terça-feira, 26 de abril de 2022

Os postais de Anita e Giuseppe Garibaldi

            Estive novamente em Piratini e repeti a chamada Linha Farroupilha, um percurso pelo centro histórico da cidade, com marcas nas calçadas indicando os prédios que assinalam a história do Decênio Heroico. A expressão “Decênio Heroico” é exagerada, mas, vá lá, não há como escapar da mitologia que se construiu em torno da revolta de parte da elite da Província de São Pedro em relação ao Império Brasileiro, entre os anos de 1835 e 45.

Assim como os paulistas, que foram derrotados militarmente na Revolução Constitucionalista de 1932, nós, os gaúchos, fizemos da derrota dos farrapos uma grande vitória do espírito indomável do povo sul-rio-grandense. Um povo virtuoso que não quis ser escravizado pelo governo imperial e abraçou a causa da liberdade e autonomia, conforme os versos do hino oficial do estado: “povo que não tem virtude / acaba por ser escravo”.

A derrota militar foi sucedida por um acordo político entre as lideranças rebeldes e o Império (o Tratado de Poncho Verde, responsável por uma "paz honrosa" entre as partes) e isso bastou para que, tempos depois, se construísse o entendimento de uma revolta exitosa que soube impor os interesses da Província ao Governo Central. Uma interpretação questionável a respeito do final do conflito, mas que é fundamental na construção da identidade sul-rio-grandense contemporânea.[i]

Fachada do Museu Barbosa Lessa, com a guia local
 falando a respeito da Revolução Farroupilha.

Caminhar pela Linha Farroupilha de Piratini (criada em 2012), ouvir as explicações da guia local, visitar os dois museus da cidade (o Museu Barbosa Lessa e o Museu Farroupilha) é mergulhar nesse entendimento grandioso da guerra civil e, nesse estado de espírito, contemplar as salas onde se deram as reuniões políticas e militares que marcaram os caminhos da revolta provincial. O Museu Barbosa Lessa foi sede do Palácio da República Rio-Grandense; o Museu Farroupilha, do Ministério da Guerra e assim somos envolvidos no climão revolucionário. Num e outro, vemos objetos, documentos e recuerdos desse período memorável e não há como não se emocionar. A narrativa contemporânea dignifica os soldados negros e índios que combateram sob a liderança dos grandes proprietários e hoje somos todos um povo virtuoso lutando contra a opressão dos governos centrais do passado e do presente.

Contam que uma professora de Caxias do Sul levou seus alunos a visitar a cidade e, chegada à frente do prédio onde residiram Giuseppe Garibaldi e Luigi Rossetti, se debulhou em lágrimas. Naquela residência foi impresso O Povo, o mais importante jornal da efêmera república, e bem entendo a mestra emocionada, na certa uma leitora entusiástica dos livros a respeito da História Sul-Rio-Grandense.

De cada vez que visito a cidade alguma coisa me toca mais do que as demais e, dessa vez, isso coube a dois postais do casal revolucionário, uma representação de Anita e Giuseppe Garibaldi quando se encontravam a caminho da Itália (conforme as palavras da guia do museu, abafadas pela máscara contra a Covid-19). O casal descansado dos combates e elegantemente trajado. Anita, delicadíssima, muito distante da amazona que foge das tropas imperiais montada num cavalo com o filho recém-nascido nos braços. Um episódio ocorrido na vila de Mostardas, em 1840, e representado numa enorme pintura à óleo que domina a mesma sala onde se encontram os simples postais, no Museu Farroupilha.[ii]

Postais de Anita e Giuseppe.

Não sei porque gostei tanto desses postais. Seja como for, fui fisgado pelas imagens e por meio delas imaginei o casal cruzando o Atlântico, caminhando enlevados pelo convés do navio, enfim suspensos da insana luta para libertar os povos e transformar o mundo. Uma loucura que alguns sonhadores abraçam e até entregam a própria vida, como fez o ilustre casal...

Coisas que a gente imagina, quando passeia por Piratini e mergulha no Decênio Heroico.



