terça-feira, 13 de junho de 2017

Disciplinar e restringir

Assisti no noticiário da TV que a jovem prefeita de Roma, Virginia Raggi, estabeleceu um regulamento a respeito do uso das fontes históricas da cidade com pesadas multas aos infratores. Segundo as notícias que busquei no Google, está proibido o acampamento ao redor das fontes, assim como o consumo de bebidas, alimentos, banhos, lavagem de roupas, e também a utilização das fontes como lixeira ou local para escalar. A medida vem acompanhada da intenção de restringir o acesso de imigrantes e estrangeiros à capital da Itália e, pelo jeito, não visa apenas disciplinar os inquietos turistas. “Impossível pensar em mais estruturas de acolhimento”, disse a prefeita, indicando a sua preocupação com os imigrantes africanos que ocupam as ruas da capital da Itália.
Quando visitei as famosas fontes históricas de Roma – Fontana de Trevi, della Barcaccia, dei Quattro Fiumi (Quatro Rios) –, era inverno e não havia ninguém nadando ou dando banho no cachorrinho. Nem vi ninguém acampado nas imediações. Na Fontana de Trevi, o número de visitantes era enorme – visivelmente turistas – e nem pensei em cumprir o ritual de chegar na borda e jogar uma moedinha. Meus colegas que fizeram isso precisaram de muita paciência para chegar até a beira da fonte. Eu fiquei de longe, fotografando.



Numa outra ocasião, batendo pernas pelo bairro Salustiano – procurando a Igreja de Santa Maria della Vittoria, local da escultura de Bernini, “Êxtase de Santa Teresa” –, me deparei com a Fontana dei Mosè e penso ter visto o modo como os nativos utilizam suas fontes. Era início da noite e um bando de adolescentes estava sentado nas bordas da “piscina” da fonte, rindo, brincando, e alguns dando voltas em torno das esculturas dos felinos, para beber a água que sai de suas bocas. Águas cristalina, limpíssima, imaginei.
Fiquei de longe observando e aqui abaixo reproduzo foto que catei no Google, onde se vê a majestosa fonte e suas leoas. Um frio danado (era final de inverno) e aqueles jovens se comportavam como se estivessem numa noite de verão. Adolescentes parecem ser iguais em todos os recantos do mundo, pensei.

As medidas da Prefeitura bem indicam a preocupação de preservar o patrimônio de Roma - uma intenção louvável, quando se sabe que aumenta o número de depredações causadas por turistas -, mas parece que o novo regulamento está embutido num projeto mais amplo de organização do espaço público. Não apenas disciplinar o seu uso, mas restringir também a "qualidade" dos usuários. Um problema e tanto quando lembramos - e muitos italianos lembram disso - que a Itália resolveu os seus problemas sociais, no final do século XIX e ao longo do XX, exportando seus pobres para outros países. Na maioria dos casos, esses emigrantes italianos foram acolhidos - como ocorreu nos Estados Unidos, Brasil e Argentina - e puderam dar origem à proles numerosas.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Pompéia

Alguém já escreveu que as viagens continuam depois que chegamos em casa. O sujeito vai a Roma, Nápoles, Pompéia, e volta lembrando os lugares visitados, lendo e relendo os folders e livros adquiridos, vendo e revendo as fotos, e por aí vai, semanas e meses afora. É o meu caso. Estive em Pompéia numa única manhã, em fevereiro desse ano, e continuo caminhando pela Via dell’Abbondanza, tentando entender o que vi.
A Via dell’Abbondanza (Rua da Abundância) é uma das importantes artérias dessa cidade romana, soterrada por uma erupção vulcânica em 79 d.C. Fiz uma visita guiada com meu grupo de colegas de Campus Magnoli (onde estávamos estudando língua e cultura italianas) e nesta rua visitamos uma morada (domus) da elite local. Não sei se era a casa de Paquio Proculo ou do Sacerdos Amandus. Meu italiano trôpego não entendeu direito o guia e hoje, examinando o catálogo da cidade e o mapa com a localização das moradias, suspeito tratar-se da casa do Sacerdos Amandus. Tirei algumas fotos da casa, inclusive a de um afresco, que entendi como sendo uma representação de Andrômeda sendo salva por Perseu – como se vê na foto abaixo, no detalhe à direita. Este afresco se encontra no átrio da casa do Sacerdos Amandus (segundo o catálogo) e daí conclui que foi essa moradia que visitei. 


