/blitz-v.webp" width="320" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Capa do LP da banda Blitz, 1982,</td></tr></tbody></table><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não escutava rádio, não assistia muita coisa na televisão
e o que pretendia era isso mesmo: viver de costas para os grandes meios de
comunicação. Atitude típica de intelectual daqueles tempos, crítico da
alienação, dos “enlatados importados dos Estados Unidos” ou coisa parecida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Casara em 1981 e minha mulher gostava de televisão.
Ela conseguira um aparelho pequeno (de cor vermelha, portátil, com imagens
P&B) e lembro dela assistir ao programa “TV Mulher”, pela manhã, e me
chamar para ver a Marta Suplicy (que eu aprendi a gostar). Eu trabalhava nos
turnos da tarde e da noite, e muitas vezes almocei assistindo “TV Mulher” e depois
saia correndo para pegar o ônibus (eram dois ônibus) para chegar na escola de
Canoas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Em compensação, se rádio e TV não estavam no meu
horizonte, eu acompanhava religiosamente a programação de cinema (pelos
jornais) e não havia final de semana que não saíamos para ver um ou até dois
filmes. Eu fazia reservas ao cinema hollywoodiano e isso já indica o espectador
que eu era. Minha mulher era quem me carregava para os filmes de sucesso (os
oscarizados, por exemplo), pois, se dependesse de mim, ficava apenas nos filmes
de arte, de política, essas coisas. Ou essas chatices, alguém diria.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Nesse mesmo sábado de quermesse, de 1982, entrei na
cozinha da escola e me deparei com as funcionárias cantando “Panela velha é que
faz comida boa” e me surpreendi. (Eu trabalhava na tenda que vendia quentão e
fora buscar mais bebida.) Achei a canção irreverente, divertida, disse que não
conhecia e também estranharam a minha ignorância. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não sabia coisa alguma do rock nacional e nem da música
nativista rio-grandense. “Você não soube me amar” estourara naquele ano e
também “Panela velha”, de Celmar de Moraes & Auri Silveira. Novidade demais
para mim. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu devia ser um bicho estranho, um sujeito fora do
ar. Um professor que pouco sabia além dos seus livros, filmes e jornais. Me propunha
a falar para os alunos a respeito do desenvolvimento do capitalismo, alertar
contra as irregularidades trabalhistas, que podiam ser minoradas se a classe
trabalhadora estivesse atenta, fortalecesse seus sindicatos, patati patatá, mas não sabia o que tocava no rádio e na TV.<o:p></o:p></span></p>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-8336870388730176736.post-66073937820849999032023-04-12T09:01:00.001-03:002023-04-12T09:01:29.513-03:00Sindicalismo às vezes atrapalha<p> </p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O melhor das aulas era o que surgia
espontaneamente. Eu sempre tinha um roteiro (plano de aula) escrito num caderno
(ou em folhas avulsas), mas não conseguia segui-lo. Nas aulas do Curso
Supletivo (na Escola Ana Néri) isso parecia ser a regra.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Certa noite, o planejamento do dia indicava a necessidade
de desenvolver o período da República Velha, dominada politicamente por cafeicultores,
voltados exclusivamente à exportação de seu produto, dispostos a fazerem a sociedade
e o Estado brasileiros girarem em torno dos seus interesses, e, de repente, aquela
conversa soou completamente sem sentido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Por que cargas d’águas a gurizada precisa
aprender isso? – eu perguntei a um colega, durante o intervalo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ele me respondeu na lata:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Porque está no currículo, porque isso vai ser
cobrado deles em algum momento, em alguma prova ou concurso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Era a resposta sabida e aceita, mas mesmo assim não
invalidava o questionamento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">As salas de aula na Escola Ana Néri eram pequenas,
atulhadas de classes e cadeiras, com pouco espaço para circulação, e muitas
vezes me senti acuado, de pé, diante dos alunos (espremido entre os alunos e o
quadro verde). Seguia o roteiro oficial (o currículo e as avaliações
recomendadas) e certa noite, ainda tratando da República Velha, abordei o
surgimento do mundo fabril, a nascente classe operária, a ausência de
legislação trabalhista e a formação dos primeiros sindicatos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Sindicatos são fundamentais para a classe
trabalhadora, pois asseguram melhores salários e também boas condições de
trabalho – enfatizei. – Olhem o que está ocorrendo no ABC paulista: um novo
sindicalismo está proporcionando ganhos concretos para os operários das montadoras
de automóveis. Um exemplo para o País.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Uma aluna na primeira fila fez uma careta e
acrescentou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Mas nem sempre é assim. Sindicalismo às vezes
atrapalha. Vê só o meu caso. Meu namorado trabalha no sindicato dos
comerciários, me viu lavando a vitrine da loja e denunciou o meu patrão. Eu fui
contratada para trabalhar no balcão e meu namorado disse que não era correto me
mandarem fazer serviço de limpeza. A loja pagou a multa e me mandou embora na
mesma hora. O que eu ganhei com o sindicato?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Fiquei parado escutando a guria, não sabendo como
encaixar a sua história na minha aula. Uma baita história, claro, um caso
concreto de ação sindical na vida de um trabalhador, mas não servia ao que eu
pretendia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Não é um bom exemplo – deu disse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No entanto, a turma inteira concordava com ela. Sindicalismo
era coisa que aqueles jovens adultos – muitos deles empregados em lojas e escritórios
– não viam com simpatia. Pagavam o imposto sindical, mas pouco sabiam dos tais
sindicatos. Uma realidade distante das suas vivências cotidianas, enquanto eu,
um professor entusiasticamente associado ao CPERS, vivia integralmente o mundo
sindical.<a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20195.doc#_edn1" name="_ednref1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><o:p></o:p></span></p>
<span style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">– Mas o exemplo da colega não invalida o que
estou dizendo – eu afirmava, reafirmava, com a impressão que estava pregando no
vazio.</span>
<div style="mso-element: endnote-list;"><!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<div id="edn1" style="mso-element: endnote;">
<p class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;"><a href="file:///D:/Users/Vitor%20Biasoli/Documents/Contos/Cr%C3%B4nicas/Cr%C3%B4nica%20195.doc#_ednref1" name="_edn1" style="mso-endnote-id: edn1;" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Calibri",sans-serif; font-size: 10.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></span></a> Naquele
tempo, o CEPRS (Centro dos Professores do Rio Grande do Sul) ainda não era um
sindicato e, sim, uma associação. Só se tornou sindicato com a Constituição de
1988. Mas para muitos de nós, “professores engajados”, era como se fosse. A
entidade vivia uma grande transformação e crescimento, assumindo cada vez mais
uma postura de defesa dos “professores enquanto trabalhadores da educação”, rompendo
com a ideia do magistério como sacerdócio (ideia muito comum, mesmo entre os
professores), e colocando a categoria no “quadro mais amplo da luta da classe
trabalhadora”.<o:p></o:p></p>
</div>
</div>Vitor Biasolihttp://www.blogger.com/profile/12804740296130795352noreply@blogger.com0