[i] O acordo que selou o fim da revolta foi um acerto entre o Governo Central e as lideranças farroupilhas tendo em vista a preservação da unidade territorial do Império e da sua defesa frente às ameaças de Juan Manuel Rosas, então governador de Buenos Aires e com projeto expansionista.

[ii] O quadro se chama “Fuga de Anita Garibaldi a cavalo” (1918), de Darkir Parreiras, encomendado por Borges de Medeiros para o palácio do governo. Mais tarde, com a escolha de Piratini como o local de memória privilegiado da Revolução Farroupilha, a tela foi transferida para o museu da cidade.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Pelo Curdistão bravio

            Entrei no sebo e fui direto numa prateleira onde sabia encontrar As obras de Karl May, uma coleção de trinta volumes da Editora Globo, que fazia muito sucesso décadas atrás. Os três primeiros livros, os mais famosos, intitulados Winnetou e ambientados no Oeste Norte-Americano, eram os únicos que não havia nenhum exemplar.

Winnetou – que Fernando Sabino apontava como “o livro mais sensacional” que leu na vida – eu devorei (sem exagero) na juventude, emprestado por um colega de ginásio (Nilton França). Meu pai também foi leitor de Karl May e, além desse romance, me falava com particular entusiasmo a respeito de um outro, ambientado, no Oriente Médio, Pelo Curdistão bravio – também citado por Rubem Fonseca como leitura inesquecível da sua juventude.

Eram as aventuras de Kara Ben Nemsi pelo território do Império Otomano que eu procurava e, felizmente, encontrei. Li a princípio com entusiasmo – reencontrando alguma coisa da juventude assim como das conversas com meu pai –, mas, da metade para o final, achei cansativo.

Seja como for, não pude largar o livro. Estava embalado por alguma coisa mais profunda: o desejo de alcançar o território mítico indicado pelo meu pai, a terra dos curdos, esse povo que sempre imaginei altivo, livre, muito digno, e que a narrativa de Karl May endossa.

O livro é narrado por Kara Ben Nemsi, um alemão forte, bom de soco, cioso de sua condição de europeu, representante de uma civilização que considera superior e orientada por uma igreja que imagina santa. Ele narra as peripécias do seu grupo (ele, um criado, mais dois amigos) que adentra o Curdistão, a partir da cidade de Mossul (no norte do Iraque, atualmente), com o propósito de libertar um árabe que está prisioneiro dos turcos numa cadeia da região.

Nessa viagem, o herói entra em contato com tribos curdas, com autoridades turcas (tem um passe dado pelo governante turco de Mossul), com tribos nestorianas, se envolve em grandes enrascadas, é preso diversas vezes e sempre se liberta, usando a astúcia e os punhos, jamais as armas de fogo que maneja super bem. A ilustração da capa do livro, por sinal, é uma cena exemplar do personagem-narrador: ele se vê desrespeitado pela autoridade de uma aldeia e então a ergue no ar, diz que vai jogá-la longe, mas não cumpre a ameaça depois que o homem aceita trata-lo com consideração.

Um mocinho de fita de cinema, que evita que o exército turco ataque uma tribo curda, evita que curdos e nestorianos se guerreiem, salva uma mocinha à beira da morte por envenenamento, trava amizade com uma espécie de sacerdotisa do Cristianismo Nestoriano e tudo entende, resolve, encontra saída.

Ao final do livro, num diálogo com a sacerdotisa nestoriana, o herói explicita o propósito de suas andanças por terras distantes. É um europeu colonialista, sim, mas se opõe ao autoritarismo e violência típicos do colonialismo. Orientado pelos mandamentos da Igreja Católica, Kara Ben Nemsi se coloca como um missionário, é contrário à morte de qualquer ser humano e pretende o entendimento entre os povos... Pelo Curdistão bravio concretiza essa fantasia.

Incrível como essas narrativas embalaram gerações, incluindo aí a de meu pai e minha também – nós, reles habitantes do Extremo Ocidente (a América Latina) colonizada por europeus e norte-americanos.

