segunda-feira, 30 de abril de 2012

Crônicas de um busca

O livro Antes do passado: o silêncio quem vem do Araguaia, de Liniane Haag Brum (Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 270 p.), pode ser resumido como um conjunto de crônicas da busca de um integrante familiar ausente e presente ao mesmo tempo. Ausente, porque sumiu sem explicações e não mandou notícias. Presente, porque os familiares não o esqueceram e procuraram informações, lidando com os informes mais variados: é um bandido, um terrorista, está em Cuba, está em Paris. É paraplégico, vive no exterior e não tem recursos para voltar. Crônicas de uma busca, de uma investigação meticulosa, para configurar o retrato desse ausente-presente.
A autora, sobrinha do “desaparecido”, procura indícios do tio Cilon Cunha Brum, que deixou a família quando ela nasceu, em Porto Alegre, em 1971, e nunca mais apareceu. O tio era um estudante de Economia na PUC/SP, com 25 anos e um futuro promissor numa das maiores agências de propaganda do país (MPM). A família, no caso, possuía raízes na média propriedade rural do interior do Rio Grande do Sul, apoiara o Golpe de 64 e não via problemas no Regime Militar então instalado. De repente, porém, a família teve de lidar com a figura desse membro desgarrado, desaparecido – “subversivo”, como se dizia na época.
Dessa maneira, o relato de busca sentimental, de uma sobrinha pelo tio, reveste-se de outros significados. Criança, a autora descobre que o tio está entre os militantes comunistas que combateram na Guerrilha do Araguaia. Em 1985, aos 14 anos de idade, a futura autora Brasil nunca mais, denúncia do uso da tortura pelos órgãos de repressão, e encontra o nome do tio na “lista dos desaparecidos”. A partir daí, desvendar a trajetória e o perfil desse tio comunista – que se engajou no projeto de “guerra popular prolongada”, urdido pelo PCdoB ao longo da década de 60 – torna-se uma obsessão para a menina. Obsessão que se transforma num projeto jornalístico de investigação e, por fim, no livro que ora temos em mãos.
Crônica de uma busca, intercalada com notícias de jornais, fotos e cartas imaginárias para a avó da autora, a dona Eloah (mãe de Cilon) – que até o final da vida (1989) aguardou a chegada do filho ou, ao menos, dos seus ossos. E é nesse ponto – na ausência do corpo do guerrilheiro morto – que resiste o maior interesse para o leitor. Afinal, Liniane, ao procurar a dimensão humana do tio, revela a trajetória do militante armado Cilon Cunha Brum e nos leva a perguntar sobre o porquê do rompimento das leis de guerra pelas Forças Armadas brasileiras.
O Exército derrotou seus inimigos – no caso, os guerrilheiros comunistas que ameaçavam a segurança do Estado. As Forças Armadas cumpriram a sua principal tarefa: enfrentar militarmente os inimigos armados do Estado – mas por que descumprir os códigos de guerra? Isto é, por que fuzilar aqueles militantes que se entregaram pacificamente – como fez Cilon, no final de 1973? Por que ocultar o cadáver de Cilon e não entregá-lo aos familiares? Por que não se pode ser justo com os inimigos do Estado e se deve seguir o exemplo de Creonte, o arrogante rei de Tebas?
Perguntas que não querem calar e enxovalham as instituições militares brasileiras, fundamentais na nossa formação social.

