quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Plástico zero

             Não é exagero dizer que a maioria da população brasileira não se preocupa com o lixo – em especial com os resíduos plásticos, que tem sido uma das pragas de nossas praias. Anos atrás, assisti a um grupo de estudantes do Curso de Oceanografia (da FURGS) realizar uma coleta de lixo na praia do Cassino e me impressionei com o que eles juntaram. Pelo que entendi, além de lixo deixado por veranistas, era também material que a tripulação dos navios joga ao mar e as ondas trazem até a areia da praia.

No arquipélago de Fernando de Noronha, porém, esse cuidado com o lixo – em especial com o plástico – é alvo de preocupação extremada e desde abril de 2019 vigora um decreto que proíbe o uso de “plásticos descartáveis, como copos, pratos, canudos, sacolas, talheres e garrafas com menos de 500 ml”. Um decreto que deu origem a uma campanha denominada "Plástico zero".

No aeroporto, presenciei um funcionário chamando a atenção de um turista que desembarcava com sacolas plásticas e senti o vigor da campanha. O funcionário pediu que o visitante se desfizesse do material e senti que estava ingressando num espaço diferenciado do território brasileiro.

Mais tarde, na fala dos guias, no passeio ao Memorial Noronhense (que privilegia a história da Ilha, mas também reserva um setor para o lixo coletado nas praias e no mar), fui me dando conta de que o tema não é apenas preocupação das autoridades, mas é abraçado pela população em geral. Durante um passeio de barco no entorno da ilha, esse cuidado ficou bem explicitado.

Devido ao vento forte do alto mar, uma senhora perdeu a viseira de proteção solar e logo um tripulante do barco veio resgatá-la. A senhora disse que se tratava de um simples chapéu de praia e que ele não se preocupasse. Todos nós vimos a viseira boiar sobre as ondas do mar e acho que ninguém considerou que fosse importante retirá-la das águas. Mas o marujo, gentilmente, disse que era material estranho ao mar e que poderia causar dando a fauna e flora marinhas. A senhora ficou de queixo caído com as explicações (literalmente de queixo caído – era uma senhora muito divertida, com expressões e dizeres exagerados e engraçados) e concordou completamente com o homem.

A partir daí, todos nós assistimos ao marujo pegar uma vara com um gancho na ponta e “pescar” a viseira. Ele gritava para o condutor do barco manobrar, dar uma ré, colocar a embarcação próximo ao boné para ele alcançá-lo com a vara. Uma operação que realizou com muita calma e pleno êxito: a viseira foi apreendida pelo gancho da sua vara.

Cena do mar, durante o passeio.

Ao final, aplausos gerais e risos (para a "vara do marujo"). Uma aula de cuidados ambientais. Uma experiência digna da preocupação ecológica que domina o arquipélago e é abraçada tanto pelas autoridades quanto pela população local. Não é de graça que o local é considerado um paraíso.


Adendo: após escrever essa entusiástica crônica a respeito do preservacionismo ambiental em Fernando de Noronha, assisti a trecho de um vídeo de funcionário do Ministério do Turismo ironizando as preocupações do ICMBio quanto ao arquipélago (e provocando gargalhadas do auditório). Procurei mais informações e constatei que as orientações do ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura (por meio da secretaria da pesca) e também da EMBRATUR são no sentido de reverter as políticas ambientais no arquipélago: liberar a pesca da sardinha (espécie-chave da cadeia alimentar da fauna marinha) e permitir a atracagem de cruzeiros com 600 passageiros, por exemplo. 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Viagem a Fernando de Noronha

 

A pandemia não terminou e me encorajei a atravessar o país e visitar a ilha Fernando de Noronha. Para um sujeito que encarou o isolamento social de forma radical, foi uma áfrica e tanto. Apresentei comprovação de vacinas para ingressar na ilha, segui os protocolos de segurança recomendados e deu tudo certo, isto é, apesar de vivenciar algumas situações de aglomeração (nos aeroportos), não houve contaminação nem preocupação excessiva. Até agora, tudo bem.

A opção pela viagem foi repentina e ainda me espanto com a decisão. No início de outubro entrei em contato com uma agente de turismo para obter informações sobre futura viagem (no próximo ano), ela me apresentou uma excursão a ilha e não resisti. Era a hora, uma oportunidade e tanto, e fui. Cinco dias na ilha. Voltei ontem de madrugada.

A chegada no aeroporto de Fernando de Noronha.

Não imaginei fazer esse preâmbulo para narrar uma viagem. Quando iniciou a pandemia, pensei que seria por curto período de tempo e logo a normalidade seria recuperada. Doce ilusão. Volto às atividades normais com o vírus ainda disseminado, causando mortes, com a vacinação lenta (no Brasil, ainda não foi alcançado 70% da população, que entendi ser o mínimo para uma situação segura) e tem sido um exercício e tanto encarar essa situação.

Sentado numa cadeira na Praia de Santo Antônio, depois de um banho num mar de águas límpidas e calmas (tendo ao fundo o porto da ilha), fiquei pensando em como faria o registro da viagem... Uma viagem de turismo em tempos de peste. Os números relativos às contaminações, doentes e mortos em queda no País, mas ainda uma situação que requer cuidados especiais, segundo às autoridades médico-sanitárias sérias (Conselho Federal de Medicina fora, pois está atolado no bolsonarismo).

Naquela tarde, estirado numa cadeira de praia, eu estava exaurido pelas trilhas e passeios (de barco inclusive, com direito a flutuar no mar e olhar os peixes por meio de máscara) e procurava reunir as impressões da viagem. Os cenários paradisíacos, o aspecto bucólico das vilas (com 6 mil moradores no total), os relatos dos habitantes, as experiências vividas.

Praia de Santo Antônio com o porto ao fundo,

Quanto ao relato dos moradores, escutara pontos de vistas diversos em relação a viver na ilha. Segundo Carlinhos (um divertido guia de passeios), Fernando de Noronha é um lugar tranquilo, sem registro de violências como roubo, assalto e assassinato, e só isso justifica a satisfação em viver no local. Ele é natural da ilha e ali fez a sua vida, desde cedo envolvido com turismo. Só se assustou no ano passado, quando a pandemia interrompeu o fluxo de viajantes e criou uma situação desesperadora (que se normalizou a partir do final do ano passado).

Um motorista de táxi, no entanto, me disse que a tranquilidade da ilha tem um preço alto: custo de vida caro, com gasolina (neste início de novembro) a R$ 9,60. Relato ampliado por uma vendedora, numa loja: local tranquilo, sim, mas tedioso. “Só trabalho e praia”, ela disse, de modo desanimador. E concluiu não ver a hora de voltar a morar em Recife (cidade em que nasceu). Ela e o marido estão ilha só para fazer um pé de meia, explicou. Ilha tranquila, cara, mas com alternativas de ganho financeiro.

Seria a ilha um cenário paradisíaco apenas para os turistas? Pergunta que não arrisco responder. Sou um turista e vejo a ilha desta perspectiva. Sempre entendi as áreas portuárias como locais de muita sujeira e me espantei ao tomar banho próximo aos navios ancorados, como fiz nessa prainha chamada Santo Antônio. As águas são cristalinas (com água pelo pescoço, enxerguei meus pés) e me espanto com os cuidados em relação ao lixo. Tema para outros textos desse cronista que está se arriscando a sair de casa e habituando-se aos novos tempos.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Breve "verão" da militância (1978-79)

            A reforma partidária proposta oficialmente pelo Governo Figueiredo, no primeiro ano do seu governo, foi vista com surpresa por muitos de nós, jovens que abriram os olhos para a política ao longo dos anos 70. Uma surpresa positiva. Uma possibilidade instigante. O bipartidarismo era uma artificialidade completa – coisa de governo autoritário – e precisava ser extinto.

