sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Comportamento sexual na Roma Antiga



Dia desses uma amiga postou no Facebook a foto de um cálice romano com cena de homossexualismo masculino. Um homem deitado (de costas) sobre outro, na tradicional representação do sexo entre homens, isto é, sem penetração, sexo intercrural (nas coxas).
Logo abaixo da ilustração do cálice, um texto comentando a naturalidade com que a homossexualidade masculina era encarada em Roma e como era condenado o sexo entre mulheres.
Respondi que não era bem assim. O homossexualismo masculino na Roma Antiga não era condenável, mas visto com desconfiança. “Um costume grego”, diziam os romanos. Júlio César, por exemplo, foi alvo de gozação a vida inteira devido ao seu relacionamento com o rei da Bitinia, quando jovem. César era um conquistador de mulheres contumaz – os historiadores romanos enumeram as esposas de senadores, generais, pretores, etc. com as quais ele transou – e nem assim seus detratores o livraram de piadas.
Já Alexandre Magno, que manteve um relacionamento constante com Heféstion – além de frequentar o harém de mulheres que o acompanhava na campanha da Ásia –, nunca foi ridicularizado. Era um homem grego e seguia os ditames de sua época e cultura: o amor entre os homens era “mais civilizado” do que aquele com as mulheres.
Quanto ao homossexualismo feminino, tanto na Grécia quanto em Roma, sabe-se muito pouco. Mas seguramente não era condenado. Safo, na Grécia (na ilha de Lesbos), era uma mestra respeitável que se envolvia com suas alunas. Fez poemas belíssimos a respeito do encantamento amoroso que vivia com as meninas e não há registro disso ter provocado algum escândalo. Ao contrário. Tudo indica que ela continuou a ótima educadora que era, casou e teve filhos.
Em Roma, há registros de festas religiosas exclusivas para mulheres – dedicadas a Bona Dea, a Deusa Boa, p.ex. –, onde rolavam alegres orgias. Numa dessas cerimônias, Pompéia, a segunda mulher de César, introduziu o seu amante masculino e, aí sim, deu rolo. O jovem Clódio estava disfarçado com roupas femininas, uma das presentes começou a acariciá-lo, descobriu, e o caso foi considerado um sacrilégio. Isto é, sacrilégio um homem estar presente numa festa feminina e não as mulheres se acariciarem, beberem e fazerem tudo mais que acontece numa orgia.
Homossexualismo feminino, afinal, nem era visto como sexo na Antiguidade greco-romano. Sexo entre mulheres não envolve penetração e isto, para gregos e romanos, estava fora do que entendiam como sexualidade. Sexo entre mulheres era, provavelmente, uma outra coisa. 
Esta a provável razão da invisibilidade do homossexualismo feminino em Grécia e Roma. Na arte, por exemplo, não se encontrou nenhuma representação de cena homossexual feminina. Nenhuma representação de mulheres se acariciando para ilustrar um cálice ou um jarro. Nem mesmo nas paredes de Pompéia. Apenas os poemas de Safo.  

Como a história da sexualidade na Antiguidade é motivo de muita discussão, indico as fontes que utilizei para este comentário: SCHMIDT, Jöel. Júlio César. POA: L&PM, 2006; KING, Helen. Preparando o terreno: sexologia grega e romana. In: PORTER, R.; e TEICH, M. (orgs.) Conhecimento sexual, ciência sexual. SP: UNESP, 1998.
Helen King, por sinal, faz uma boa síntese de como o sexo era pensado na cultura greco-romana: uma relação marcada pela desigualdade, descrita muitas vezes com imagens de guerra, fuga e captura. O homossexualismo masculino era visto como normal (especialmente na Grécia do período clássico), desde que ajustado a parâmetros muito definidos. Nas representações visuais, p.ex., o parceiro passivo jamais era mostrado com uma ereção. (Não era recomendado que o homem passivo expressasse prazer.) A penetração era de importância central e os encontros sexuais eram pensados como uma relação entre penetrador e penetrado. Por último, as mulheres assumiam o papel de mercadoria preparadas para o consumo. Mesmo sendo vistas como vorazes do ponto de vista sexual (dispostas a secar a semente dos homens), as mulheres eram apresentadas como comida para serem desembrulhadas e saboreadas. 

