sábado, 19 de outubro de 2013

Filhos acalmam?

         Há frases que ficam ecoando dentro de nós. “Filhos acalmam” foi uma delas.
Recebi um email um dia desses e o meu amigo escreveu que o nascimento do seu primeiro filho o deixara menos afoito, mais tranqüilo. “Filhos acalmam”, ele concluiu.
Eu respondi ao email, mas não toquei no assunto. Seu breve comentário, no entanto, ficou ecoando dentro de mim. Quando vi, estava lembrando o nascimento do meu primeiro filho – uma menina – e as preocupações e agonias decorrentes... O primeiro banho, o choro, as mamadeiras na madrugada, as primeiras indisposições, cólicas, e, de repente – meses depois – , uma gripe que evoluiu para uma pneumonia.
Naquela semana, a criança fora levada ao médico, submetida a exame cuidadoso e coisa alguma de grave fora constatado. Uma gripe e o mal estar normal que os bebes vivem nesses casos, na avaliação do pediatra. Era seguir as prescrições, trazê-la na próxima semana e tocar a vida.
Mas não foi assim.
– Essa criança não está bem. Essa prostração não é normal – disse a mãe no outro dia da consulta, no final da tarde.
– Mas nós fomos ao médico ontem. Estamos seguindo a orientação, os remédios no horário – eu observei.
Mas a mãe não ficou convencida e lá fomos para o pronto-socorro pediátrico e logo os exames constataram uma pneumonia dupla. Grave. Hospitalização imediata.
A criança se recuperou em poucos dias, mas pai e mãe ficaram com o coração na mão.
Deitada na enorme cama do hospital, um dos bracinhos com soro, com a outra mão a minha filha colocava uns pinos coloridos dentro de um carrinho e um médico residente comentou:
– Mas ela não completou um ano. Como consegue isso?
– Não sei – respondi. – Ela se distrai com esse brinquedo.
Filhos acalmam? Não sei. Filhos me colocaram no turbilhão do mundo. A minha filha, especialmente. Quando nasceu o segundo, quatro anos depois, aí sim eu estava mais calmo.
Inesquecível o momento em que a ginecologista retirou a menina de dentro do útero materno e a colocou sobre o peito da mãe. Um bebezinho enrolado no cordão umbilical, roxinho, roxinho, lentamente se acalmando sobre o colo materno.
– Só não vai ganhar nota dez por causa do cordão – disse a médica.
E ficamos os três – a médica, a mãe e o pai – admirando o bebe recém nascido, suavemente respirando sobre o colo da mãe.
Filhos acalmam? Não sei. No meu caso, me colocaram no mundo e me obrigaram a ter pressa e tomar atitude.
Regressei a mais antiga das minhas mitologias e, súbito, na Barra do Rio Grande, avistei um navio aqueu que regressava do cerco de Tróia... Os homens desembarcavam do navio com pesadas armas de bronze e proclamavam obrigações inadiáveis.
Minha filha me tirou da minha acomodada posição e me obrigou a ir ao encontro do Pai... Que acabava de chegar de Tróia e vinha reconstruir Esparta.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Clô Dias & Noites

