domingo, 23 de fevereiro de 2020

Visita a San Marino


O Facebook postou três fotos minhas, tiradas na República de San Marino, três anos atrás. Fotos de fevereiro de 2017. Tinha esquecido que visitara esse pequeno país, encravado no meio do território italiano, e fiquei surpreso. Naquela época, estava com uma turma de brasileiros fazendo um programa de língua e cultura italianas em Campus Magnoli, na cidade de Castelraimondo, e San Marino fazia parte do nosso roteiro. Eu próprio fiz a postagem, na época.

Sede do governo da República de San Marino.
Naquele dia tive aula pela manhã e, à tarde, com o grupo, fui a San Marino. Pouco mais de uma hora de viagem. Era uma tarde fria e ouvira que o local era muito bom para comprar produtos eletrônicos, especialmente relógios. E de armas também, ouvi alguém dizer, rindo, e acentuando: qualquer tipo de armas.

Então chegamos, fizemos um tour pela piccola città – encarapinhada no alto de uma montanha, cercada de muralhas – e só depois fomos às compras. Escutara que o comércio ficava até tarde e não me preocupei. Mas não foi o que ocorreu naquele dia. Havia poucos turistas (talvez devido ao frio) e a maioria dos comerciantes fecharam as portas mais cedo.

Encontrei uma e outra loja de produtos eletrônicos abertas, olhei os relógios, nenhum me agradou e fiquei espantado com armas. Algumas vitrinas estavam atulhadas de armas de todos os tipos, especialmente pistolas, alguma metralhadoras – essas, as que me chamaram mais atenção. Pequenas metralhadoras capazes de fazer muito estrago.

Quem compra isso?, perguntei. E, caso compre, como cruza a fronteira da República de San Marino e anda pela Itália carregando essas armas? Ninguém soube responder.

Voltamos para a escola (os alojamentos ficavam próximos a escola) e aquele foi um dos assuntos da noite, no meu apartamento, em torno de uma garrafa de vinho: as armas.

Tinha esquecido tudo isso. Olhei ainda pouco as fotos que tirei naquele dia em San Marino e nenhuma delas foi de uma vitrine de armas. Que pena! Cheguei a pensar que era imaginação minha: ora vender metralhadoras em lojinhas de uma cidade turística!

Mas não é delírio. Apesar de não ter encontrado muita coisa no Google a respeito – nenhum dos blogs de viagem que consultei aprofunda o assunto “comércio de armas em San Marino” –, as armas estão lá. Minha memória não está me enganando. 

É isso – mais do que por qualquer outro motivo –, é por causa da memória que estou escrevendo essas linhas. Estou esquecendo. Estou embaralhando as coisas. Os exemplos são vários: essa visita a San Marino, uma visita a Igreja do Carmo, na cidade do Porto, um passeio pelo Carnaval de Veneza, e por aí vai.

Por isso escrevo: para registrar. Para não deixar o tempo roer minhas lembranças e tudo se apagar.
Vista do entorno da montanha onde se localiza San Marino.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Poeta romântico (lembrança de viagem)