domingo, 22 de abril de 2012

Xingu – o filme

Xingu é o título do filme de Cao Hamburger, inspirado na vida dos irmãos Villas-Boas – Orlando, Cláudio e Leonardo – que está passando no cinema. Inicia quando os três irmãos resolvem participar das expedições promovidas pelo Estado Novo para explorar a região Centro-Oeste, em 1943, e termina no início dos 70, quando a Transamazônica está sendo construída e eles são indicados ao Prêmio Nobel da Paz.
No início, são apenas jovens aventureiros e, na seqüência, estão engajados na causa indígena. Fazem contatos com tribos que vivem isoladas do homem branco e a cena em que realizam essa tarefa pela primeira vez é narrada de forma impactante. O filme não chega a ser épico, mas esse primeiro encontro dos sertanistas com os índios aproxima a narrativa do gênero. De certa maneira, é o contato dos brancos com o paraíso perdido, isto é, com o mundo primitivo e selvagem – comumente idealizado.
O filme é construído a partir do embate entre a civilização branca e o mundo selvagem dos indígenas, e é breve na contextualização histórica da trajetória dos Villas-Boas. A representação dos índios é positiva e pode-se dizer que há cuidado em não romantizá-los. Inegavelmente, porém, os fazendeiros, políticos e militares estão caricaturizados – os vilões da história – e terminamos torcendo por Orlando, Cláudio e Leonardo como se eles fossem “mocinhos”. (Por sinal, representados por excelentes atores.) Essa simplificação não prejudica a narrativa e coloca o espectador, isto sim, emocionalmente ligado à luta dos sertanistas. Cinema para comover até o fundo da alma. A criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, coroa a narrativa.
Ficam esboçados com clareza alguns aspectos do drama indígena: os massacres, a perda das terras e do estilo tradicional de vida, assim como os limites da ação dos indigenistas. O mundo indígena, provavelmente, está fadado ao fim, mas os irmãos Villas-Boas souberam defendê-los ou, pelo menos, preservá-los de um final trágico. “Ao menos chegamos antes”, diz um dos irmãos, reconhecendo os méritos e limites da sua empreitada. Eles salvaram muitas tribos da extinção, conseguiram a criação de uma reserva – o Parque Xingu – e lá estão dezenas de aldeias, até hoje.
Os índios pouco falam no filme e são os brancos os protagonistas centrais. A última cena, no entanto, é a de um índio pilotando um avião sobre a selva amazônica e indica que os indígenas conseguirão, sim, reiventar suas culturas e identidades. Reinventá-las com os instrumentos da civilização branca.
Nem tudo está perdido, nos sugere a cena. Nem tudo.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O sonho do celta

O sonho do celta, o último romance de Mario Vargas Llosa, é um livro que incomoda, tanto pela temática histórica abordada quanto pela atitude do romancista. Mas termina agradando.
A narrativa é centrada num personagem verídico – Roger Casement –, um irlandês que migra criança para a Inglaterra e se torna funcionário do Império Britânico. A partir daí, o autor acompanha a trajetória do personagem nas regiões do Congo, Peru, Irlanda e Inglaterra, entre 1884 e 1916.
Apaixonado pelo continente africano, o jovem Roger Casemente acredita que as ações colonialistas – o livre-comércio e o cristianismo – são capazes de civilizar os povos. Quanto coloca os pés na África, no entanto, se decepciona. Mais tarde, na condição de embaixador britânico, realiza um minucioso inventário da barbárie promovida pelo empreendimento colonial de Leopoldo II, rei da Bélgica, no Congo.
Nos capítulos dedicados ao Congo – com explícita referência ao romance de Joseph Conrad, O coração das trevas (1901) –, temos uma espécie de ensaio investigativo a respeito do “horror”, ao qual o agente comercial Kurtz se refere. O horror produzido pelos “homens ocos” do colonialismo europeu. Um ensaio magistral! Mas onde a ficção?, fiquei me perguntando.
A ficção vai despontando das informações e reflexões históricas, na medida em que se evidencia o drama do embaixador Roger Casement: o do agente do Império Britânico que, ao conhecer as entranhas do colonialismo, se descobre irlandês e, como tal, vítima do Império. A essa ambigüidade do personagem – a do funcionário do Império que se rebela contra o imperialismo –, soma-se a sua condição de homossexual. Uma situação que também o coloca em conflito com os valores dominantes.
Assim, na medida em que a narrativa avança – quando o personagem viaja para o Peru para investigar as atrocidades de mais uma empresa colonial; quando o personagem se envolve na luta nacionalista irlandesa –, a densidade ficcional aumenta. As páginas ambientadas no Peru são provavelmente as melhores. A forma como a narrativa apresenta as ações coloniais dirigidas por naturais da América (apesar da condição inglesa da empresa) estão entrelaçadas com a trama ficcional e o resultado é excelente. Um panorama brilhante do chamado período neocolonial na América Latina!
O personagem se incomoda consigo mesmo e, ao encerrar a tarefa oficial no Peru, resolve assumir sua condição de irlandês e se engajar num outro sonho: o da Irlanda independente. E, com o mesmo ímpeto idealista que na juventude pensara o colonialismo europeu na África, ele se embrenha na ação revolucionária. O resultado é brutal.
Dessa maneira, o romance vai concretizando aquilo que é indicado na primeira metade do livro: a história feita pelos historiadores não consegue dar conta da realidade (p. 114). O que os historiadores fazem é uma “construção mais ou menos idílica, racional e coerente”. A realidade, no entanto, é crua, caótica, arbitrária, misturada de planos, acasos, intrigas, fatos fortuitos e coincidências. Quem consegue dar conta disso é o romancista e não o historiador.
Sem dúvida um romance que incomoda – não apenas pela denúncia da crueldade do colonialismo, quanto pela maneira como lida com o material histórico. Romance para provar, mais uma vez, a grandeza dos romancistas frente ao prosaico trabalho dos historiadores. Romance obrigatório, como me disse um amigo, para os que lidam profissionalmente com a história.

