segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Homens de vida amarga

 

A recente operação do Ministério do Trabalho e Polícia Federal, resgatando pessoas que viviam em condições “análogas à escravidão” em Bento Gonçalves, me recordou o poema “O açúcar”, de Ferreira Gullar. Um poema que tematiza os trabalhadores nas usinas de Pernambuco e Rio de Janeiro, na década de 1960:

“Em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola, / [vivem] homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / (...) / homens de vida amarga / e dura.”[i]

Um poema que aborda a perpetuação de formas arcaicas de exploração do trabalho e que eu utilizava nas minhas aulas de Educação Moral e Cívica, entre 1980 e 1983.

Eu era professor de História numa escola estadual de Canoas e, para completar a carga horária, lecionava Educação Moral e Cívica. Os tempos duros do Regime Militar tinham arrefecido e essa disciplina não era mais entregue a professores com posição política e ideológica afinada com o governo. (Pelo menos foi isso que a diretora me disse, quando me designou para as aulas.)

Eu seguia o programa oficial (sim, abordava a Doutrina de Segurança Nacional), mas abria espaço para discutir a sociedade brasileira e aí colocava o poema de Ferreira Gullar para abordar as condições dos trabalhadores e a permanência de práticas teoricamente superadas pelo capitalismo moderno.

A escola estava localizada entre os bairros Harmonia e Mathias Velho, em Canoas, e o trabalho duro e a desigualdade social eram moedas correntes entre os alunos. Muitos deles, filhos de homens e mulheres de vida amarga, saídos do mundo rural e em choque com o mundo urbano-industrial da região metropolitana de Porto Alegre. Eu ouvia os alunos falarem a respeito (visitei a casa de alguns) e aprendia com eles.

Alguns desses alunos moravam em terrenos invadidos no Bairro Mathias Velho – invasões iniciadas em 1979 e que, na época, constituíam uma novidade no horizonte das lutas sociais –, com infraestrutura precária, mas com uma organização impressionante. (Lembro até hoje das ruas de terra simetricamente traçadas, as valas abertas, os canos de plásticos para a água, as casas de madeira instaladas no meio de pequenos terrenos, tudo rigidamente planejado.) As ações eram lideradas por religiosos informados pela Teologia da Libertação e resultaram nas vilas Santo Operário e União dos Operários, as quais, anos mais tarde, adquiriram boas condições de infraestrutura. (Visitei-as em 2012 e constatei isso.)

Pois ouvindo as notícias sobre os trabalhadores super-explorados em Bento Gonçalves, lembrei dos “homens de vida amarga” do poema de Gullar e das minhas aulas de Moral e Cívica... Naquele tempo (de revogação do AI-5, anistia e retorno ao multipartidarismo), eu era esperançoso quanto às possibilidades das relações de trabalho ingressarem num patamar mais civilizado. Hoje, nem sei mais o que dizer. O mundo é o que é. Ponto.

 Até o momento em que escrevo essa crônica, mais de 200 trabalhadores foram resgatados. Eles eram contratados pela empresa Oliveira e Santana, trazidos da Bahia, e viviam em “situação inadequada de alojamento e de higiene”, servidos com “alimentação estragada” e tratados com “violência física” (praticada por meio de gás de pimenta inclusive). Trabalhavam na colheita de uvas para as empresas Salton, Aurora e Garibaldi, mas essas vinícolas já emitiram notas afirmando desconhecer o modo como a Oliveira e Santana tratava os trabalhadores e lavaram as mãos em relação à barbárie.



[i] GULLAR, F. “O açúcar”. Dentro da noite veloz. RJ: Civilização Brasileira, 1975. P. 44-45.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Dia do imigrante italiano

 

O dia do imigrante italiano (comemorado dias atrás, em 21 de fevereiro) gera muita conversa entre os seus descendentes, entre os quais me incluo como neto. Meus avós paternos, ainda jovens e solteiros (cada um com suas respectivas famílias), chegaram ao porto de Santos, no final do século XIX. Meu avô, com 14 anos, em 1888; minha avó, com idade que desconheço, provavelmente na década seguinte. Eles se conheceram numa fazenda de café (em Sorocaba), casaram na cidade de Tietê, viveram um tempo por lá e depois vieram para o Rio Grande do Sul. Nesse percurso, tiveram uma penca de filhos (catorze, segundo a história oral da família), o último deles, meu pai, nascido na cidade de Rio Grande.

Dos seus filhos, netos e bisnetos, não recordo de nenhum se dizendo italiano – como às vezes se declaram outros descendentes de imigrantes –, mas todos se orgulhavam e se orgulham da sua origem. Certa vez, numa reunião familiar (na praia do Cassino, por volta de 1970, quando meu pai e a maioria dos seus irmãos ainda eram vivos), alguém puxou uma conversa nostálgica a respeito da bela Itália, suas paisagens bucólicas, o bom vinho, as grandes realizações culturais, e o tio Victor lascou em tom de galhofa:

– Calma aí, que bobagem é essa?! Tá esquecendo que nossos pais receberam um pontapé na bunda dessa bela Itália?