Mas o tema se colocou para mim antes da proposta oficial do Governo. Em meados de 78 (ainda no Governo Geisel) o jornal Versus propôs e festejou a ideia de um Partido Socialista. Creio que até o Fernando Henrique Cardoso estava entre os que apoiavam a ideia – mas isso preciso conferir. Hoje, essa memória me parece absurda.  

FHC, naquele tempo, tinha enorme credibilidade entre os intelectuais de esquerda e sua obra sociológica (a Teoria da Dependência inclusive) era lida e respeitada. Seus livros constavam na bibliografia dos cursos de Ciências Humanas e, no Curso de História da UFRGS, recordo que alguns de seus títulos constavam entre as leituras obrigatórias das disciplinas de História do Brasil e História da América Latina.

Mas a ideia de um Partido Socialista anunciada pelo Versus foi apenas um cometa que passou no céu da pátria, naquele instante. Logo foi superada por outras propostas político-partidárias. A lembrança que eu tenho é de que tudo mudava rapidamente naquele final de 78 e início de 79. Em janeiro ou fevereiro o jornal Em tempo fez uma reportagem sobre o tema e penso que ali já estava colocada a ideia de um partido dos trabalhadores, nascido do novo sindicalismo paulista. O jornal Movimento expressava uma certa desconfiança em relação ao Lula e as coisas iam por aí.

Nesse mesmo verão recebo o convite de um amigo (Adeli Sell) para participar de uma reunião sobre o assunto. Uma reunião numa das salas do Teatro de Câmara, na Rua da República, em Porto Alegre. A ideia, se não me falha a memória, era de criar um partido classista, um partido da classe operária e fiquei pensando se essa proposta ainda era cabível, tendo em vista as mudanças do capitalismo, a diminuição quantitativa do operariado industrial e coisas assim. Um questionamento bem próprio de quem era formado em História e estudara sobre as mudanças da economia e sociedade capitalistas, como era meu caso.

E aqui cabe um registro de como eu me inseria no mundo, na época. Em janeiro de 1979, eu era um jovem de 23 anos, que se formara em História pela UFRGS, em 1977,  lecionava no Grupo Escolar Júlio Cézar Ribeiro de Souza, em Alvorada, e trabalhava na Rádio Capital, em Porto Alegre (na função de rádio-escuta). O ingresso no Magistério Estadual (na condição de contratado, 12 horas) se dera por indicação de um “pistolão” (um vereador da ARENA, Rafael Santos, amigo da minha família) e isso não me incomodara. Com o cartão do vereador eu fora na Delegacia de Educação de Gravataí e, na mesma tarde, saíra com o “fono” para a escola de Alvorada. Acho que foi assim.

Nessa época, não tinha experiência política partidária (como não tenho até hoje) e todo meu contato com o tema se dera após o ingresso na UFRGS, em 1974. Cursara o colegial no Julinho (Colégio Júlio de Castilho, em Porto Alegre) e nesse período (1971-73) o grêmio estudantil estava fechado e todo o passado de agitações políticas da escola era ignorado pela estudantada. Que tempos estranhos aqueles! Na Universidade, entrei em contato o movimento estudantil, por meio do Diretório Acadêmico dos Institutos Unificados (DAIU), acompanhei com entusiasmo os debates político-ideológicos do período e me tornei um leitor assíduo dos jornais Movimento, Versus e Em tempo.

Na Rádio Capital (onde comecei a trabalhar naquele verão de 79), fui convidado por uma colega jornalista (Neusa Ribeiro) a participar das reuniões do Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) e essa foi minha única experiência de participação num grupo político. Mas não fui longe. Não passei de um tarefeiro que levava o jornal da organização (O Companheiro) para vender na escola e em eventos políticos, como no 1º de Maio de 1979. No caso desse 1º de Maio, um ato político num campo da Zona Norte de Porto Alegre, no qual havia mais vanguarda e policiais do que trabalhadores. Tentei vender um jornal para um sujeito que me pareceu ser um “rato”, mas ele não quis. Vendi pela metade do preço um exemplar para um vendedor de amendoim (um sujeito que lia com dificuldade as manchetes do jornal) e essa é a melhor lembrança.

A organização tinha reunião todos os sábados à tarde e, na metade do ano de 79, interessou-se pelo movimento que organizava o futuro Partido dos Trabalhadores. Eu participei de algumas reuniões nesse sentido e foi uma experiência curta. Não aguentei muito tempo.

Não recordo a posição do MEP em relação ao novo partido, mas penso que, de modo geral, a organização se colocava como uma tendência independente, muito crítica em relação às posições moderadas (não revolucionárias) que pareciam ser dominantes no novo partido. Pouco a pouco, porém, fui simpatizando com o tom da esquerda petista, distante do marxismo-leninismo que orientava o MEP. Mas não sei propriamente quando isso se deu, isto é, quando tomei consciência disso. Provavelmente foi muito depois.

Na época, o que havia era empolgação. Muita discussão, conversas de horas à fio, e pouca leitura realmente atenta dos tantos textos, análises, abordagens diversas e conflitantes. No meu caso, faltava competência e maturidade. Eu lia e interpretava tudo à luz do meu raso conhecimento de História e marxismo e era difícil chegar a alguma conclusão. Me sentia no olho do furacão, com o sentimento de estar vivendo um momento importante do Regime Militar: o da sua derrocada (ou, pelo menos, era assim que eu percebia a conjuntura). E estava feliz por isso. Eu era jovem, achava que o mundo poderia mudar e que um partido que se propusesse a defender a pauta dos trabalhadores era tudo que a sociedade brasileira precisava.

E, assim como mantinha contato com a esquerda radical, tinha conhecimento pessoal também da esquerda moderada alojada dentro do MDB. Recordo que essas pessoas entendiam que não era hora de se desfazer da grande frente política que era esse partido, pois isso só enfraqueceria a oposição. Opinião, claro, que eu ignorava solenemente. Entre essas pessoas, mais tarde, vim a saber que algumas eram vinculadas aos partidos comunistas (PCB e PCdoB) e isso me faz concluir (hoje) que eu pouco entendia da vida real da política brasileira. Era um jovem professor e ainda vivia o clima eufórico muito comum aos estudantes. Me faltava senso de realidade e eu procurava compensar isso me entrosando com as atividades do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS). Através do CPERS, eu pretendia uma experiência mais concreta do mundo do trabalho e, dessa maneira, uma superação do meu idealismo. O mundo da política partidária me parecia muito difícil de compreender e o mundo do trabalho, algo mais tangível.

Nesse contato com os integrantes do Magistério Estadual, recordo que conheci o professor Clóvis Oliveira, fui a uma reunião no seu apartamento, e me impressionei ao ouvi-lo dizer que a classe operária brasileira já tinha o seu partido e que o PT não iria substituí-lo. Talvez não fossem essas as suas palavras, mas recordo que o novo partido não lhe interessava. Os trabalhadores já tinham a sua organização partidária.

É dessa forma que lembro as coisas daquele período. Não há precisão nessa memória. Eu era um tarefeiro do MEP e nunca formalizei o meu ingresso na organização. Acho que integrava a organização de um modo um pouco irresponsável, sem vínculos formais, sem um compromisso mais forte.