Andrômeda fora acorrentada para ser devorada por um monstro, Perseu passava pelo alto (voando em cima do seu cavalo Pégaso), quando avista a princesa e se encanta. Retira da bolsa a cabeça da Medusa (que recém havia matado e decapitado) e a apresenta ao monstro, petrificando-o. Vencido o terrível adversário, Perseu se inclina diante da bela Andrômeda.
O leitor mais bem informado poderá dizer se me enganei ou não. Da minha parte, continuo andando pelas ruínas de Pompéia, tentando decifrar os seus mistérios e encontrar os vestígios da cultura e da vida romanas ali escondidos, camuflados. Caminho pela Via dell’Abbondanza, entro no Fórum – a praça dos antigos prédios públicos para o exercício da política, da justiça, da religião e do comércio – e lembro que fui professor de História Antiga durante muitos anos.
Era um lugar como esse que eu tentava enfocar nas minhas aulas: um local onde as práticas da religião e do Estado se intercambiavam e forjavam um grande império e uma grande civilização (uma de nossas matrizes culturais). Vejo meus colegas alegres e falantes – somos felizes nessa manhã ensolarada e fria – e sinto que a algazarra da antiga praça romana se recria quase dois mil anos depois.
O Sacerdos Amandus caminha ao meu lado e pergunto a ele se aquele afresco de Perseu e Andrômeda lhe pertence. E arrisco:
- A bela Andrômeda foi inspirada na sua esposa, senhor Amandus?


segunda-feira, 5 de junho de 2017

A Coluna de Trajano

A Coluna de Trajano se encontra na Via dei Fori Imperiali, em Roma. Sobreviveu ao tempo. Quase dois mil anos. Foi mandada construir pelo imperador Trajano, que governou Roma entre 98 e 117 d.C. e conquistou a Dácia (atual Romênia). A coluna foi construída para comemorar esse feito militar.


Além da Dácia, as legiões de Trajano também conquistaram a Arábia Petreia – cuja capital era Petra, importante centro de caravanas para o Oriente – e isso rendeu dinheiro suficiente para realizar “um grandioso programa de edificação, embelezando Roma com esplêndidos palácios e monumentos, cujas ruínas ainda hoje podem ser admiradas”.
São essas ruínas que admirei no último mês de março, encostado num gradil, olhando o que os arqueólogos conseguiram desencavar das antigas construções de Trajano. O imperador mandou construir um novo fórum e ainda se pode ver os vestígios desse "grandioso projeto de edificações", em especial as lojas do antigo mercado e a enorme coluna.
Como os romanos da época olhavam a coluna e liam o extenso relevo contando as realizações do imperador?, pensei. Ficavam dando voltas em torno da coluna, para acompanhar a narrativa? Conseguiam visualizá-la com clareza? Eu olho e não consigo ver os detalhes. Naquele tempo a coluna era colorida e isso ajudava a leitura. Eu foco o zoom da máquina fotográfica e posso, então, visualizar melhor os legionários. Mas os contemporâneos do imperador, como eles faziam?



Paolo Liverani, professor da Universidade de Florença, explica que os antigos romanos não ficavam dando voltas em torno das colunas. Que eles estavam habituados a elas, conheciam seus temas, os códigos como eram abordados, e, ao olhá-las, tinham uma ideia geral do que se tratava. Não precisavam ler quadro por quadro do extenso relevo esculpido. Diante de uma coluna como a de Trajano, era claro aos contemporâneos que ela abordava a eficácia militar das legiões romanas, a derrota dos bárbaros e a exaltação das competências de Trajano e de Roma. Um monumento à poderosa civilização greco-romana, a qual o restante do mundo se submetia, e ponto final.
Mas eu sou um reles latino-americano, vindo das lonjuras do Extremo Ocidente e tenho dificuldade de compreender. Apenas isso: dificuldade. Por mais que tenha lido a respeito dessa civilização - durante anos fui professor de História Antiga, na escola fundamental e na universidade - é como se tudo fosse novidade. A Coluna de Trajano me indica isso. Revivo a emoção juvenil das primeiras leituras sobre a Roma Antiga assim como a avassaladora dificuldade de ter um entendimento claro dessa civilização. Nem por isso, no entanto, é menor a emoção. Desconfio que sou um bárbaro da Dácia, embasbacado com a grandeza de Roma e seus imperadores.