Era uma tarde de chuva fina e tínhamos descido no cais da Marinha, no Rio de Janeiro, após visitar a Ilha Fiscal. Deviam ser catorze e trinta e achamos que poderíamos pegar o almoço na Confeitaria Colombo. Não era perto, não era longe. Provavelmente um táxi nos fizesse dar muitas voltas e resolvemos ir a pé. Pegar a Rua 1º de Março, dobrar na Rua do Ouvidor e, mais adiante, virar à esquerda, numa rua que tinha o nome de um poeta, um poeta... que eu não lembrava o nome. Um poeta romântico, eu tinha certeza.
Eu havia deixado o guia de viagem no hotel, estava sem mapa, e nos abrigávamos da chuva fina debaixo de uma sombrinha. A água molhava nossos tênis e a Rose me perguntava:
– Tu sabes mesmo o caminho?
– Ora, como não. Já andamos por aqui diversas vezes – eu respondia. Mas eu não lembrava o nome da rua, o nome do poeta que dava nome à rua...
Quando dobramos uma rua (eu achava que era aquela), um camelô me disse: “É essa, sim, a rua da confeitaria”. Eu li o nome na placa e tudo me veio de cambulhada: o nome do poeta e seus versos. Gonçalves Dias e o canto do índio infeliz, prisioneiro de uma tribo inimiga: “Meu canto de morte, / Guerreiro, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi.”
Minha mãe recitava trechos desse poema (I-juca-pirama). Complexo poema de temática indigenista. Um índio tupi é preso pelos timbiras, colocado para ser morto ritualmente e depois banqueteado. Mas ele implora para ser solto, para poder ajudar o pai – velho e cego, que está perdido na floresta – e, quando o pai sabe disso – que ele não se deixou ser sacrificado –, o pai sente profundo desgosto pelo filho. Que covarde!, grita o pai.
Ao me sentar diante de uma das mesas da confeitaria e saber que o almoço tinha terminado – “Só lanches a partir de agora”, avisou o garçom –, o poema ainda ecoava dentro de mim. Na verdade, era minha mãe recitando  o poema que eu lembrava. Era a sua voz.
“Tu choraste em presença da morte?” – grita o pai para o filho que implorou pela vida para ajuda-lo. “Na presença de estranhos choraste? / Não descende o cobarde do forte; / Pois choraste, meu filho não és!”
Eu ria lembrando da mãe, as diferentes ênfases que ela dava à voz de cada um dos personagens do poema, e pedi um conhaque (um brandy, estava escrito no cardápio) em homenagem a ela. Ela aprovaria na certa e talvez dissesse que era a pedida certa para aquecer o corpo depois da chuva.
Pedimos sanduíches que valiam uma refeição (o meu – um beirute – seguramente uma refeição) e nos refestelamos. Observamos as pessoas que nos rodeavam – um casal de alemães que se deliciavam com sorvetes coloridos, um casal gay que se mirava gulosamente (na verdade, o homem mais velho olhava o jovem parceiro de maneira intensa, quase engolindo-o, enquanto o rapaz não se desprendia do celular) e conversamos sobre a Ilha Fiscal.


Guarita e cais da Ilha Fiscal. Ao fundo, o Rio de Janeiro.
Divertido ser turista numa cidade com tantas camadas de história, ritmos e sabores. Na Ilha Fiscal, chegamos a ficar emocionados com o fim do Império brasileiro e a Rose lembrou sua professora de História do Brasil comentando “o último baile da monarquia”. Eu tentei falar de Gonçalves Dias, do seu romantismo – o seu modo idealizado de abordar o mundo – e do quanto tudo isso me moldou, mas desisti. 
– Sou um pouco de tudo isso, esse romantismo, essa idealização. Ou era, sei lá. – Tentei falar. Mas tudo muito complicado. Complicado demais para um dia de turistagem no Rio de Janeiro. E fomos caminhar pelo centro da cidade. Agora sem precisar abrir a sombrinha, pois havia parado de chover.
Pegamos o metrô na Estação Carioca, descemos na Arco Verde. A Rose queria comprar uma bolsa, numa sorveteria colada ao Copacabana Palace, e eu não esquecia Gonçalves Dias.
Naquele dia, catei o poema no Google e o reli. E, ao meu modo, o recriei lembrando minha mãe: Um velho professor, de poucas glórias, / Guardou na memória um antigo poema. / E nos lugares mais inusitados – na Confeitaria Colombo – / Ele o repete para quem quiser ouvir: / Meninos, eu ouvi / Minha mãe cantar esses versos.
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Para quem não lembra o final do poema (eu não lembrava), conto aqui o final. O pai leva o filho de volta a tribo dos timbiras e o rapaz arma um escarcéu – “A taba se alborota, os golpes descem, / (...) / Vozes, gemidos, estertor de morte”. O chefe timbira se convence que ele é valente e diz que ele merece ser honrado em morte ritual e depois ser devorado pelos guerreiros. “Este, sim, que é meu filho muito amado!”, diz o pai.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Considerações a respeito da greve do Magistério Estadual de 1987


Quem foi professor do Magistério Estadual do Rio Grande do Sul dificilmente esquece a greve de 1987. Durou mais de três meses. No meio desse movimento, para demarcar o espírito de luta da categoria, o comando de greve decidiu fazer um acampamento na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini. Era o primeiro ano do Governo Pedro Simon e os professores cobravam o cumprimento de um acordo de greve, feito durante o governo anterior (de Jair Soares), o qual estabelecia que o piso salarial da categoria seria de 2,5 salários mínimos. Em números de hoje, seria um piso de R$ 2.597,00 (considerando o salário mínimo nacional de R$ 1.039,00), abaixo do piso nacional do magistério estabelecido em janeiro desse ano (R$ 2.886,00).