Um dia, participei manhã e tarde de uma plenária do futuro PT (no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora de Pompeia, em P. Alegre) e a experiência foi definitiva. Na véspera, no sábado, passara a tarde inteira discutindo com meus companheiros do MEP a respeito da posição da organização em relação ao novo partido e foi com essa orientação que fui para a plenária. Era uma posição bem fechada, exigindo que o novo partido se comprometesse com uma perspectiva obreira, com o socialismo e uma futura agenda revolucionária. Quando chegou no domingo, assisti os dirigentes da organização arrefecerem suas posições para conquistarem algum lugar nas comissões que eram formados.

Saí da reunião cansado, com dor de cabeça, chateado com o que assistira e me esforçando muito para compreender. Pragmaticamente, entendia o que os dirigentes da organização haviam feito – mas tinha dificuldade de aceitar. Teoricamente, as coisas não se encaixavam e eu não sabia como conciliar a visão revolucionária do MEP com o pragmatismo político das principais lideranças (sindicalistas, na maior parte) do novo partido. Mas não sei se eu colocava o assunto nesses termos. Possivelmente não. Levei anos pensando sobre isso e acho que esse foi um dos assuntos que pautaram o PT até os anos 90: a difícil relação entre as tendências revolucionárias e a direção partidária, mais moderada.

No entanto, o que me incomodava mais é que gastara o final de semana inteiro nessa atividade política e não sabia se era isso que queria para a minha vida. Uma semana de trabalho me esperava – aulas no grupo escolar pela manhã, jornadas das 18 às 24 horas na Rádio Capital – e eu estava cansado depois daquela plenária. Exaurido. Daria o meu couro para a política partidária?, para uma prática política na qual eu era atropelado, não compreendia direito? Essas eram as questões.

Devo acrescentar que nesse mesmo final de 1979 conhecera uma moça, estava apaixonado e logo começamos a fazer planos de morar juntos, de casar oficialmente inclusive (o que ocorreu em fevereiro de 81). Estava, então, sob o signo da paixão e tudo mais foi se tornando secundário. Centrei minha atividade no trabalho, na vida prática, e logo tive uma surpresa: fui demitido da Rádio Capital. Não conseguiria me sustentar apenas com o contrato de 12 horas no Magistério Estadual e precisava de outra atividade. E o problema, mais uma vez, foi resolvido por meio de pistolão: minha madrinha tinha uma amiga na Delegacia de Educação, em Canoas, e essa funcionária conseguiu um novo contrato numa escola próxima à Vila Mathias Velho. Mais uma vez fui trabalhar na periferia de Porto Alegre.

Dessa maneira, dei uma basta na minha experiência político partidária. Deixei o MEP (nem recordo o que conversei com meus antigos companheiros) e decidi que voltaria minha atenção para o campo sindical, o CPERS (que naquele tempo ainda não era sindicato) – um campo muito mais fácil de compreender e atuar.

          De certa forma, foi uma atitude individualista: me voltei para a vida privada, para a vida mais concreta, tangível. O mundo político partidário era demais para mim. Acompanhei de longe a fundação do PT e confesso que gostei do modo como o partido se apresentou: sem os signos da esquerda tradicional (sem referências a Marx e Lênin nos documentos oficiais) e se colocando aberto para discutir os rumos da classe trabalhadora e, inclusive, a questão do socialismo. Um socialismo que, me parece, ainda é um projeto daqueles que se alinham ao campo do Trabalho – um projeto que não está fechado, um sonho talvez, mas um sonho que ainda vale a pena ser sonhado.

Obs.: esse texto foi escrito a pedido do meu amigo Adeli Sell e está incluído no seu livro "Memórias do PT gaúcho - vol. 1" (PoA, Ed. Documenta, 2021). 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

O mendigo (memória dos anos 80)

           Eu estava comendo um sanduíche no balcão de um bar e avistei pela janela: um homem sentado no chão da calçada. Me levantei, cheguei mais perto do vidro e constatei: a pele branca encardida, as roupas imundas, alguns sacos ao redor. Um mendigo. Um quadro deplorável. Até o sanduíche que eu mastigava ficou difícil de engolir.

Paguei o lanche, segui meu caminho, mas antes disso passei perto do homem e o observei mais uma vez.

Naquele tempo, além de lecionar numa escola estadual, eu trabalhava para o Círculo do Livro e era isso que eu fazia naquele final de tarde. Batia na porta das casas, apartamentos, às vezes de um escritório, e entregava os livros encomendados.  A Montanha Mágica, de Thomas Mann, romances da Agatha Christie, Dom Quixote, Maquiavel, Diderot. Tinha um cliente, advogado, que só adquiria clássicos.

Quando cheguei em casa no início da noite, o mendigo não me saia da cabeça. Esquentei no fogão uma comida que havia na geladeira e minha mulher, que já estava deitada, quase dormindo, veio conversar comigo, na cozinha. Eu comia e ela falava do enxoval do nosso filho, passava a mão pela barriga e dizia que ele às vezes dava uns chutes muito fortes.

– Ele ou ela – ela falava. Não sabíamos. Ela fizera um ultrassom, mas naquela época não era fácil ver o sexo da criança.

Pensei em falar do mendigo, mas os assuntos do bebê eram tantos e foi melhor assim. Na semana seguinte, no mesmo bar, bebendo uma xícara de café com leite, vi de novo o maltrapilho no chão da calçada. O mesmo lugar.

O garçom notou que eu não tirava os olhos do homem e falou:

– Era professor em Bagé. Homem culto, neto de fazendeiro, com terra arrendada e tudo mais. Conhecia muitos livros, era respeitado, tinha mulher bonita, filhos, mas se perdeu na bebida. Foi corneado e deu nisso.

Olhei para o mendigo e ele lia um livro sem capa. Naquele dia, eu tinha na sacola O estrangeiro, de Camus, Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, Os sertões, entre outros. E o meu cliente advogado me deu Anarquistas, graças adeus, da Zélia Gattai, que saíra recentemente e ele possuía mais de um exemplar.

“Será que eu acabaria assim?”, pensei, olhando o mendigo. Será que eu me enredaria com a vida, a bebida, a mulher, e deixaria tudo para trás?

Naquela época, eu dava vinte aulas por semana, tinha dez turmas, 300 e poucos alunos, carregava sacolas de livros e era difícil fechar o mês. Sempre faltava grana.

E foi assim durante um bom tempo. Eu passava naquela esquina e lá estava o homem. Entrava no bar, fazia um lanche e observava os seus traços finos do seu rosto, das mãos. Às vezes o olhar perdido, às vezes os olhos presos num livro sebento, desconjuntado.

Um dia, porém, encontrei a esquina vazia e o garçom me informou:

– Vieram buscar o homem e ele não quis ir de jeito nenhum. Dois enfermeiros parrudos pegaram ele à força, enfiaram dentro de uma ambulância e acho que foram direto pro hospício.

Minha filha já tinha nascido, era uma rica duma guria e eu não sabia que um bebê podia ser tão bonito. Na sacola, eu trazia Drummond, Vinicius, vários títulos da Agatha Christie e os clássicos do meu cliente advogado.

Naquela noite, esse cliente me recebeu no seu escritório, me serviu uma bebida e ficamos conversando. Ele conhecia um pouco de Machado, mas só agora terminara O Alienista e estava lendo Memórias póstumas...