Terminei feliz a leitura do romance. Como Kara Ben Nemsi, que ganhou um amuleto da sacerdotisa nestoriana – um objeto para utilizar quando “precisares de salvação” – também adquiri algo especial. Não sei se vai me salvar, mas é um objeto, um amuleto, que venho burilando há várias décadas, desde quando meu pai falou de um distante território bravio.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Quanto vale um Javelin?

            Javelin é o míssil antitanque que se tornou a vedete da resistência ucraniana diante da invasão russa. Tem um metro de comprimento, pode destruir um blindado com precisão de 90% e seu lançamento é operado por apenas dois soldados. Cada unidade vale R$ 400 mil, segundo reportagem da Folha de S. Paulo.

É uma criação norte-americana, abastece o exército ucraniano desde o ano passado e, só nas primeiras semanas da guerra, 2.600 unidades desse míssil chegaram ao “país parceiro da OTAN”, principalmente pela fronteira com a Polônia.

Ao que tudo indica, o Javelin não é dos artefatos mais caros utilizados no conflito. Os valores dos blindados, carros lançadores de mísseis e helicópteros, por exemplo, alcançam cifras muito maiores, estratosféricas.

Nos anos 70, a revista O Correio da UNESCO publicou uma reportagem a respeito da indústria armamentista da época e, num box, colocou o valor de cada blindado, avião e míssil fabricados e, ao lado, no que essas cifras fabulosas poderiam se transformar caso fossem aplicadas na construção de moradias, hospitais e escolas. Chocante.

Meu amigo João Cavedini colecionava a revista (tinha assinatura, se não me engano) e me emprestava regularmente. Liamos e comentávamos as reportagens horas a fio. Difícil entender a racionalidade e desumanidade do custo das armas, mas era o mundo, concluíamos. Gastos necessários para o mundo ser o que é.

Eu cursava História, na UFRGS, meu amigo fazia Biologia, na PUCRS, e compreender os dilemas da política e da sociedade era um desafio para nós. Continua sendo, tenho vontade de dizer – mas confesso que mudou, pois não me espanto tanto quanto naquele tempo.

Continuo me esforçando para entender, continuo sintonizado no dial de que “precisamos fazer alguma coisa pela Humanidade”, mas com menos ardor. Me preocupo com a poluição do meio ambiente, com o desperdício de matérias-primas (o plástico, o alumínio, o papel) e, por isso, sou desses que separam o lixo orgânico do seco e levo esse último nos containers para reciclagem.

Do lixo seco ainda separo as caixas de leite (que corto a ponta e lavo), as tampinhas plásticas de refrigerante, as cartelas de comprimidos e os lacres de latinhas de cerveja e refri para colaborar com as campanhas humanitárias que visam atender deficientes físicos e/ou auxiliar pessoas a cuidar de animais domésticos.

Um quilo de tampinhas plásticas vale R$ 1,70; 3.500 quilos de cartelas de remédio (blisters), uma cadeira de rodas – e assim vamos. Vale muito pouco o que fazemos, separando, limpando e juntando lixo reciclável. Esforço enorme para um resultado pífio. Se poderosos de plantão pensassem diferente e canalizassem os investimentos feitos em armamentos...  

Bem, deixa pra lá – digo para mim mesmo, enquanto lavo mais uma caixa de leite e a coloco no secador, ao lado da pia. Quando somar 40 caixas, levo no posto de coleta. 

           Para ilustrar essa crônica, pensei em colocar uma imagem do míssil Javelin. Mas refleti melhor e optei pela capa de uma das edições d’O Correio da UNESCO, um exemplar que reflete bem o que sempre foi essa revista: depositária do que de melhor a Humanidade faz: a arte e a literatura. 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Palácio Nacional de Mafra

            Quando li Memorial do Convento, de José Saramago, era por volta de 1990 e o autor estava em alta. Eu cursava o Mestrado em Letras, na PUC de Porto Alegre, e o romance se encontrava entre as leituras obrigatórias. Fiquei fascinado pelo autor.

