segunda-feira, 23 de julho de 2012


Mãe

A mãe conta que tinha empregada doméstica, faxineira e lavadeira. Ela era professora primária, o pai trabalhava num banco, e pergunto para ela como eles pagavam tantas empregadas. “Não sei”, ela diz, e explica que o salário que recebia permitia que renovasse o guarda-roupa dos três filhos, sempre que mudava a estação. Os professores da escola pública não ganhavam mal nas décadas de 1950 e 60. Mas nos 60 as coisas começaram a mudar, ela comenta. A situação salarial dos bancários também se modificou.
Na segunda metade da década de 60, as condições da classe média brasileira se reconfiguraram. Talvez seja assim que se deva dizer. Crise do modelo de acumulação de capital, crise política e institucional (resolvida por meio de golpe militar), repressão dos movimentos operário e camponês. Aos poucos as coisas foram apertando para os setores médios também.
A mãe conta que não lembra disso que eu falo: “a repressão”. Todos na família apoiavam a intervenção militar. O irmão dela era major e se alinhava ao “movimento civil-militar”. Um outro tio (do lado paterno) era do PTB, fora preso, mas sobre ele não se falava.
“Teu tio brizolista era da pá virada”, a mãe conta. “Ele uma vez levou teu pai a uma reunião partidária e ele voltou furioso. Nunca contou o que houve. Só falou que nunca mais voltava. Passou a detestar política.”
Faço com minha mãe o que se chama história oral – ou, ao menos, a coleta do seu depoimento de vida. É uma mulher que admiro – não apenas por ser minha mãe.
De manhã cedo, acordando o marido e os filhos, andava de um lado para o outro e não faltava coisa alguma para nós: a roupa para vestir, o café com leite servido na mesa. Andando pela casa, ela cantava o Hino Rio-Grandense ou recitava Alceu Wamosy (“Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada, / entra, e, sob esse tempo encontrarás carinho.”).
Ríamos muito nessas horas matutinas, vestindo as calças brim-coringa e depois segurando a xícara com as duas mãos, bebendo o café com leite. Às vezes, reclamávamos de alguma coisa. Se bem que isto de reclamar não era permitido. “Vocês têm tudo” – e aqui entrava a voz do pai –, “reclamar do quê?”
A mãe cantava, recitava e comandava “o povo da Uruguai” – isto é, da casa da Rua Uruguai, onde morávamos em Pelotas, no final dos anos 50 e início dos 60.
Comento com a mãe que o pai sempre dizia que ela era uma ótima administradora. Poderia comandar uma empresa. E ela ri. Então olha bem para mim - que brilho faceiro seus olhos ainda têm! - e  diz que tinha uma senzala: empregada doméstica, faxineira e lavadeira. Que era desta maneira que fazia as coisas andarem. Mas não sabe como ela e o pai pagavam aquilo tudo.