– A vida não deixa a gente fazer o que quer – ele disse. – A vida nos pega, nos usa e muitas vezes nos joga fora depois de um tempo. Depois de um tempo de serventia – concluiu. Depois se virou para mim e comentou:

– O outro entregador não era como tu. Não lia. Mas conhecia todo o catálogo do Círculo, sabia vender e, se tu deixavas, ele te convencia dessa e daquela obra. Um avião.

– Eu sou professor – eu falei. E estranhamente senti vergonha de dizer isso.

Quando cheguei em casa, minha mulher dormia com o bebê ao lado, na nossa cama. Tinha acabado de amamentar a criança e eu peguei o pacotinho (era uma menina) e levei para o seu quarto. Coloquei a guria no berço, acendi o abajur e fiquei lendo a Zélia Gattai que ganhara de presente. Estava no fim e terminei naquela noite.

Não lembro porque, mas pensei no mendigo. A pele encardida, as unhas pretas, os livros sem capa, sujos. Um homem que foi professor, tinha terra arrendada, grana, mulher bacana e filhos. Mas perdeu tudo. Coisa alguma o segurou no prumo. 

Naquela tarde, no bar, havia uma pilha de livros sobre o balcão. O Senhor Embaixador, do Érico, As sandálias do pescador, do Morris West, e um Alceu Wamosy. Todos eles com capa.

         – Uma mulher do bairro deixou aqui – disse o garçom, apontando os livros. – Ela estava fazendo faxina em casa, se lembrou do mendigo e deixou os livros aqui para eu entregar pra ele. Eu falei que levaram o homem, mas ela não escutou. 

sábado, 23 de outubro de 2021

Feira do Livro na pandemia

Durante a Feira do Livro, escutei um médico falar que a pandemia acabou já faz alguns meses. Escutei calado, pois não conhecia o sujeito e ando sem ânimo para criar polêmica. Estava numa roda de conversa, ele era amigo de um amigo e justificou sua opinião afirmando que o novo coronavírus estava sendo superdimensionado pelo embate político.

A pandemia terminou, as máscaras não servem para coisa alguma e “usá-las é como querer pescar lambari com rede para peixe grande”, ele arrematou.

Eu sou um leigo que assiste aos noticiários de TV (os da GloboNews e os da TV Cultura, de São Paulo), que aceita o que é noticiado, e achei melhor não contestar um médico que trabalha em hospital, lida com os doentes do novo vírus e por aí vai. Quem sou eu? O que eu sei? Mas, se um dia eu for contaminado e desenvolver sintomas dessa doença, não gostaria de ser atendido por um médico como ele.

Logo o grupo se dissolveu e voltei para casa repassando o meu entendimento a respeito da peste. A epidemia não terminou, apenas arrefeceu e não dá para descuidar. Talvez seja questionável a eficácia das máscaras, mas é o que existe para driblar a disseminação do vírus (além da vacina, claro, o instrumento mais eficaz) e não dá para bobear.

Eu costumo não usar máscara quando saio para caminhar longe do centro da cidade (das calçadas movimentadas), mas sempre a utilizo quando entro em qualquer estabelecimento ou quando encontro alguém no caminho e paro para conversar. Não sei se exagero, não sei se estou sendo razoável e são essas as dúvidas que carrego nos últimos dias.

         No sábado passado (dia 16) fui a uma sessão de autógrafos na Feira do Livro e lá estava (como os demais escritores daquela sessão) devidamente mascarado. Uma cena de ficção científica, me pareceu, que deixo aqui registrada por meio da foto que Dartanham Figueiredo tirou de um instante em que Márcio Grings e eu conversávamos. Um cena estranha, bizarra - parecemos dois extraterrestres -, mas uma cena comum nesses tempos de peste. E, por que não dizer?, de insanidade política também.



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segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Tempos de peste (2)

 

Sexta-feira passada fui à abertura da Feira do Livro de Santa Maria, realizada no Theatro Treze de Maio. Meu primeiro evento em lugar fechado, desde o início da pandemia. A plateia era restrita, o uso da máscara era obrigatório e nem todos os lugares estavam disponíveis. Alguns assentos tinham uma fita por cima, outros estavam liberados, determinando que as pessoas se sentassem com certo distanciamento. “Que tempos!” – foi o que pensei, olhando a pequeno número de espectadores.

Meus raros leitores dirão que isso não é assunto para crônica e concordo com eles. Nada de relevante, tendo em conta os milhões de brasileiros que se expuseram a situações de risco de contaminação desde o início da atual peste. A maioria porque não tinha como evitar; outros porque seguiram a orientação do Inominável e consideraram (talvez considerem ainda) a doença como “uma gripezinha”. Apenas uma parcela reduzida da população pode se dar ao luxo do isolamento social completo. Eu sou um desses privilegiados e faço o registro, lembrando de meu avô materno, que viveu a gripe espanhola em Pelotas. Ele talvez compreendesse a necessidade de deixar isso escrito.

A Feira do Livro teve (tem, pois ainda está acontecendo) número reduzido de expositores na praça e, antes de entrar no teatro, fiz o roteiro de praxe. Passei pelas barracas, olhei as novidades, bisbilhotei nos balaios (encontrei uma peça de Sêneca) e conversei com amigos. Mas devo dizer que não sentia o desembaraço e alegria de outras vezes. Como eu, alguns dos meus amigos estavam também se exercitando. Eram professores que, desde o início da peste, trabalham em casa, ministrando aulas de forma remota, participando de reuniões, congressos e os mais variados tipos de lives.

Um desses professores me disse que contava nos dedos das mãos as vezes em que esteve no centro da cidade desde março de 2019. Uma amiga falou dos pais (com quase 80 anos) que estão muito chateados por terem de ficar em casa, pois contavam aproveitar o final de suas vidas viajando, passeando e visitando familiares. Porém, todos os que conversei estão relativamente bem, com os rendimentos garantidos e nenhum está incluído no enorme rol dos desempregados ou dos que tiveram seus negócios interrompidos. A maioria professores de universidades públicas, alguns de universidades privadas e, estes sim, sofrendo a redução do número de aulas e, consequentemente, de salário.

“Que tempos!” No ano passado iniciei uma espécie de diário da pandemia, mas não dei prosseguimento. Não tenho muito o que contar. Aposentado de universidade federal, olho o mundo da sacada do apartamento, leio livros, vejo filmes e rememoro a vida em geral. Como os pais da minha amiga, eu também imaginara viajar. Mas os tempos são outros e, parodiando uma fala da peça do Sêneca, em "As troianas" (o livro que encontrei na Feira do Livro), encerro esse registro dizendo:

– Aceita, rei da Frígia, essa lamentação, aceita esse choro de um ancião.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

No sebo, os senhores de Roma

 

Na semana passada, entrei no sebo do Juarez (quem mora em Santa Maria conhece, é pequeno, atravancado de livros) e literalmente saltou em cima de mim um romance ambientado na Roma antiga: “César”, de Allan Massie, o primeiro volume da série “Os senhores de Roma”. Estava mexendo numa pilha de livros e o volume veio, escorregou para as minhas mãos. Comecei a ler e lembrei do meu amigo Luiz Eugênio, falecido dez anos atrás, pois história romana era um dos nossos assuntos.

Um dos corredores do sebo, com o dono ao fundo,

Em 1991, nós dois chegamos a Santa Maria, para trabalhar no Curso de História, da UFSM; ele vindo de Bauru e eu, de Porto Alegre. Tínhamos feito o mesmo concurso, em 89, fomos aprovados e nos falaram que seríamos contratados no ano seguinte. No entanto, devido às medidas bombásticas de Collor de Melo, no começo do seu curto governo, a vida no serviço público foi embaralhada e nossa admissão só ocorreu um ano e meio depois.

