sexta-feira, 31 de julho de 2020

Na sacristia da Catedral de Toledo

Um dos grandes quadros de El Greco, “O espólio” ou “Desnudamento de Cristo” (1579), se encontra na sacristia da Catedral de Toledo. O Cristo com uma túnica vermelha, cercado por figuras pouco amistosas, sendo preparado para o despojamentos das vestes e o início do processo de tortura e morte a que foi condenado pelo governador romano.
Sacristia da Catedral de Toledo.
Um quadro impactante. Quando entrei na enorme sacristia, minha atenção foi atraída pela tela. Como fazia visita guiada, logo foi indicado o título do trabalho, feita uma breve explanação a respeito e a pintura se tornou inteligível. O momento em que o Filho de Deus vai sofrer a espoliação dos trajes, da dignidade e “morrer por nós”.
Com meu passado de coroinha, imaginei a cena que tantas vezes se reproduziu naquela sacristia majestosa: a dos sacristãos se aprontando para o ritual da missa... Como eles se sentiriam diante do quadro? Que pensamentos, que reflexões?
Recordei a modesta sacristia em que exerci minhas funções de coroinha na infância (modesta em relação a da Catedral de Toledo) e revivi a gravidade com que experimentava aqueles instantes que antecedem ao ritual da missa. Menino de dez anos de idade, aquele era um momento especial. Não havia quadros na sacristia da minha igreja (apenas uma folhinha com imagem religiosa na parede ao lado da mesa da secretária), mas o mobiliário de madeira escura já era o suficiente para emoldurar o ambiente. Nós, os coroinhas, vestidos com sobrepelizes brancas, auxiliando o padre a ajeitar os paramentos litúrgicos.
O que sentiria o coroinha que eu era, se visse um Cristo tão sofrido, com uma fulgurante veste vermelha (que parece representar todo seu corpo e seu sangue), pouco antes de participar da “cerimônia incruenta da missa”? Não sei. Mas ficaria abalado. Emocionado.
A visita a sacristia da Catedral de Toledo foi rápida. Era visita de turista e segui o guia por outros caminhos dessa portentosa igreja, riquíssima em arte de diversos períodos: gótico, renascentista, barroco e outros. A impressão vivida diante do quadro de El Greco ficou em algum desvão da memória e a recuperei dia desses. Estava lendo sobre o artista, sua relação com Toledo, e lembrei do quadro na sacristia da Catedral. Junto, a cena imaginária dos sacristãos da igreja e a associação com meu passado de coroinha.
Hoje, quando pouca coisa resta da fé católica que embalou minha infância e juventude, chega a ser estranho lembrar (e lembrar com satisfação) os tempos de coroinha. Dessa vivência católica – na família, na escola e na igreja – restaram alguns vínculos com as crenças que fundam a Cristandade, em especial o Catolicismo, e também a nossa Civilização.
Na sacristia da Catedral de Toledo, não me deslumbrei apenas com a arte de El Greco. Foi o menino católico que reagiu diante da narrativa central da Cristandade: a Paixão de Cristo, o seu sacrifício pela Humanidade. O menino que um dia acreditou nisso tudo que a Igreja apresenta. O menino que cresceu e desaprendeu o que lhe foi ensinado.
Hoje, por onde anda minha cabeça? “Por onde vagam teus pensamentos?”, diria minha mãe. Não faço ideia. Mas sem dúvida ficou alguma coisa. Um vínculo, uma ponte, que me liga às crenças que emolduraram minha infância e que vêm de longe, muito longe, conquistando impérios, reinos e estados nacionais, forjando trajetórias de mártires e santos, construindo igrejas e catedrais, inspirando artistas de diferentes ofícios.
Catedral de Toledo.