domingo, 22 de julho de 2012


Fortaleza dos Aparados da Serra

Um amigo me ligou uma noite dessas e contou que esteve no parque nacional de Fortaleza dos Aparados da Serra. Ele passou pelo Itaimbézinho e depois foi até a beira do Malacara, para ver o litoral de Santa Catarina. Mas acrescentou que o tempo estava ruim e que não deu para enxergar coisa alguma.
Eu também nunca peguei tempo bom nas bordas da Serra Geral. Na primeira vez – há quase quarenta anos –, chovia e não vi grande coisa. As nuvens tomavam conta do cenário. Três anos depois, voltei, mas não cheguei até a encosta da Serra. Fiquei pelo meio do caminho e acampei no Itaimbézinho, bem perto do canyon.
Nessa oportunidade, fazia um tempo agradável e minha namorada e eu tomamos banho no arroio que deságua dentro do canyon. Ficávamos em silêncio dentro da água, escutando os pequenos ruídos que vinham da mata e o barulho da cachoeira, mais adiante.
Mas não desci o Itaimbezinho. Nunca desci – como meu amigo fez mais de uma vez. Só fiquei olhando a paisagem lá de cima – protegido – e o cenário ficou gravado nas minhas retinas. Jamais esqueci. É uma das jóias que guardo dentro de mim. No ano passado, levei meus filhos para conhecer o lugar e creio que eles se maravilharam.
Então meu amigo e eu comentamos as novas regras do parque – a proibição de fazer fogueira e também de acampar – e constatamos que as coisas mudaram. Foi a maneira que encontraram de preservar o meio ambiente, ele disse. Nos últimos anos, a visitação aos Aparados se dá em horário determinado e os visitantes se retiram ao entardecer. Rimos das mudanças e sentimos saudades dos “bons tempos”.
Mudaram as formas de curtir a natureza, concluímos. Está tudo mais organizado, talvez mais civilizado do que nos anos 70, aqueles velhos tempos selvagens... Agora é com hora marcada e depois se janta em torno de uma mesa, numa pousada, e ainda se dorme em cama com colchão e lençóis. Coisa muito fina para mochileiros.
E é legal desse jeito?, perguntei. É sim, ele respondeu. A mulher não se queixa do chão duro da barraca nem da falta de banheiro. Além disso, ele acrescentou, nem sei se conseguiria dormir no chão novamente. Eu disse que também não sabia. As costas incomodam, o reumatismo pegou. Já não sou mais o mesmo.
Então lembramos dos lobos-guarás que conhecemos nos Aparados. Ou melhor, eu nunca cheguei a avistar algum. Certa vez me acordei ao amanhecer, vi que a despensa estava revirada e que alguns animais haviam atacado. Um bando de lobos-guarás, disse um fazendeiro da região. Foi desse jeito que o animal passou a existir para mim. Das outras vezes, quando montava o acampamento, sempre dava um jeito de proteger melhor os alimentos.
Gosto de lembrar desses lobos, disse ao meu amigo. Saber que na paisagem de Fortaleza dos Aparados os lobos-guarás sobrevivem e não correm o risco de serem extintos – como tantas espécies pelo mundo. Provavelmente devido às novas regras do parque. Pelo menos para isso elas servem.

sexta-feira, 20 de julho de 2012


Romance policial

Aos quinze anos, comecei uma história policial. Influência dos romances de Agatha Christie e Ian Fleming, mais um ou outro filme hollywoodiano. Na primeira cena, a camareira de um hotel suíço encontrava um cadáver e logo era chamado o detetive. O hotel ficava numa aldeia, entre os Alpes, e eu tirara o cenário de uma foto de calendário.
O detetive examinava o local do crime e logo descobria o cartão de uma modista de Paris. Aquilo parecia não indicar coisa alguma, mas logo se revelava o ponto de partida para chegar ao criminoso. O assassino era o irmão da modista...
A história não convencia ninguém (nem ao autor) e não teve conclusão. O detetive não pôs a mão no criminoso e ele, até hoje, deve andar por aí.
Lembrei dessa história quando estive na Feira do Livro de Bagé, no ano passado, para lançamento do Milongueiro, organizado por Athos Miralha da Cunha. Milongueiro é um livro de contos, publicado pela Editora Movimento, composto por doze contos – cada conto dividido em quatro partes, cada parte escrita por um autor. Um livro coletivo, de autoria do Athos, Tânia Lopes, Candinho (Antônio Cândido Azambuja Ribeiro) e eu.
A temática é regionalista – com coronéis, fazendeiros, chimangos e maragatos, o chinaredo e o Grupo dos Onze – e lá estávamos nós numa das cidades emblemáticas da Campanha sul-rio-grandense. O lançamento foi um fracasso – não havia exemplares do livro para vender –, mas, enfim, estávamos em Bagé.
Dei uma volta ao redor da praça Silveira Martins (onde acontecia a Feira), tirei fotos do casario e pensei: se o guri de quinze anos que eu fui tivesse conhecido esta cidade, na certa ambientaria o seu romance policial por ali. Um belo cenário! O criminoso estrangularia o seu desafeto numa daquelas casas e depois embarcaria num Jeep em direção a Montevidéu. Lá, assaltaria as economias da irmã (uma sofisticada costureira), depois pegaria o vapor para Buenos Aires e sumiria na Patagônia.
Mas o menino que eu era vivia na faixa litorânea do estado, entre Pelotas e Porto Alegre, tinha a imaginação colonizada por literatura e filmes estrangeiros e pouca coisa além disso. Cenários de livros e filmes só podiam ser as aldeias nevadas da Suíça ou a cinzenta Paris, jamais uma singela cidade da Campanha rio-grandense e as portentosas capitais às margens do Rio da Prata.