Em poucas palavras, esse tio estava sintetizando o processo histórico da Grande Emigração Italiana para os Estados Unidos, Brasil e Argentina, ocorrido entre os anos 1870 e a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A expulsão de milhões de italianos de sua terra natal. A debandada daqueles que plantavam e ceifavam o trigo, mas não provavam o pão branco. Cultivavam a videira, mas não bebiam o vinho. Criavam os animais, mas não comiam a carne.

As palavras desse tio foram tão contundentes, que quem estava desfiando a conversa mole da Itália gentil se calou e saiu da sala. Uma observação que me apresentou (eu era um guri de Ginásio) um modo de ver a imigração italiana no Brasil que, certamente não deve estar longe da verdade.

– Nem papai nem mamãe falavam muito do que viveram na Itália – me disse a tia Irani, muitos anos depois, quando eu procurava reunir dados a respeito do passado da família. A tia não entrou em maiores detalhes sobre o assunto e fiquei com a ideia de que meus avós não tinham boas recordações de suas respectivas aldeias natais. Um mistério que até hoje me intriga e que preencho com especulações.

Centro histórico de Vicenza.

Em fevereiro de 2017, num tour pelo norte da Itália, entre Veneza e o Largo de Garda, com um grupo de brasileiros (todos nós descendentes de imigrantes, participando de um curso de língua italiana na cidade de Castelraimondo), ouvi um comentário de um colega que me calou fundo. Estávamos em Vicenza, acabáramos de realizar um passeio guiado pelo centro histórico da cidade, com ênfase nas criações arquitetônicas (entre elas, as obras de Andrea Palladio, do século XVI), e um colega me disse:

– Não era dessa Itália que a nona falava.

Estávamos no balcão de um café (nos deliciando com algum saboroso macchiato, cappuccino ou caffelatte) e lembrei dos meus avós: certamente não era a Itália das grandes criações de Andrea Palladio, Michelangelo ou outro bambambã o país em que eles viviam. Afinal, como a grande maioria dos que emigravam, eles eram os que não provavam o pão branco, o vinho e a carne que ajudavam a produzir, muito menos usufruíam a riqueza cultural que a sociedade local criava.

Foi um momento inesquecível. Na saída do café, fotografei o local (foto abaixo) e me senti bem por estar ali. O Vêneto é terra de origem de meu avô paterno e parecia que eu estava falando com ele, conversando com meu pai também, e retornando a algo tão desejado quanto o reino de Ítaca por Ulisses. Cumprindo um estranho ritual de reabrir caminhos, fazer pontes e restabelecer vínculos com o passado.

Café, na cidade de Vicenza (Vêneto).


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Outros carnavais

 

O Facebook me lembrou um passeio que fiz a Veneza, num sábado de Carnaval. Uma festa muito diferente daquela que vivenciamos no Brasil, com uma animação num outro tom, sem música vibrante, sem samba, marchinha ou frevo, e nenhuma nudez. “Chocante”, alguns dirão. Mas apenas diferente, muito diferente, outra cultura, sei lá.

Foliões venezianos.

As máscaras e as fantasias dos “foliões” italianos são famosas e vê-las ao vivo é uma confirmação da propalada fama. Os "foliões" desfilam pelas ruas e praças ricamente mascarados e fantasiados, e essa parece ser a maior atração da festa. Mas coloco a palavra “folião” entre aspas, porque a animação dos sujeitos... é de doer. Eles desfilam lentamente em pares ou em pequenos grupos e produzem um espetáculo muito sóbrio, distante do que entendemos por Carnaval. Muitas vezes ficam feito estátuas vivas no meio de uma praça ou num canto de rua e essa parece ser a sua curtição: provocar a admiração dos passantes.

Uma admiração merecida, claro, mas demorei a pegar o espírito da coisa. Se é que peguei. Me senti o típico estrangeiro vindo dos trópicos, habituado a outros ritmos e cores.

– É esse o Carnaval dessa gente? Cadê o samba, a farra, mais as loiras e mulatas seminuas para o nosso deleite?

No cais em frente à Praça São Marcos assisti a um desfile que me remeteu às raízes da festa (no século XII): uma procissão de homens e mulheres vestidos com sóbrias roupas medievais, ao som cadenciado de tambores. Os homens jogando de modo sincronizado suas bandeiras para o alto, tudo feito com passadas lentas e ritmadas.

– Que coisa séria, esses carnavalescos! Será que se divertem?