         A história começa no final da década de 1950, em Porto Alegre. Clotilde tem 16 anos e mora no bairro Moinhos de Vento. Um dia ela bate os olhos num rapagão de 32 anos, fazendeiro, e acha que ele é o cara da sua vida. Está cansada de viver com papai e mamãe, e também das pressões do mundo escolar. Imagina que será “a rainha de 62 quadras de sesmaria”, mas termina comendo o pão-que-o-diabo-amassou desde a primeira noite de núpcias. O noivo foi com muita sede ao pote, na primeira noite, e a moça ficou a ver navios.
Clotilde engravida logo e tem uma menina. Quando engravida pela segunda vez, o marido diz esperar que ela tenha vergonha na cara e lhe dê um macho. Clotilde deseja com todas as suas forças que seja outra menina e, quando nasce um menino, ela rejeita o filho. Na seqüência, apanha um bocado. Um dia leva uma surra tão grande (o marido a pega transando com outro) que o médico que a costura chega a achar que ela não vai se recompor. Mas Clotilde é um “animalzinho”, como diz a avó, e se recupera. Ela foge do marido, perde a guarda das crianças e passa o resto da vida procurando se reerguer e construir uma vida própria, autônoma.
Mas como Clotilde não tem nenhuma habilidade profissional, sua saída termina sendo a de gravitar em torno de homens abastados e estabelecer com eles contratos proveitosos. Quando escasseiam esses homens, ela atua como “companhia para executivos” e vai levando. Até o dia em que encontra um homem amoroso, cheio de paciência, que tolera os seus rompantes e agonias, casa-se com ele e passa a criar flores numa chácara de Belém Novo.
Clotilde, como o leitor pode perceber, é uma personagem de folhetim – um folhetim escrito por Sérgio Jockymann e publicado em 1982: Clô Dias & Noites. Clô / Clotilde é uma personagem desconcertante e que me parece ser emblemática dos dilemas da condição feminina.
Clotilde se submete a um psicanalista, mas não tem muita paciência para mergulhar na longa noite da sua decisão juvenil, isto é, o casamento com um poderoso fazendeiro de 32 anos. A única explicação que a personagem tem para o seu caso é de que ela foi criada unicamente para casar e ser esposa... E ela, por que se adequou a esse papel, a essa função tradicional das mulheres burguesas?
Como boa personagem de folhetim, Clotilde não faz muita investigação psicológica. E o narrador, por sua vez, não perde tempo analisando a pobre moça, e desenvolve, isto sim, uma narrativa trepidante, com muita ação, suspense e viradas surpreendentes. Uma trama com muito sexo, intriga, dinheiro e poder, machos violentos e mulheres sofridas. Não se trata de um bom romance (algumas incongruências, estrutura frouxa), mas é folhetim, ora bolas, e, pelo menos para leitores que se amarram numa trama mirabolante e dramática, ou em personagens vibrantes, o interesse na leitura permanece até o final.
O romance foi publicado no início dos anos 80, num contexto em que as feministas faziam estardalhaço em função da tradicional prática do Judiciário brasileiro em absolver maridos que matavam em defesa da honra. Nessa época, numa manifestação do Centro de Professores (CPERS) na frente do Palácio Piratini, ouvi uma colega me falar de Clô Dias & Noites, ao comentar a “questão feminina na sociedade patriarcal”.
          Matei a curiosidade em relação ao livro, semanas atrás, e a leitura. Bom entretenimento, para quem tiver paciência com uma narrativa de 530 páginas. De quebra, o retrato de uma mulher que se acha treinada unicamente para agradar um homem e parir filhos, e que se rebela contra a “educação feminina para o casamento”.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A força do santo