domingo, 23 de dezembro de 2012

Cleo e Daniel


O romance Cleo e Daniel, de Roberto Freire, foi reeditado este ano pela L&PM. Lançado pela primeira vez em 1965, tornou-se sucesso de público, principalmente entre os leitores jovens.
Em 65, segundo a apresentação de Ignácio Loyola Brandão, Cleo e Daniel surgiu como “um livro diferente, claro, aberto”, capaz de mudar a literatura e a visão das coisas. A expressão daqueles “confusos anos 60”. Nos 70, o livro continuava agradando. Comprei uma edição em banca de revista, em forma de jornal (coleção Jornalivro) e li mais de uma vez. Emprestei para vários amigos e sempre agradou. Reli dias atrás e não gostei mais.
Um romance de grande vigor, com um narrador forte, apaixonado e desesperado: o psicanalista Rudolf Flügel a perambular pelas ruas de São Paulo e vivenciar o sexo, a loucura & o amor, e teorizar a respeito também. Um dos personagens apresenta o mito grego do andrógino – “Nem homem, nem mulher, os dois num só... como a gente, na cama, trepando” – e afirma: “O filho da puta do Platão estava certo!”
De certa forma, os personagens centrais têm a nostalgia da fusão mitológica entre homem e mulher – “Uma bola de carne sem feições, quatro pernas, quatro braços” – que assustou os deuses do Olimpo. Tanto assustou que Júpiter cortou essa bola de carne ao meio e deu origem ao macho e à fêmea. E os dois, a partir de então, ficaram fadados a se procurar eternamente...
Uma angústia que não atinge o formingueiro paulistano, segundo o narrador. Isto é, os homens e as mulheres de São Paulo, preocupados em trabalhar, vencer na vida e viver o amor de forma razoável. Alguns, até capazes de apostar na religião católica ou no socialismo para reformar a sociedade.
No meio do turbilhão de inquietações que acometem o personagem-narrador, ele se depara com um casal de adolescentes desajustados, as figuras que dão título ao livro – Cleo e Daniel – e a narrativa chega ao clímax. O jovem casal realiza o amor completo anunciado pelo mito e ninguém os suporta – nem mesmo Rudolf Flügel, que primeiramente se encantou com os adolescentes e os defendeu inclusive. Cleo e Daniel transam nos jardins do Arcebispado e deixam o bispo perplexo, se beijam em público, assustam a multidão e provocam a intervenção policial.
Uma fantasia romântica e desesperada: a concretização da mitológica fusão entre homem e mulher e, ao mesmo tempo, a sua impossibilidade.
Reli o romance e não gostei. Mas já foi um livro importante para mim. Agora, me pareceu uma narrativa desconjuntada e até confusa. Adolescente demais, concluí. Devo ter envelhecido.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Até quando, Catilina?

O Irmão Zeno entrava na sala de aula com o livro debaixo do braço. Subia no estrado e mandava abrirmos na página tal. Nós, alunos da terceira série ginasial, seguíamos a orientação do professor e depois, quietos, escutávamos a leitura e  os comentários que ele fazia sobre a história de Roma.
Ele era velho e gordo, baixinho e empertigado. Há muito tempo deixara a sala de aula e se dedicava ao setor administrativo do colégio. Na metade do ano, o professor de História adoeceu e ele veio substituí-lo. Seria por pouco tempo, nos adiantou o diretor, e logo descobrimos o motivo. Irmão Zeno não lembrava mais a matéria. Lia pausadamente e com voz monótona os capítulos do livro e levava algum tempo para dizer onde ficava Cartago e qual o caminho que Aníbal fizera para chegar até a península itálica e surpreender os romanos.
Um dia, no entanto, a sua voz se alterou, ele se entusiasmou e fechou o livro para nos dizer que Cícero, este sim, este fora um grande romano e um nome eterno na literatura. Cícero, autor de discursos contundentes, que um dia o Irmão Zeno soubera em latim e hoje, infelizmente, sabia apenas em português. E recitava, andando em cima do estrado, apontando o dedo para uma figura imaginária num canto da sala:
– Até quando, ó Catilina, abusarás de nossa paciência? Aonde irão parar os arrebatamentos dessa audácia desenfreada? Ó tempos! Ó costumes! O Senado conhece tuas artimanhas.
Irmão Zeno se transformava, a voz perdia o tom monocórdio, e nos perguntávamos se teria sido assim que o velho Cícero acusara a conspiração de Catilina... Vivíamos o ano de 1969 e o professor nos alertava que também a República brasileira enfrentava seus detratores nas palavras e ações de “agitadores treinados em Cuba”.
Semanas depois chegou o novo professor – o único leigo a lecionar naquele colégio marista – e as aulas passaram a ter outro ritmo. Uma aula normal, dizíamos. O novo professor explicava a transformação da República em Império – o Senado e o povo cansados das guerras civis – e não "vituperava" contra os inimigos do Estado e da sociedade tradicionais.
Pensando bem, só o Irmão Zeno para dramatizar a crise da República romana e indicar a um bando de meninos o que é a violência das lutas pelo poder:
– Nem a guarda que vela à noite no monte Palatino, nem os postos de soldados espalhados na cidade, nada te desconcerta, Catilina. Até quando abusarás de nossa paciência? Ó tempos, ó costumes!