Uma mudança total nas nossas vidas, quando ingressamos na universidade federal. Para mim, que trabalhara treze anos no Magistério Estadual, um desafio e uma nova aprendizagem.

Em 1993, uma semana antes de iniciarem as aulas do primeiro semestre, o diretor do curso me chamou e disse que eu iria lecionar História Antiga. O diretor sabia que eu não tinha conhecimento aprofundado de Antiguidade e que aquilo representava um trabalho danado para mim. Mas a intenção era essa mesma: fazer eu penar. Novato na universidade, eu assistia a uma briga entre o diretor e o vice (o meu amigo Eugênio) e achara que podia ficar numa posição de neutralidade... Doce ilusão! Não me alinhei ao diretor, ele me puniu como pode.

E lá fui eu lecionar Antiguidade – entre outras coisas, a crise da República Romana, os triunviratos, a disputa entre Júlio César e Pompeu, a conspiração dos aristocratas temerosos de perderem o poder com o estabelecimento de um governo monárquico... César é figura emblemática desse período (de guerra civil, inclusive), pois foi o general que colocou em xeque as instituições republicanas e bem poderia ter dado o golpe final na República... Haja habilidade para dar conta disso para a alunada, isto é, fazê-los entender essa confusão toda.

Pois em algum momento daquele ano de 93, jantando na cozinha do apartamento do Luiz Eugênio, examinamos livros sobre o Mundo Antigo e foi isso que recordei no sebo, quando comecei a ler as primeiras páginas do livro. Esta série, “Os senhores de Roma”, era novidade no mercado de língua inglesa na época, ainda não fora editada no Brasil... mas memória tem dessas coisas: embaralha os tempos. E (na minha lembrança) foi como se os romances de Allan Massie já estivessem ali, sobre a mesa de refeições, naquele início dos anos 90, anunciando os desafios que me esperavam.

No sebo do Juarez, lendo as primeiras páginas do romance – a descrição da travessia do Rubicão, pelas legiões de César, narrada por Décimo Bruto, general e amigo de César, aquele mesmo que poucos anos depois será um dos seus assassinos –, voltei ao duro embate com o Mundo Antigo (lecionar essa disciplina me fez suar frio) e às alegrias que o desafio proporcionou. Sim, pois não foi apenas pedreira enfrentar a disciplina de História Antiga. Foi também uma das grandes satisfações que tive nos vinte e cinco anos que passei na universidade.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Centenário de Paulo Freire (2)

Muita pretensão escrever a respeito de Paulo Freire. Mas, como afirmei em crônica anterior, fui leitor entusiástico de Pedagogia do oprimido, nos anos 70 (e até nos 80), e me sinto instigado a isso.

Em 2015, no entanto, percebi que as coisas tinham mudado radicalmente. Numa das manifestações da direita contra o governo Dilma, me surpreendi com uma faixa com os seguintes dizeres: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire.” Em torno da faixa, senhoras bem tratadas, cabelos penteados, semelhantes a outras tantas que, nas avenidas das principais cidades brasileiras, vociferavam contra a esquerda petista, curiosamente denominada de “comunista”.

Manifestação da nova direita, em março de 2015.

A princípio pensei que os manifestantes desconheciam o ideário freireano de educação dialógica (o respeito em relação aos saberes do outro, a aposta nas capacidades de emancipação dos seres humanos, especialmente dos oprimidos) e demorei a entender que se tratava da explicitação nua e crua da luta de classes. Ora respeito aos saberes das classes populares! Ora emancipação dos setores subalternos da sociedade! Isto coloca em risco a dominação burguesa e, no entendimento dessa nova direita, até do sistema capitalista.

Freire, nos anos 90 se distanciou do ideário marxista de superação do capitalismo pela via revolucionária e deixou aflorar ainda mais o seu humanismo cristão. O humanismo que marcou o seu pensamento desde a origem, anterior à Pedagogia do oprimido, quando estava engajado no nacional-desenvolvimentismo do período anterior ao Golpe de 64.

Paulo Freire foi um nordestino cristão que se sensibilizou com as condições precárias das classes populares da sua região (na década de 1950) e voltou o seu trabalho pedagógico no sentido de melhorá-las. Sua obra basilar, Pedagogia do oprimido, foi escrita na segunda metade da década de 60, impregnada pelo ideário marxista da superação do capitalismo pela via da luta de classes, numa época em que muitos católicos se integravam ao campo revolucionário. O padre Camilo Torres, morto na guerrilha em 1966, entre eles. Daí o fato de Mao Tsé-Tung e Che Guevara serem muito citados no livro.

Posteriormente (explicitamente nos anos 90), Freire rompe com a luta revolucionária, mas não com os interesses das classes populares, a articulação dos saberes populares com os eruditos, a emancipação dos setores subalternos da sociedade e a transformação do capitalismo. Mas uma luta conduzida nos marcos da democracia, apostando no seu aprofundamento, na maior participação das classes populares no jogo político. Um entendimento da educação como ferramenta para essa libertação cultural, emancipação e transformação social. Uma ênfase otimista em relação às possibilidades do diálogo com o outro, a não imposição de conhecimentos (jamais a doutrinação, seja marxista ou outra) e a construção de novos saberes. Um humanismo social.

          Para a nova direita, no entanto, essas considerações na certa são irrelevantes. Escorada na velha sabedoria da classe dominante (de saber identificar e derrotar seus inimigos de classe), o ideário freireano tem a possibilidade de fortalecer o campo popular e isso basta para combatê-lo. Ora dialogar com os freireanos! Uma surpresa para aqueles (como eu) que achavam que as posições humanistas de Paulo Freire fossem uma unanimidade. 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Centenário de Paulo Freire (1)

           Muita pretensão escrever a respeito de Paulo Freire, o qual entendo como um pensador, muito mais do que um pedagogo voltado às questões práticas da educação. Mas fui leitor entusiástico de seu livro Pedagogia do oprimido e não posso deixar passar o seu centenário sem um comentário no blog. Nem que seja um simples registro a respeito do modo como sua obra me marcou.

Pedagogia do oprimido teve a sua primeira edição em espanhol, em 1968, e só em 1974 ganhou publicação no Brasil.

Entre 1974 e 77, cursei graduação em História e, apesar das professoras das disciplinas pedagógicas não se referirem ao autor, era este o livro que nós, os estudantes, líamos. Os estudantes, claro, vinculados ao ME (movimento estudantil) e propensos a endossar a tese freireana da educação como ato político libertador. A professora de Didática vinha com Skinner, nós torcíamos o nariz e líamos Paulo Freire sem comentar sobre isso em sala de aula.

Mas, quando iniciei a lecionar, a partir de 1978, me dei conta de que o buraco era mais embaixo. Resumidamente, conclui que, “desenvolver o pensamento crítico dos alunos” não era tarefa fácil e baixei a bola. Foi um movimento instintivo, provocado pela necessidade de me enquadrar no mundo escolar, e não uma revisão do pressupostos freireanos.

De algum modo, entendi que Freire não escrevera para os professores de escola, os professores do ensino regular, e que sua fala era endereçada aos educadores de cursos não regulares. (A capa das primeiras edições no Brasil bem indicava isso, por sinal.) Não deixei de compreender que a educação era um ato político, que a libertação das opressões era o grande ideal, mas não sabia como concretizar esse ideário nas minhas aulas, com alunos de 1º Grau (o equivalente, hoje, ao Ensino Fundamental). Como articular as tarefas básicas do professor, isto é, dar conta dos conteúdos do currículo oficial, e, ao mesmo tempo, desenvolver a tal consciência crítica, respeitando as capacidades de entendimento e sensibilidade da gurizada?