Estou no sopé do Morro do Campestre e me preparo para fazer o percurso até a ermida de Santo Antão. É 17 de janeiro, dia da festa em homenagem ao santo, estou acompanhado de uma colega e ambos pesquisamos religiosidade popular. Nos perguntamos se é possível compreender cientificamente a fé que move os devotos e temos as nossas dúvidas.
Vários romeiros estão no Campestre (atual Distrito de Santo Antão, em Santa Maria), a maioria em torno da igreja, onde logo iniciará a missa campal. Pequenos grupos, no entanto, sobem e descem o morro e a esses grupos que nos reunimos. O caminho é íngreme e exige cuidado para não escorregar e cair.
No domingo anterior, a Comunidade do Campestre trouxe a imagem do santo que estava na ermida, no alto do cerro, e instalou-a na igreja. Hoje, a imagem está colocada ao ar livre e é em torno dela que se realiza a festa. Os devotos se aproximam da imagem, levantam o manto feito de pano que envolve o santo, escondem o rosto e murmuram suas preces. Depois haverá missa, almoço e, ao longo da tarde, jogos e diversões.
Só os mais corajosos sobem o morro, me adianta um devoto. E eu não pertenço mais a esse grupo, ele explica. Mas desde menino, nos anos 40, e até pouco tempo atrás, ele e a mulher subiam. Agora é muito arriscado, comenta. Na última vez a esposa levou um tombo e foi difícil erguê-la do chão.
Os dois se conheceram na romaria, em 1950, e casaram em 52. Os filhos se criaram na devoção ao santo e um deles ainda vem, de vez em quando, com a mulher e o filho. Os outros não. O santo foi muito importante na nossa vida, me garante a esposa. Espero que ela me explique como o santo ajudou a família e ela apenas revela, emocionada, que é um santo milagreiro, sempre atendeu as suas preces. Sorri, e esta parece ser a resposta à minha indagação.
Minha colega e eu somos professores e queremos palavras para embasar nossa pesquisa. Coisas de professor... Recolhemos palavras, fazemos fotos, aplicamos questionário, mas sabemos que são instrumentos precários.
Subimos o morro com os romeiros e compartilhamos a experiência da caminhada. Há compenetração na jornada que fazemos com os romeiros, alguma solenidade e também muitos comentários divertidos. Volta e meia alguém escorrega, às vezes é segurado, outras vezes se agarra numa árvore, e há os que desabam no chão. Seguem risos e frases bem humoradas a respeito dos pecados de cada um e de como podemos pagá-los. O santo cobra por nossos erros, mas é generoso, explica um romeiro, às gargalhadas.
Ninguém usa bastão e a maioria dos calçados são inadequados para a empreitada. As mulheres calçam sandálias, os homens usam sapatos comuns e poucos se utilizam de tênis ou botinas de montanhista. Uma mulher de sapato de salto cruza por mim, descendo o morro, e pergunto para minha colega como ela consegue. Ela escorrega, o companheiro a segura, e minha colega comenta que ela vai terminar o dia sentido dores horríveis nas pernas. Mas talvez feliz por ter cumprido uma promessa, imaginamos.
Próxima a uma das catorze cruzes que marcam o percurso, uma senhora tira os calçados e me explica que prefere andar descalça. Tem 70 anos e vêm todos os anos. É devota do santo desde menina. Ela sorri para minha colega, coloca os sapatos dentro da bolsa e segue morro acima.
No alto do cerro, em torno da ermida, um senhor me explica que veio de São Gabriel. Colocou a família no caminhão e chegou ontem de noite. Tem sido assim desde que uma filha apresentou distúrbio mental e o santo a fez melhorar. Desde então toda a família participa da festa. A menina sarou, casou e hoje é mãe de criança. Uma mulher normal, me explica o pai, orgulhoso e emocionado.
Converso com um casal de namorados e eles explicam que gostam muito do santo, por isso participam da festa. São jovens de 16 e 17 anos, e acham graça quando pergunto por que admiram Santo Antão. É uma devoção que a mãe ensinou, a menina explica. O namorado concorda e não arranco mais nenhuma palavra deles.
Tudo aparentemente simples, concluo. Mas sinto um mistério na candura desses namorados e não consigo decifrá-lo. É o mesmo enigma que percebi no casal de 70 anos que hoje não sobe mais o cerro. O mesmo segredo que senti no pai que põe a família dentro do caminhão e vem todos os anos homenagear o santo.
Mistério, enigma e segredo. São essas as palavras que povoam meu pensamento enquanto desço o cerro, cuidando para não escorregar. É um santo da mata, me explica um romeiro. E a gente tem que subir e descer o morro  para sentir a sua força, ele acrescenta.