De repente, depois de cruzar a cidade, entro numa igreja (a de San Giacomo di Rialto) e me deparo com a música de Vivaldi nas caixas de som. Vejo uma série de vitrines com instrumentos musicais (peças da Coleção Artemio Versari, leio numa legenda) colocadas em frente às imagens sacras e lembro o que escreveram antigos cronistas a respeito de Veneza: uma cidade onde o sagrado e profano conviviam muito bem.

Interior da Igreja San Giacomo di Rialto.

Essas observações escandalizavam alguns (máscaras chegaram a ser proibidas por volta de 1600 por provocarem “comportamentoimoral”), mas certamente não ao padre e compositor Antonio Vivaldi (1678-1741), conhecido como “Il Prette Rosso” (O Padre Vermelho) devido a cor dos seus cabelos (ruivos).

Uma outra face dessa estranha Veneza, pensei, dentro da Igreja de San Giacomo di Rialto. Um outro Carnaval, quem sabe. Li no mural o horário das missas e das apresentações musicais (de peças barrocas, pelo que entendi, nada de música sacra no programa), e fiquei com pena da minha passagem ser tão curta pela cidade.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Os deuses Oceano e Tétis

 

Em setembro do ano passado fiz uma excursão pela Turquia na região denominada “Norte da Mesopotâmia”. Na cidade de Gaziantep (próxima à fronteira com a Síria) visitei o museu arqueológico local (Zeugma Mozaik Müses) e me surpreendi com os mosaicos romanos. Exibidos, por sinal, de forma muito original, recriando os espaços da antiga cidade romana de Zeugma, inundada pela represa de Birecik, no ano 2000.

Museu dos Mosaicos de Zeugma (Zeugma Mozaik Müses).

Entre as peças do museu, uma particularmente prendeu minha atenção: o mosaico dos deuses Oceano e Tétis. Originalmente uma peça colocada no fundo de uma piscina de casa romana (na cidade de Zeugma, nos séculos II e III d.C.), e hoje exibida numa parede.

Mosaico de Oceano e Tétis.

Na hora tive enorme dificuldade em reconhecer as figuras representadas, mesmo lendo a legenda ao lado (o texto em inglês, claro): o casal Oceano e Tétis, filhos de Urano e Geia, cercados por peixes e golfinhos, e também das figuras de Pan e Eros.

Oceano era o deus primitivo do rio que cercava a Terra (inicialmente pensada de forma plana, pelos antigos gregos), casado com sua irmã Tétis, a personificação do poder fecundo das águas; ambos da família dos Titãs, destronados mais tarde pelos deuses Olímpicos (liderados por Zeus). Oceano, apesar de não ter participado da Guerra dos Titãs, foi suplantado pelo poder de Poseidon (Netuno, na denominação romana) e seu reino deslocado para o Atlântico. Isso depois que os gregos ampliaram seus conhecimentos geográficos e descobriram o Oceano Atlântico e deixaram o Mediterrâneo sob o poder de Poseidon.

Um desafio e tanto compreender a mitologia greco-romana. Lembrei das aulas que por longos anos ministrei a respeito de História Antiga e constatei mais uma vez a precariedade dos meus conhecimentos. Que fazer, senão aceitar essa ignorância e deixar-se apenas deleitar-se com as peças exibidas?

O resto da visita andei mais despreocupado pelos mosaicos expostos, às vezes escutando a guia falar a respeito das peças, outras vezes me afastando do meu grupo de excursão e observando mais atentamente um e outro mosaico. Encantando (e intrigado também) com as representações de Dionísio, por exemplo, que a guia acentuara com entusiasmo.

Tentei, de fato, desprender-me das inquietações de velho professor História, mas não posso negar que ficaram me instigando as representações dos deuses Oceano e Tétis... Ele, com pinças de caranguejo na cabeça; ela, com asas da testa. Símbolos (as pinças e as asas) que não consegui nem consigo decifrar.

Ao voltar ao Brasil, consultei o famoso Dicionário da Mitologia Grega e Romana (DIFEL, 1993, 520 p.), de Pierre Grimal, e não houve jeito. A não ser reconhecer o que Grimal indica a respeito da mitologia: foi matéria viva no Mundo Mediterrâneo e, dessa maneira, se transformou ao longo do tempo e ganhou diversas feições, diferentes verdades.

Na antiga cidade de Zeugma, no tempo do Império Romano, Oceano e Tétis ganharam garras de caranguejos e asas nas suas cabeças e o que um professor latino-americano (que penou dando aulas de História Antiga, no outro extremo do mundo) pode querer a respeito do assunto? Apenas aceitar a sua ignorância e deleitar-se. Deleitar-se, principalmente. Deixar-se encantar por Oceano e Tétis e ser inundado pelo poder das águas.