Capa das primeiras edições de Pedagogia do oprimido.

Uma empreitada e tanto. Para dar conta disso, gastei muita saliva com os alunos e com meus colegas. Quanto debate sobre os conteúdos educacionais relevantes para os estudantes, quanta discussão a respeito da realidade econômica, social e política (como entendê-la, como se posicionar diante dela) e por aí vai. Conversas intermináveis que espero terem sido proveitosas para os outros como foram para mim. Da minha parte, aprendi muito. Lecionando em Alvorada e Canoas para uma meninada de classes populares, ouvi a respeito do mundo em que viviam, o modo como viam as coisas e as suas aspirações.

Tive diálogos emblemáticos, que podem ser resumidos assim:

– O que eu ganho aprendendo sobre Napoleão Bonaparte? – me perguntou um rapaz de ensino noturno, na 8ª série, em Canoas.

– Napoleão é fundamental no processo de consolidação do projeto burguês, do Estado liberal e da economia capitalista – eu respondi.

– E o que o mundo burguês e capitalista tem a ver comigo? – o aluno rebateu, rindo.

O aluno em questão morava na Vila Mathias Velho, numa área ainda não atendida por esgoto e os traficantes lhe ofereciam serviço no qual ele ganharia o equivalente a um salário mínimo por semana. O sistema capitalista consolidado (mesmo numa cidade industrial como Canoas) não lhe oferecia grandes perspectivas, ele me dizia

E eu, professor de ensino regular, enquadrado no sistema educacional oficial, fiquei sem saber o que dizer. Engasguei e voltei a falar sobre Napoleão e a nova ordem criada a partir da Revolução Francesa.

– Esta é uma realidade histórica que precisamos conhecer – devo ter dito –, se um dia quisermos mudar a realidade em que vivemos.

Um diálogo que bem reflete a minha vivência como professor, minhas pretensões e debilidades. A conversa com os alunos nem sempre levava ao que eu pretendia – um interesse cada vez maior em decifrar o mundo, entender a formação histórica da sociedade em que vivíamos –, mas era um desafio estimulante.

Nesses primeiros anos de magistério (entre 1978 e 1984), caíram por terra muitas das minhas perspectivas enquanto educador, mas permaneceu algo que ganhei na leitura empolgada de Pedagogia do oprimido: a disposição humanista em dialogar com os alunos e colaborar quanto ao entendimento do mundo. Mais do que a intenção revolucionária (presente na Pedagogia..., ressignificada por Freire nos anos 90), ficou a dimensão humanista do pensamento freireano e a sua aposta na educação dialógica.

Não sei que rumo tomou o meu aluno questionador a respeito da validade de aprender sobre Revolução Francesa e Napoleão, porém imagino que, seja qual for o caminho, ele não esqueceu as aulas de História. Que essas aulas tenham sido significativas no seu processo de decifração e compreensão do mundo. Afinal, foi Paulo Freire quem orientou o professor que as ministrava. Foi o humanismo freireano que inspirou aquelas conversas, numa escola estadual de Canoas.

sábado, 18 de setembro de 2021

Retomar as atividades

 

Em outubro do ano passado, meu filho retornou às aulas do curso de gastronomia que iniciara em novembro de 2019, em Porto Alegre. As aulas tinham sido interrompidas com o início da pandemia (em março de 2020) e, após seis meses, foram reiniciadas, seguindo os protocolos de segurança estabelecidos.

Recordo que fiquei espantado. Não era desse jeito que esperava que ele voltasse às aulas. Mas foi isso que aconteceu. Naquela época, nem vacina existia. Somente no mês seguinte, em novembro, a vacina da BioNTech / Pfizer seria aprovada e iniciaria o grande esforço mundial para a imunização em massa.

Enquanto isso, no entanto, a “Sumidade” que ainda se encontra no Palácio do Planalto brasileiro se pronunciava contra as vacinas, fazia piadas a respeito da epidemia... e o seu obediente Ministro da Saúde não o contrariava. O Governo Federal corria na contramão das medidas estabelecidas pela OMS no combate à Covid-19 e a maioria dos governadores e prefeitos faziam o que era possível para driblar (estou sendo otimista) a ignorância e a truculência bolsonaristas. Nunca imaginei que viveria uma situação tão caótica e de tremenda insegurança.

Passado um ano, ainda não sei como escrever a respeito do assunto. Meu filho concluiu o curso, conseguiu um emprego de cozinheiro num restaurante e atravessou esse período inteiro sem ser contaminado. Cuidou-se, claro, seguiu todas as regras (já tomou a primeira dose da vacina), mas se expôs cotidianamente ao sair de casa para trabalhar, pegar ônibus e enfrentar o seu expediente na cozinha. Que tempos!

No final de julho desse ano, fui a Porto Alegre fazer uma cirurgia e aproveitei para visitar o restaurante onde o guri trabalha. Procurei me adequar a esse contexto de máscaras, álcool gel e lenta vacinação (contexto bizarro, não encontro outra palavra), mas até agora não assimilei completamente essa realidade.

Desde agosto, porém, estou me experimentando para retornar as atividades. Semana passada, o meu grupo de amigos (que desde o início da pandemia não teve nenhum encontro presencial) resolveu fazer um teste: irmos todos à abertura da exposição de pintura de um amigo comum. Irmos de máscara (como manda o figurino) e ver como nos sentíamos. Um exercício para o retorno à normalidade ou coisa assim.

O teste não foi ruim e vamos nos aventurar, no próximo mês, a fazer um novo encontro. A maioria de nós tem mais de 60 anos, um e outro com algum comprometimento de saúde, mas estamos otimistas.

Retornar, voltar a encarar as atividades normais – os desafios de nosso tempo de peste, que arrefece muito devagar.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Os Três Mártires e o Santuário do Caaró

 

Comentei com um amigo a respeito da Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, e falei do obelisco colocado na frente, um marco para orientar os peregrinos. Esse tipo de visitante continua vindo a Cidade Eterna e aos seus locais de devoção, mas o que vi ao redor do obelisco foram apenas jovens sentados ao redor, rindo, conversando e fumando. Alguns deles bebendo, se não me falha a memória. Rapazes e moças que não lembravam, de forma alguma, penitentes vindos de longe.

Meu amigo, talvez cansado de me ouvir a respeito das minhas andanças europeias, começou a citar os locais de peregrinação existente aqui na região, no interior do Rio Grande do Sul, e percebi que a maioria eu não conheço.

– Estive no Santuário do Caaró – falei – mas não era dia festivo.

O santuário fica no município de Caibaté, a 40 km de São Miguel, e estive lá com um grupo de professores e alunos, a maioria estudiosos de temas missioneiros, há alguns anos atrás. No Caaró foram mortos, em 1628, os Três Mártires Missioneiros, os jesuítas espanhóis Roque Gonzales, Afonso Rodrigues e João de Castilhos, pioneiros na evangelização no nosso estado. O processo de canonização iniciou poucos anos depois, mas, estranhamente, emperrou no Vaticano durante mais de 300 anos e só se concretizou no século XX, após os religiosos da região platina (inclusive do Rio Grande do Sul) encamparem a causa, a partir da década de 1920.