domingo, 13 de outubro de 2013

Corcovado

         Na primeira vez que fui ao Rio de Janeiro, era julho e cheguei de ônibus. Viajava com uma colega de faculdade e fomos parando em Garopaba, São Paulo, e depois do Rio seguimos para Ouro Preto.
No percurso entre São Paulo e Rio fazia muito frio e tomei um conhaque para esquentar. Ao chegar, no entanto, o calor era grande e fomos à praia.
Coisa de gaúcho, me disseram depois. Só gaúcho para achar quente o mês de julho e encarar um mergulho em Ipanema.
Sim, foi em Ipanema que tomamos banho. Passou por nós um garotão com jeito de surfista, cabelo clareado artificialmente e minha amiga perguntou:
– Parafina?
– Não. Meu cabelo é assim mesmo – ele respondeu.
Minha amiga se virou para mim e comentou que ele mentia descaradamente. 
– Bem coisa de carioca – ela falou.
Logo adiante, estava o bar onde o Vinicius de Moraes compusera “Garota de Ipanema”, mas não entramos para beber um chope. A grana era curta.
Julho de 1975. Na mochila, eu trazia um exemplar do jornal Movimento, que recém começara a ser editado. Sinal de uma nova conjuntura política no país: “a abertura lenta, gradual e segura” que o presidente Geisel propagandeava e que não entendíamos direito.
Minha amiga se hospedou em casa de parentes e eu também fiquei no apartamento de uns tios, no Flamengo. Meu primo tinha 16 anos, era nadador e mulato  - e eu fiquei me perguntando de onde ele tirara aquela cor de pele, se o pai e a mãe dele eram brancos...
Naquela semana, fiquei sabendo que tinha sangue negro na família. Uma bisavó (do lado materno) tivera três filhos com um mulato baiano e o cara a deixara uns anos depois. A bisa casou novamente, com um engenheiro italiano, e o novo marido perfilhou os filhos dela e ficou declarado que todos eram dele. O caso da bisa com o mulato foi apagado da história e na minha casa não se tocava no assunto.
Minha tia achou muita graça o fato de eu ignorar esse lado da família.
– Bem coisa de gaúcho. Carioca não é disso não. Carioca não dá bola – ela comentou.
Um dia a tia serviu uma feijoada no almoço e avisou que tinha feito um feijão normal para mim. Respirei aliviado. O tio comentou que gaúcho não entendia como se comia feijoada no Rio, com tempo quente e tudo mais. Eu disse que não entendia mesmo. Ele bebeu cachaça no início da refeição, acompanhou a feijoada com cerveja, suou e secou o suor com uma toalha que matinha em cima da mesa e, animado, disse para o filho me levar ao Corcovado.
– É o lugar mais bonito do Rio. Uma vista inesquecível. Não dá pra perder.
Contrariado, meu primo me levou naquela tarde mesmo. Íamos pegar um trenzinho para subir o morro, o trem ia demorar e ele achou melhor subirmos de táxi.
A única coisa que lembro do passeio é a viagem de táxi até o alto do Corcovado. O carro dando voltas e voltas e eu ficando enjoado, enquanto meu primo, de mau humor, olhava fixo para frente. Não recordo a vista maravilhosa que o alto do Corcovado proporciona. Havia um sol forte, um calorão tremendo, e ficamos sentados nos degraus do Cristo Redentor, sem ânimo para olhar a paisagem e descobrir a imensidão do Rio ou coisa parecida.
Muitos anos depois, quando visitava o Cemitério São João Batista – para apreciar os belíssimos monumentos funerários que ali se encontram – olhei para o alto e avistei o Corcovado. Lembrei daquela tarde ensolarada, mais de trinta anos atrás.
Talvez um dia eu volte ao alto do Corcovado e descubra e aprecie a vista inesquecível que se tem lá de cima.