Agora somos todos mascarados

Em janeiro, eu estava hospedado num hotel de Copacabana, olhava distraído o noticiário de TV e não levava à sério as notícias sobre a epidemia na China. Não que desacreditasse na letalidade do novo vírus, nada disso. Considerava, isso sim, muito remota a possibilidade da doença ganhar o mundo, adquirir o estatuto de epidemia e muito menos o de pandemia.
Janeiro, verão, Copacabana... Minha companheira e eu não estávamos preocupados com o mundo, mas com os passeios agendados no CCBB, Museu do Catete, Museu Nacional de Belas Artes, Mosteiro de São Bento, lugares já conhecidos, mas que seriam visitados com guias especializados em turismo cultural. Um desses guias, por sinal, meu ex-aluno no Curso de História da UFSM.
Um mês depois, em março, já em Santa Maria, o noticiário de TV me delineou um outro entendimento das coisas. A nova doença atravessou, sim, as fronteiras da China, ganhou o mundo, recebeu o estatuto de pandemia e me obrigou a alterar os planos. No caso, cancelar uma viagem a Porto Alegre para assistir a um espetáculo no Teatro São Pedro (a atriz Cássia Kis recitando Manoel de Barros). O espetáculo foi cancelado na véspera (12 de março) e tratei de ir na rodoviária tratar da devolução do valor das passagens. Gentilmente um funcionário me entregou o dinheiro das passagens e imaginei que tudo isso (a interrupção da vida normal) fosse durar apenas algumas semanas.
A vida mudava e eu não me dava conta do tamanho da confusão. Desconfiei das avaliações de mais de 100 mil mortos no Brasil e encarei o início do isolamento social com um otimismo descabelado. Aceitei as novas regras, me fechei no apartamento, mas sempre considerando que a situação era por pouco tempo. Tudo vai se resolver logo, cheguei a dizer.
No dia em que a Prefeitura Municipal determinou o uso de máscara para entrar no supermercado, bati com o aviso na porta do mercado e logo me dirigi a farmácia. Uma funcionária (de máscara) me orientou quanto ao modo de colocá-la no rosto e um outro me disse, rindo:
– Bem vindo a gangue. Agora somos todos mascarados.
Eu ri também e pensei que estava vivendo uma história de ficção científica. Um replay do filme Contágio, que assistira naquela semana. Um filme de 2011 a respeito de uma epidemia causada por vírus, que inicia em Hong Kong, se alastra pelos Estados Unidos (onde a trama é ambientada) e pelo mundo inteiro. Mas que tem final feliz: a vacina é logo descoberta, produzida e tem distribuição eficaz.
Saí pela rua mascarado (como continuo desde então ao andar pela cidade) sem desconfiar que o “filme” que eu estava / estou protagonizando avançaria até metade do ano (ou mais da metade do ano, o filme ainda não terminou). As previsões que considerava pessimistas se confirmaram e os dias passados em Copacabana agora pareceram um sonho. Sim, aqueles dias de verão no Rio de Janeiro, despreocupado, visitando uma exposição de peças do antigo Egito (do acervo do Museu Egípcio de Turim), no CCBB, andando pelas salas do Museu do Catete e ouvindo um ex-aluno descrever e analisar a decoração de inspiração greco-romana do antigo palacete do século XIX, tudo isso se transformou em marcas de um passado remoto, um estilo de vida que não sei quando voltarei a usufruir.


Obs.: crônica postada na página da SEDUFSM (Seção Sindical dos Docentes da UFSM), em 20/07/2020.

domingo, 5 de julho de 2020

O rei Silco, da Nobádia

O rei Silco viveu no século V d.C. Era um soberano do Reino da Nobádia, na região da Núbia.
Tomei conhecimento desse rei numa visita ao Templo de Kalabsha, a 50 quilômetros ao sul de Assuã, no Egito. Estava fazendo um cruzeiro pelo Lago Nasser e a visita a esse templo era parte do roteiro. O navio parou no meio do lago, lanchas nos pegaram e nos conduziram até o local.
O santuário originalmente não estava ali. Com a construção da represa e a formação do Lago Nasser, nos anos 1960, o prédio seria coberto pelas águas e então foi transplantado pedra por pedra e reconstruído no local onde hoje se encontra. Coisas da engenharia do século XX, sob coordenação da UNESCO.
Um templo egípcio dedicado a um deus solar núbio, construído no início da dominação romana, no padrão tradicional dos templos egípcios (padrão estabelecido no Novo Império). O pilote (pórtico), o pátio, a sala hipostila (salão com colunas) e o santuário ao fundo.
Pátio interno do Templo de Kalabsha e porta de entrada da sala hipostila.

Numa das paredes, o guia mostrou-nos o desenho do rei Silco grafitado na pedra e fotografei. Uma espécie de pichação dos tempos antigos. Desenho escavado na parede. O soberano montado num cavalo, vestido ao estilo romano, abatendo um inimigo com a lança, e uma divindade coroando-o.

Grafite do rei Silco.

Na hora apenas registrei que se tratava de um soberano da Núbia durante a Antiguidade Tardia. Depois, em casa, bisbilhotando no Google, juntei mais informações: o rei se chamava Silco, soberano da Nobádia, e a divindade voando sobre ele era Nice, deusa grega da vitória, festejando-o com uma coroa de louro.
      Silco enfrentou os blêmios, expulsou-os para o deserto oriental e expandiu o território da Nobádia. A deusa Nice veio saudá-lo, glorificando sua vitória sobre os inimigos do reino e alguém tratou de eternizá-lo na parede de um templo.
– O artesão que gravou sua imagem fez isso a mando do rei? – fiquei pensando...
Não encontrei resposta, mas o assunto serviu para me ocupar num desses dias de isolamento social. O covid-19 lá fora e eu às voltas com o rei Silco, soberano da Nobádia, que enfrentou os blêmios nas margens do Nilo, há mais de mil e quinhentos anos atrás.