domingo, 8 de abril de 2012

Museu do Trem

Visitei o Museu do Trem, na cidade de São Leopoldo. Me sentei num banco da antiga estação (onde funciona o museu) e fiquei imaginando as preocupações dos ingleses quando planejaram a velha gare. Escolados pela experiência nos territórios norte-americanos, os ingleses conheciam os pele-vermelhas e sabiam do perigo de suas flechas incendiárias. Dessa maneira, construíam as estações com paredes e tetos de zinco e não foi diferente quando a Brazilian Railway inaugurou a estação de São Leopoldo, em abril de 1874.
Era a primeira estrada de ferro no Rio Grande do Sul: 33 km entre Porto Alegre e a sede da colonização alemã. Os indígenas há muito haviam sido desapropriados ou mortos. Havia bugreiros atuando na região (isto é, caçadores de índios), mas pouco se fala de combates entre os nativos e os colonos, muito menos de um ataque à estação ferroviária.
Fiquei pensando essas coisas, na tarde ensolarada de domingo, enquanto os pássaros cantavam no pátio da estação e, de vez em quando, chegavam os rangidos das máquinas do Trensurb. (O museu funciona ao lado de uma moderna estação do Trensurb.)
Tudo muito limpo e organizado ao redor da antiga estação e chama atenção as duas velhas locomotivas estacionadas no pátio. Máquinas bem conservadas, parecendo prontas para partir, em estado bem diferente daquela locomotiva e vagões que vemos apodrecendo na Gare de Santa Maria.
Talvez os peles-vermelhas tenham passado por Santa Maria, imaginei. Suas flechas incendiárias acertaram os vagões de madeira e os queimaram. Duas flechas mataram o foguista, outra feriu o maquinista, os passageiros sumiram, e a coisa ficou desse jeito: vagões destruídos, depenados, e a locomotiva apodrecendo... Restos de uma batalha onde muitos de nós perdemos parentes e amigos, e onde nossa memória se enredou.
Mas não podemos ser pessimistas. Sentado num banco da antiga estação de São Leopoldo, tive a certeza de que ao menos um lugar foi escolhido para ser o depositário da memória ferroviária. Pronto, é o suficiente. Ali a nossa memória tem condições de se organizar. Então prestei atenção nos pássaros e súbito lembrei de meu pai me indicando uma Maria Fumaça, na estação de Pelotas:
– Lá vem uma locomotiva igualzinha àquelas que teu avô dirigia.
Senti os passageiros se alvoroçarem na plataforma e todos nós – o pai, a mãe, meus irmãos e eu – nos prepararmos para embarcar. Precisávamos chegar a Morro Redondo, uma estação perdida no campo, um pouco antes de Canguçu...