O Velho

       O Velho morreu quando eu tinha três anos de idade. De tanto o pai e a mãe contarem como eram as visitas que fazíamos quando ele estava doente, parece que vejo tudo. Vejo o corredor cumprido da casa do Velho e nós caminhando até o quarto dele. Vejo a cama no meio do quarto, o Velho estendido, de barriga para cima, ofegante, olhando o teto. Depois vamos para a cozinha e a tia nos serve salada de frutas. Eu choro porque quero só o caldo da salada de frutas, não quero as frutas, e os adultos fazem a minha vontade. A mãe conta que faziam isso para eu parar de incomodar.
Então eu fico olhando pela porta da cozinha e vejo meu irmão correndo pelo pátio. Ele pára na frente de um puxadinho construído pelo avô – um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro, com um tanque de lavar roupa embaixo – e ele fica olhando aquela pequena obra com uma espécie de veneração. Mais tarde eu também vou andar pelo pátio e parar na frente do tanque e passar a mão nos dormentes com ar de admiração. Aquilo foi obra do Velho nos tempos áureos, isto é, quando era um homem vigoroso. O Velho pertencera aos quadros da Viação Férrea e trouxera os dormentes para casa, justamente para aquela obra. As tias sempre contavam essa história.
Na última vez que visitei a casa, poucos anos atrás, fiquei caminhando pelo pátio e lembrei do Velho. Ele chegou ao Brasil no final do século XIX e meu sobrinho, vasculhando nos documentos da Hospedaria do Imigrante, descobriu a data certa: 20 de agosto de 1888. A abolição dos escravos acontecera naquele ano, meses antes. O avô chegou com o pai, a mãe, uma irmã menor e foram trabalhar numa fazenda de café, em Sorocaba.
Quando meu sobrinho enviou por e-mail os documentos, lembrei do que o pai contava:
– Os italianos chegavam para trabalhar nas fazendas e descobriam que, antes deles, quem fazia o serviço eram negros escravizados. Os escravos viviam em pequenas palhoças e os italianos não queriam morar naquelas casas acanhadas, indignas de um trabalhador.
A história do Velho me foi contada aos pedaços. Há anos venho juntando as partes e cada vez o resultado sai diferente. O Velho – naquele tempo um guri de catorze anos – colheu café em fazenda paulista, depois foi para a cidade e começou a trabalhar numa companhia de navegação. Os navios subiam o rio Tietê, entravam no Mato Grosso e ele pegou malária. O médico falou que ele não podia ter malária novamente e o mandou para um lugar onde não houvesse a doença. Por isso ele veio para o Rio Grande do Sul
Na década de 1920, o Velho chegou a Santa Maria e se tornou funcionário da Viação Férrea. Na década seguinte, estava estabelecido em Pelotas. Ascendeu ao posto de Engenheiro Prático – um tipo de engenheiro que não tinha diploma universitário (depois esses engenheiros foram substituídos pelos diplomados) – e se aposentou nos anos 50.
Era um homem severo, o pai contava. Chegava do trabalho sujo de graxa e jogava a roupa para as filhas lavarem. Queria tudo bem limpo. Gostava de camisas brancas, com punhos e colarinho engomados, e essas eram as peças que primeiro sujavam. As filhas se revezavam no tanque e depois passavam e engomavam. Deve ter sido por isso que ele trouxe os dormentes da estrada de ferro e fez aquele puxadinho no quintal da casa. Ali, as minhas tias penavam, inverno e verão. Não era fácil tirar o encardido das roupas, elas contavam.
O Velho gostava de se vestir bem. Dizia que era assim que um Engenheiro Prático precisava se apresentar, principalmente depois que os engenheiros diplomados começaram a ocupar os lugares de mando. O Velho sabia que estava perdendo espaço e lutava, com unhas e dentes, para manter sua posição. Fora assim que deixara de ser trabalhador rural e se tornara operador de máquinas, trabalhando em navio, e depois em locomotivas da Viação Férrea.
– Teu avô era um homem severo e intransigente. Hoje, se diria que era autoritário – o pai falava, com orgulho. E com os olhos marejados de lágrimas. Afinal, a dureza do Velho não se refletia apenas no trabalho. Em casa, ele era rígido na educação dos filhos. Batia por qualquer falha que alguém cometesse. Tirava o cinto das calças e sentava o laço no lombo dos filhos. Mas cuidava para não bater com a fivela, o pai observava. Dobrava a cinta para que a fivela ficasse presa na sua mão.
 – Quando alguma coisa não era feita como ele queria, o Velho gritava e batia – o pai explicava. – Mas depois envelheceu, enviuvou e ficou manso como um cordeirinho. Gostava que as noras sentassem ao seu lado e conversassem com ele. A tua mãe chegava perto da cama, levantava os netos e dizia: “Este é o Rubinho, este é o Vitinho. Olha como estão crescendo.”