Foi uma greve de enorme adesão. Eu morava em Porto Alegre, lecionava em duas escolas estaduais (uma na Cidade Baixa, outra no bairro Rubem Berta), e participei das manifestações na Praça da Matriz, inclusive passei algumas noites no acampamento. Tinha certeza de que sairíamos vitoriosos, mas fomos derrotados. Na verdade, destroçados. Se pensarmos o amplo movimento do magistério desde o final dos anos 70 (a partir da greve de 79), foi um ponto de virada. A categoria nunca mais foi a mesma. Para a minha geração, que ingressou no Magistério e na luta sindical no final dos anos 70 – e acreditou que a redemocratização era também a recuperação econômica dos assalariados em geral –, foi uma dura aprendizagem.

Relembro esse episódio porque o jornal Zero Hora tocou no assunto dias atrás, ao publicar uma longa reportagem sobre os 90 anos de Pedro Simon.[i] Como não podia deixar de ser, a greve de 1987 foi abordada. Segundo a reportagem, “o magistério entrou em greve por mais de 90 dias devido ao não pagamento de um aumento salarial deixado pelo antecessor Jair Soares”. Nas palavras de Cezar Schirmer (que era Secretário da Fazenda em 87), “[v]incularam o piso dos professores a dois salários mínimos e meio. Era impagável e inconstitucional”. E, para arrematar, Pedro Simon declarou ao jornalista: “a Assembleia [Legislativa] votou aumento salarial [dos professores] que não tinha como pagar. (...) Não paguei e a greve estourou.”
Página do jornal Zero Hora a respeito da greve de 1987 e do governador do Estado.
Escrevi e-mail ao jornalista afirmando que o entendimento de quem viveu o movimento grevista não é o configurado pela reportagem. O Magistério Estadual não cobrava um pagamento deixado por Jair Soares. Cobrava um acordo de greve, aprovado pela Assembleia Legislativa, com amplo apoio da bancada peemedebista. A vinculação do piso da categoria a 2,5 salários mínimos foi uma reivindicação dos professores que teve endosso do PMDB, inclusive com um inflamado discurso do então deputado Cezar Schirmer no plenário da Assembleia. Durante a greve, trechos desse discurso foram escritos num cartaz e pregado numa árvore da Praça da Matriz.

Em 87, quando o PMDB se tornou governo, o partido mudou o entendimento a respeito das reivindicações do Magistério e Pedro Simon expressou isso de forma brutal. Não pagou e pronto. Deixou o Magistério ir à greve, não cedeu e venceu. Como me disse um peemedebista tempos depois: “o governo não podia ficar refém do Magistério”. Que derrota! Que derrota a categoria viveu!

Enviei um e-mail ao jornalista da Zero Hora, autor da reportagem, expressando esse entendimento de velho professor. Não recebi resposta e provavelmente não receberei. Não importa. Jamais esquecerei o que vivi naquele tempo e entendo que meu entendimento não está errado.
No dia em que a categoria encerrou a greve, voltei a Praça da Matriz com meus colegas e desarmamos o acampamento. Ao meu lado, um colega aguerrido continha as lágrimas com muito esforço e me lembro disso até hoje. Seu esforço para controlar a emoção, conter a dor e manter a dignidade me parece um retrato do Magistério Estadual. Da sua constante humilhação e do seu incontido idealismo. O outro lado da lógica brutal que os governos do Rio Grande do Sul têm utilizado para lidar com as demandas dos professores.



[i] ROLLSING, Carlos. 90 anos de conciliação. Zero Hora, Porto Alegre, 1º e 2 de fev. 2020, p. 14-16.