Naquela época, meu conhecimento a respeito de D. João V (um dos personagens do livro) era bastante raso. Apenas sabia que D. João fora o rei do Império Lusitano no período auge da mineração brasileira, nada sabia das suas extravagâncias e tomei conhecimento de disso ao logo da leitura.

Na primeira cena, o rei se dirige ao quarto da rainha para cumprir o seu “dever real” (emprenhar D. Maria Ana Josefa) e encontra um frade no caminho. A rainha chegara há dois anos da Áustria, ainda não engravidara e já se comentava que ela tinha a “madre seca”. Um frade promete que ela engravidará se D. João construir um convento para os franciscanos na Vila de Mafra e o soberano não titubeia: antes de cumprir os deveres conjugais daquela noite, declara que dará início às obras, se dentro de um ano nascer um herdeiro.

Pronto, estava dado o ponto de partida para a construção do que hoje se chama o Palácio Nacional de Mafra. A primeira pedra, colocada em 1717. Uma obra monumental, paga pelo ouro e diamantes do Brasil, uma espécie de Palácio de Versalhes austero. Na verdade, uma construção que adota “o modelo barroco classicizante inspirado na Roma Papal”, segundo o folder distribuído aos visitantes.

Entrada da Basílica do Palácio de Mafra.

Quando fui a Mafra, em 2019, minha máquina fotográfica de amador não deu conta de registrar a extensa fachada do palácio, isto é, a grandiosa basílica, eixo central da edificação, mais os dois enormes torreões que a ladeiam. Uma construção que “integra um Paço Real, uma Basílica, um Convento e uma Tapada”. A Tapada, uma extensa área para lazer e caça da Corte, inicialmente com 1.200 hectares cercada por muros, com veados, javalis e raposas[i]. Reis e rainhas gostavam muito de caçar.

O palácio é pouco visitado (se compararmos com outros palácios europeus) e algumas vezes me encontrei sozinho em uma e outra sala – como no quarto de D. Manuel Desventurado (o último rei de Portugal). Fiquei lendo as legendas expostas no quarto, narrando os últimos momentos que o rei passou por ali (de 4 a 5 de outubro de 1910), após ter sido destituído do trono e antes de partir para o exílio. Li, me emocionei com o desventuras de D. Manuel e, quando dei por mim, estava só no austero quarto de dormir de El-Rei.

A sala de caça também me impactou e, olhando as dezenas de cabeças de animais empalhados (os javalis e veados da Tapada, certamente), senti que eles eram sinais de como aqueles tempos da monarquia eram primitivos. Um período em que a caça era um prazer aristocrático inquestionável e em que D. Maria I, moradora do Palácio e boa atiradora, deve ter contribuído muito na morte de muitos daqueles animais.

Sala da caça.

 Mas o mais impressionante, sem dúvida, foi parar diante da enorme Biblioteca Monástico-Real, um corredor de 85 metros, com 9,5 m de largura, e paredes forradas de estantes, com 36 mil obras encadernadas. Algumas expostas em vitrines (Bíblias, livros impressos dos séculos XV, XVI e XVII), na antecâmara da biblioteca. No entanto não é permitido adentrar no corredor e bisbilhotar as estantes. Uma corda marca o limite para o passeio dos visitantes e os funcionários estão ali, atentos.

Biblioteca.

Ao lado de uma entrada da biblioteca, se vê algumas caixas de vidro com morcegos mortos e demorei a entender o que era aquilo. Eram exemplares dos chamados “guardiões”, os morcegos que devoram as centenas e milhares de traças que ameaçam os livros e que, até hoje, são a grande garantia da permanência do acervo.

 

No início dessa crônica, disse que, lendo Memorial do Convento, tomei conhecimento das extravagâncias de D. João V. Que nada, apenas um pálido conhecimento. Impossível ter uma ideia clara do que o homem gastava – do que gastou com aquele palácio e basílica, em Mafra, mais as amantes, entre elas a Madre Paula, do Convento de Odivelas, que presenteou com uma banheira de prata.



[i] Incialmente com 1.200 hectares, hoje com pouco mais de 800 hectares.