Os mártires foram beatificados em 1934, por Pio XI, e é por volta dessa época (ou nesse processo pela canonização dos padres espanhóis) que o Caaró passou a ser local de devoção. Cito essa última informação de memória (acho que foi o professor Quevedo quem me disse), pouco tempos atrás consultei a respeito da passagem da relíquia (o coração) de Roque Gonzales por Santa Maria, mas não encontrei nada sobre o Caaró. Quando o coração de Roque Gonzales foi trazido a Santa Maria, em 1940, o bispo da cidade (Dom Antônio Reis) encampara a causa dos Três Mártires. A canonização, no entanto, só viria em 1988, durante o governo do papa João Paulo II.

Reza a história (ou a lenda) que, em 1940, graças a passagem da relíquia de Roque Gonzales por Santa Maria, ocorreu um milagre na região. Um camponês das proximidades veio visitar a relíquia, pediu pela melhora da sua filha desenganada pelos médicos e a menina se salvou. A “cura milagrosa” se espalhou e meses depois o bispo de Santa Maria enviou ao local um emissário (Monsenhor Busatto) para abençoar a pedra angular da futura Capela dos Três Santos. Na sequência, o local passou a chamar-se Três Mártires (atualmente 2º distrito do município de Júlio de Castilhos).

Capela dos Santos Mártires. À esquerda,
a cruz missioneira em homenagem
aos padres espanhóis.

Dois anos atrás, fui até Três Mártires para tirar algumas fotos. Também não era data festiva e estive lá apenas para registrar o local.

Escrevo isso para dizer ao meu amigo que, apesar de certo esnobismo da minha parte, abusando da sua paciência para falar das minhas andanças europeias por museus e basílicas (a de Santa Maria Maggiore e outras), não descuido completamente das marcas religiosas da minha região. Talvez devesse dar mais atenção (acho que foi isso que ele quis me apontar) e vou me corrigir nesse sentido.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Tempos de peste

           

            Meu avô materno tinha 21 anos quando a gripe espanhola chegou à Pelotas, a cidade onde morava. Conversamos a respeito do assunto quando eu era estudante de História (o assunto era citado numa das leituras obrigatórias do curso) e ele apenas contava que foi um susto danado, que as pessoas ficaram com medo e muitas se trancaram em casa. No pátio da sua casa havia um limoeiros, ele acrescentava, rindo, e que isso ajudou muito. Mas, quando descobriu que a limonada ficava melhor com cachaça e açúcar, foi a salvação da lavoura.

Mais do que isso ele não falava e a tônica da conversa passava a ser as “propriedades medicinais da caipirinha”. Uma brincadeira que a mãe referendava (limão, cachaça e mel – ela dizia – são os melhores remédios para a gripe), mas não sei se, de fato, meu avô, naqueles meses de peste, tomou conhecimento da receita preciosa. Minha memória fantasiosa, porém, insiste em afirmar que é real e vejo o vô, a mãe e eu falando e rindo a respeito do assunto, no apartamento que então morávamos, em Porto Alegre, na década de 1970.

O vírus da gripe espanhola chegou a Pelotas a partir de Rio Grande, depois que ali aportou o navio Itajubá, em 9 de outubro de 1918, com 38 tripulantes doentes. Dias depois já havia casos em Pelotas e, no mês de janeiro, os jornais pelotenses deixaram de noticiar a doença. O Carnaval, em fevereiro, aconteceu normalmente e, segundo a lenda, com redobrado entusiasmo.

Registro isso porque vivemos um outro tempo de peste – essa epidemia do coronavírus que insiste em não arrefecer – e volta e meia recordo meu avô falando a respeito da gripe espanhola... Suscintamente, é verdade. Eu nunca soube de alguém próximo a ele ter estado entre às vítimas fatais da doença (foram 4 mil no estado do Rio Grande do Sul), mas tenho a impressão de que era um assunto que ele não gostava de lembrar. Um susto danado, como ele falava.

Quando eu tiver a sua idade (76 ou 77 anos, quando falávamos da doença pela primeira vez), o que eu responderei se alguém me perguntar o que foi a peste do Covid-19? Talvez eu diga que o pânico foi geral e eu, na condição de aposentado, não tive dificuldade em acatar as regras de confinamento e distanciamento sociais, passando a usar máscara  e álcool gel regularmente.

À direita, meus primeiros frascos de álcool gel.

Mas isso não era a regra, acrescentarei. No Facebook, acompanhava um antigo colega de universidade declarar que não usaria máscara e que percebia, nas determinações do prefeito da cidade a respeito da sua obrigatoriedade, um ar de comunismo chinês cerceando a liberdade individual. Um posicionamento que não era raro e com o qual cedo me habituei a conviver. Tempos de peste e de alguma insanidade também. 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Basílica de Santa Maria Maior

             Na primeira vez que me hospedei em Roma, fiquei num hotel a duas quadras da Basílica de Santa Maria Maior (Santa Maria Maggiore). Foi um final de semana corrido e, quando quis entrar na famosa igreja (uma das quatro basílicas papais encravadas em Roma, todas elas território do Vaticano), estava fechada para visita.

Isso aconteceu em março de 2017. Dois anos depois voltei a Roma (em outubro de 2019) e deu para dar uma conferida na igreja, no horário adequado.

Lembrei disso outro dia, enquanto assistia a uma aula on-line a respeito das igrejas medievais. Santa Maria Maior havia ficado na minha memória como uma igreja barroca e, quando entrei, tive uma enorme surpresa. A igreja é constituída por uma série de estilos diferentes e possui tanto os elementos barrocos que lembrava, quanto renascentistas e até medievais. O Guia Visual de Roma (da Folha de São Paulo) fala que ainda existe parte do modelo original (do século V), mas isso não confere.

Fachada da Basílica

A fachada é do século XVIII e, ao atravessá-la, me espantei com a enorme nave central, feita ao estilo das primeiras igrejas cristãs, lembrando as antigas basílicas (prédios civis, para uso de tribunais de justiça) da antiga Roma Imperial. As colunas que dividem a nave central das naves laterais parecem antigas colunas romanas (alguns dizem que são, de fato, colunas romanas reaproveitadas) e, no teto central, caixotões dourados, bem ao jeito renascentista (provável presente do papa Alexandre VI, da família Bórgia).

Nave lateral esquerda, com colunas romanas à direita.

Caminhei até o altar central e aí o espanto foi maior. No alto das paredes do altar (abside) encontra-se um colorido mosaico medieval, com marcadas características bizantinas. Mosaico cheio de brilho, de esplendor, representando a coroação da Virgem Maria – que, mais tarde, conferi tratar-se de produção datada do ano de 1295, feita por Jacobo Torriti.

Mosaico do altar principal.

Resumindo, uma basílica que abriga os diversos estilos que marcaram a construção das igrejas católicas e capaz de dar um nó na cabeça de um professor de História como eu, desses que se acham capazes de entender a história da arte. Compreensão que, mais uma vez, me dei conta de que é limitada. Sou um conhecedor de generalidades e, muitas vezes, como ocorreu nessa visita ao interior da Basílica de Santa Maria Maior, fico surpreso e em dúvida com o que vejo. Recordo que me sentei num banco, consultei meu guia de viagem e procurei colocar em ordem as ideias, sem grande resultado.

Assistindo a uma aula virtual, dia desses, recuperei a impressão daquela visita. Até hoje estou procurando colocar em ordem as ideias e dar um jeito nessa perplexidade que o mundo católico romano provoca em muitos de nós.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Francesca e Paolo no Museu d'Orsay

           No Museu d’Orsay, em Paris, encontra-se uma cópia em gesso da “Porta do Inferno”, de Rodin. Uma escultura enorme, com dezenas de figuras, das quais, posteriormente, o artista desenvolveu algumas peças independentes, como “O Pensador” (no alto da porta) e “O beijo” (no canto inferior, à direita).