domingo, 9 de dezembro de 2012

Compras em Rivera


Estava na Rua Sarandi, em Rivera, e resolvi comprar meias de um camelô de calçada.
Se o leitor conhece Rivera, sabe que eu estava na principal rua de uma área de freeshops, na fronteira do Uruguai com Rio Grande do Sul, famosa por oferecer as mais prestigiadas grifes de perfumes, bebidas, tênis e produtos eletrônicos. Era uma manhã de movimento, uma multidão circulava visivelmente satisfeita, e a última coisa que um bem informado consumidor de classe média pensava... era no comércio informal dos camelôs.
Mas eu não sou um consumidor bem informado e prestava atenção no trabalho incansável que os vendedores ambulantes faziam: oferecer mercadorias a consumidores ávidos, que os ignoram solenemente. Eu imaginava o que eles pensariam desses brasileiros sedentos por marcas estrangeiras e resolvi me aproximar. Isto é, comprar um conjunto de meias e quem sabe dizer que alguns de nós, consumidores de classe média, somos capazes de interagir com este setor do comércio ou algo assim.
Então, justo na hora em que coloco a mão no bolso, vem um homem baixo, humilde, me pedir alguma coisa. O camelô manda este homem embora. “Estou trabalhando”, ele diz. Eu percebo que o sujeito está querendo auxílio (mostrava uma carta explicando sua condição de ex-dependente químico) e também falo para se afastar. O homem sai resmungando e escuto o seu comentário:
– Esses sujeitos compram, compram e não conseguem dar dinheiro pra quem precisa!
Sim, eu não o ajudara. Gastara em perfumes, vinhos, um conjunto de meias e não dispensara um mísero real para aquele homem que anunciava estar em fase de reabilitação e precisava de auxílio.
Mas não me abalei com o pedido do homem e nem com a minha atitude “desumana”. Paguei as meias ao jovem camelô – que tinha uma barba preta, como eu usara tempos atrás – e as tenho vestido nos últimos dias.
Não são meias de muita qualidade e uma delas já furou. Não são como os excelentes tênis Nike, confeccionados no Vietnam, e vendidos nos freeshops. Mas talvez tenham vindo do Oriente também. De alguma fábrica de Hanói, Xangai ou de Taiwan. Mercadorias que atravessam o Atlântico e auxiliam a compor o cenário por onde circulam consumidores das mais variadas espécies. Alguns, até com sintomas de má consciência.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Aristocracia pelotense


Nos últimos anos de vida, dona Amélia gostava de falar que era neta de barão. E, por esse motivo, que era baronesa também. Dona Amélia não entendia que os títulos nobiliárquicos do Império brasileiro não passavam de pai para filho, muito menos de avô para neta, e, como não havia pessoa alguma que pudesse convencê-la do contrário, ela sentia-se uma das raras representantes da nobreza em pleno século XX.  
Era início dos anos 90, havia a campanha para decidir sobre o regime político brasileiro, o filho mais velho defendia a causa monarquista e talvez isso tenha mexido com as fantasias da velhinha. Um retorno à Monarquia e o restabelecimento dos títulos nobiliárquicos era tudo que ela sonhava.
Em plena era da ruptura neoliberal, provocada pelo breve governo de Fernando Collor, dona Amélia sentia-se a defensora de um passado seguro diante de um futuro incerto. Ela sentava-se na sacada do prédio de apartamentos onde morava, em Pelotas, olhava a multidão andar pelas ruas e comentava:
– Gente sem eira nem beira. Pobre gente a espera de um Pai...
Um único neto escutava as suas histórias mirabolantes, envolvendo guerras na Cisplatina, no Paraguai, o fausto proporcionado pelas charqueadas e o gênio do grande tribuno Gaspar Silveira Martins.
– Uma velhinha nostálgica do Império, que se sentia injustamente esquecida pelo mundo, apesar de tratada a pão de ló – me contou o neto, acrescentando que o drama da avó sempre lhe tocou profundamente.
– A história da velha talvez desse um conto – dizia ele. – Uma velhinha que falava do tempo do Imperador e sentia ganas da modernidade republicana. Minha vó era isto no final da vida. Acompanhava com vivo interesse o plebiscito para decidir entre a República e a Monarquia, e, mesmo entrevada, fez questão de ser conduzida até à urna. Votou e morreu semanas depois.
Quem me contou a história foi o neto, anos mais tarde, num verão na praia do Cassino. Estávamos num restaurante de hotel, nós dois professores de História, conversando sobre Pelotas – as charqueadas, a decadência econômica, as famílias que um dia foram poderosas e até hoje alimentam sonhos de grandeza – e nisso entrou o caso de dona Amélia.
A avó do meu colega, provavelmente, é um tipo emblemático desse drama pelotense que fascina alguns de nós. A cidade ainda tem fumos de grandeza e lida mal com a perda dessa condição. A dinâmica econômica sul-rio-grandense pisoteou suas pretensões, mas ficaram vestígios de um tempo de maior prosperidade. Dona Amélia sintetizou tudo isso numa fantasia monarquista e talvez tenha morrido convicta de ser uma baronesa.
– Uma grande dama – comentava o neto. – Quem sabe uma personagem machadiana, dessas que revelam, com melancolia, os segredos da alma humana.