Quando a mãe me apresentava pro Velho, na certa dizia que este era um menino manhoso, que ele precisaria ajudar a corrigir com uma ou outra surra. Então eu esperneava, ela me colocava no chão e eu corria para a cozinha. Chorava pedindo isto e aquilo e os adultos me atendiam para que eu me calasse e não atordoasse os ouvidos do Velho. Pois o Velho tinha muita dor. Ficava deitado, de barriga pra cima, as mãos em cima do peito, os olhos fixos no teto. Eu o vejo dessa maneira. Eu tinha três anos quando o Velho morreu. Tudo que eu sei foi o que me contaram.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

As aventuras de Tibicuera

          Tibicuera é o nome do personagem indígena de um romance juvenil de Erico Verissimo, intitulado As aventuras de Tibicuera e publicado em 1937. É um tupinambá que nasceu pouco antes da chegada dos portugueses na América e que atravessou quase quinhentos anos de história brasileira devido às mágicas de um pajé. Através desse recurso (a imortalidade do personagem), o autor narra os principais acontecimentos do nosso país até meados do século XX. O índio lutou contra os invasores holandeses, acompanhou o príncipe D. Pedro no grito do Ipiranga e termina transformado num civilizado cidadão que vive em Copacabana.
         Busquei o livro na minha estante, ainda pouco, e não encontrei. Não sei se dei para o meu filho, se perdi ou emprestei para alguém. Poucos anos atrás comprei um exemplar encadernado na banca de revista – parte de uma coleção das obras completas de Erico Veríssimo – e fiquei imaginando quantos milhares de leitores teve a obra... O livro alcançou dezenas de edições, foi publicado em coleção didática e deve ter encantado – e formado – várias gerações.
         No meu caso, foi indicado pelo professor de Português, num distante 1967, quando cursava a primeira série ginasial. Havia vários livros na minha casa, mas este foi o primeiro que marcou. Imagino que minha trajetória de leitor tenha iniciado por aí, pois até então eu apenas lia história em quadrinhos, um ou outro livrinho infantil e as coleções que meu pai guardava com carinho – O Mundo da Criança e o Tesouro da Juventude.
         Às vezes escuto que a escola não forma leitores e que a indicação de leituras obrigatórias mais inibe do que auxilia a garotada. Pode ser... Os professores de Língua Portuguesa têm tarefas colossais sobre seus ombros. Eles indicam obras consagradas pelos estudiosos da literatura e a gurizada só tem os olhos e ouvidos para o que a indústria cultural propagandeia. Não há dúvida que os professores jogam com recursos desiguais e perdem feio.
         No entanto, muitas vezes a coisa funciona e as determinações escolares abrem portas para mundos fascinantes. Algumas vezes a indústria cultural endossa as indicações escolares e aí as tarefas dos professores fica mais fácil.
       Escrevo isso e fico imaginando o que vai acontecer com a obra de Erico Veríssimo depois do sucesso do filme de Jayme Monjardim, baseado n’Tempo e o vento. É um filme bonito, comovente – uma narrativa bem feita que atinge direto o coração do espectador – e que traz surpresas mesmo para aqueles que conhecem o livro de cabo a rabo. Entre as novidades, a história narrada por uma mulher, a Bibiana, velha e viúva, desfiando a formação da família Terra-Cambará desde meados do século XVIII até a Revolução Federalista de 1893. No final do filme, um Rodrigo menino, o futuro Doutor Rodrigo, abanando para a avó Bibiana e indicando a possibilidade de um O tempo e o vento, parte 2 – a desmontagem do mito da formação sul-rio-grandense tão bem construído nessa primeira parte da trilogia.
Seja o que vier pela frente, gostei do filme e imagino que ampliará o número de leitores da obra de Veríssimo. Meus amigos me dizem que é uma possibilidade remota, mas não custa apostar.
         Procuro mais uma vez As aventuras de Tibicuera na estante, não encontro e imagino que o volume tenha caído nas mãos certas, isto é, de um menino que soube ficar encantado com a narrativa.