Confesso que, quando me deparei com a obra, fiquei zonzo. Não sabia o que olhar primeiro. As figuras em gesso ficam um pouco perdidas, falta alguma coisa (é um “esboço”, afinal de contas) e é preciso atenção. A versão acabada, em bronze, se encontra no Museu Rodin e não fui até lá.

Em Paris, fiz visita de uma semana (em outubro de 2019) e o passeio ao d’Orsay durou apenas uma manhã. Tempo suficiente apenas para ter uma visão geral do museu. Mas guardei fotos, um catálogo das obras e uma infinidade de impressões que guardo feito um tesouro. De tempos em tempos, me vem uma e outra lembrança (de uma obra ou um detalhe, de uma impressão ou um comentário) e a memória vai adquirindo novos contornos.

      A “Porta do Inferno” foi inspirada na Divina Comédia, de Dante, e abrange pouco mais de cem figuras. No canto inferior à direita, está um casal de amantes, inspirado em Francesca de Rimini e Paolo Malatesta (citados no Canto V). Famoso casal de uma história de amor adúltero, do século XIII, que foi recriada inúmeras vezes a partir do século XIX. Atualmente, o castelo de Gradara (em Rimini, na Itália), onde Francesca viveu sua história com Paolo, se tornou um point turístico dedicado à celebração do amor.

Francesca foi prometida pelo pai (governador da cidade de Ravena) ao filho mais velho do governador de Rimini, nas tratativas de um acordo de paz entre as duas cidades em guerra. Francesca, sem conhecer o noivo, serviu para selar a negociação política. Reza lenda que o noivo era muito feio (deformado) e foi o irmão dele (mais jovem e belo) quem tratou dos acertos finais. O resultado foi uma variação de Tristão e Isolda: a noiva se apaixonou pelo emissário do noivo...

No poema de Dante, o momento em que o casal sucumbe ao pecado (isto é, incorre na lascívia que os conduz ao adultério, na visão severa do poeta) é quando eles estão lendo um romance de cavalaria e Lancelot beija Guinevere (a esposa do Rei Arthur). Francesca e Paolo se excitam com a cena e beijam-se também.

Ingres pintou a cena em 1816 e colocou Giovanni (o marido de Francesca) surgindo atrás de uma cortina, tirando a espada da bainha e prenunciando o assassino duplo que cometeria: a morte dos amantes.

Guia de visita ao Castelo de Gradara
com reprodução do quadro de Ingres.

Com o passar dos séculos, a abordagem moralista de Dante a respeito do casal de amantes arrefeceu e a obra de Rodin já indica isso: Francesca e Paolo foram o ponto de partida para a celebração do amor. Em “O beijo” não há ecos do amor carnal sendo condenado (e conduzindo os casais de amantes aos círculos do Inferno).

          Pensando bem, não foi por nada que fiquei zonzo diante da cópia em gesso da “Porta do Inferno”. Quantos séculos de história e transformações a respeito do que seja o amor (e especialmente o amor erótico) estão esculpidas naquela obra! Séculos em que a visão do amor mudou, o amor se transformou e nos transformamos todos nós.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Quintana: Velório sem defunto

             Velório sem defunto foi o último livro publicado pelo poeta Mário Quintana. Naquela época (1990) ele tinha 84 anos e o título era claramente uma provocação e uma ironia desconcertantes. Lembro que foi assim que meus amigos e eu recebemos o livro[1].

No poema “Inquietude”, o poeta escreve, como quem não quer nada: “Sinto-me assim, sem motivo algum, / Como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem camarões / Num velório sem defunto...”.

Impressionante o fato do poeta estar em idade avançada e pensar na morte com humor, sem nenhum traço de amargura. “Nas despedidas / O mais doloroso é que / – tanto o que fica como o que vai embora – / Põem-se os dois a pensar: / Meu Deus! quando é que parte o raio deste trem!” (“As despedidas”)

Reli numa dessas tardes de pandemia (olhando pela janela o céu ensolarado) na edição da Editora Objetiva (2015), com uma apresentação instigante de Fabrício Carpinejar. Nessa introdução, Carpinejar se refere aos poemas do livro como o “suspiro de um defunto, ainda vivo, lembrando como morreu”. Sarcásticos como se fossem de um personagem machadiano, ele diz – mas um sarcasmo leve, acrescento, mais para ironia do que qualquer outra coisa.

Como afirmou o crítico Luís Augusto Fischer numa entrevista a Zero Hora, “há um quê de rebeldia” na obra do Quintana, mas não “uma rebeldia pró-ativa”. O poeta não joga bomba nos seus inimigos, apenas faz caretas, afirma o crítico. As alegrias e dores da vida (e aí entram as mágoas e ressentimentos) viram canção e ironia na poética de Quintana, como se lê em “Reflexão para o dia de finados”: “Morrer, enfim, é realizar o sonho / que todas as crianças têm... / O motivo? Só elas sabem muito bem: / Fugir... fugir de casa!”

Mas nessa releitura, me chamou atenção os poemas que são comentários a respeito de grandes assuntos da cultura ocidental (outro tema constante nas reflexões irônicas do poeta), dos quais destaco um.

Em “O amor eterno”, Quintana reflete a respeito de um famoso casal de amantes imortalizado na Divina Comédia: “Dante se enganou: Paolo e Francesca / Continuaram bem juntinhos no Inferno, com pecado e tudo / Juntinhos e felizes! / Mas quem sabe se não seria este mesmo o castigo divino? / Um amor que jamais pudesse terminar...”.

Se o leitor não lembra, no Canto V, Dante caminha num dos círculos do Inferno (aquele dedicado aos homens e mulheres que foram conturbados por “carnais intentos”), encontra Francesca de Rimini (que traiu o marido com Paolo) e ela recorda o momento em que foi capturada pelo “vício da luxúria”.

Cito a tradução de Dante Milano: “Nós [Francesca e Paolo] líamos um dia, com delícia, / de como a Lanciloto amor venceu. / Estávamos a sós e sem malícia. // Por vezes seu olhar buscando o meu / (...). // Quando lemos que a boca desejada / fora beijada pelo ansioso amante, / este a quem para sempre estou ligada // beijou-me a boca, tremulo, ofegante. / E o livro (...) interrompendo, / não lemos mais daquele dia em diante.”[2]

Não sei se, em 1990, comentando com meus amigos a respeito do livro, os poemas que comentamos foram os citados acima. Apenas sei que Haroldo Ferreira e eu, numa noite qualquer (depois de um jantar com amigos poetas), descemos a Avenida Borges de Medeiros falando sobre o Quintana e sua recente publicação.

O poeta morava na Cidade Baixa, andava pelo centro com uma sacola no braço, e seguidamente cruzávamos por ele e o cumprimentávamos silenciosamente com um aceno de cabeça. Às vezes ele respondia com um sorriso, outras vezes, não.



[1] QUINTANA, Mario. Velório sem defunto. RJ: Objetiva, 2015. 98 p. (Selo Alfaguara.)

[2] MILANO, Dante. Poesias. Ed. Sabiá / MEC, 1971. p. 163-4. O Lanciloto citado é o cavaleiro Lancelot, da Távola Redonda, e o seu amor é Guinevere, a esposa do Rei Arthur.