quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Poeta romântico (lembrança de viagem)


Era uma tarde de chuva fina e tínhamos descido no cais da Marinha, no Rio de Janeiro, após visitar a Ilha Fiscal. Deviam ser catorze e trinta e achamos que poderíamos pegar o almoço na Confeitaria Colombo. Não era perto, não era longe. Provavelmente um táxi nos fizesse dar muitas voltas e resolvemos ir a pé. Pegar a Rua 1º de Março, dobrar na Rua do Ouvidor e, mais adiante, virar à esquerda, numa rua que tinha o nome de um poeta, um poeta... que eu não lembrava o nome. Um poeta romântico, eu tinha certeza.
Eu havia deixado o guia de viagem no hotel, estava sem mapa, e nos abrigávamos da chuva fina debaixo de uma sombrinha. A água molhava nossos tênis e a Rose me perguntava:
– Tu sabes mesmo o caminho?
– Ora, como não. Já andamos por aqui diversas vezes – eu respondia. Mas eu não lembrava o nome da rua, o nome do poeta que dava nome à rua...
Quando dobramos uma rua (eu achava que era aquela), um camelô me disse: “É essa, sim, a rua da confeitaria”. Eu li o nome na placa e tudo me veio de cambulhada: o nome do poeta e seus versos. Gonçalves Dias e o canto do índio infeliz, prisioneiro de uma tribo inimiga: “Meu canto de morte, / Guerreiro, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi.”
Minha mãe recitava trechos desse poema (I-juca-pirama). Complexo poema de temática indigenista. Um índio tupi é preso pelos timbiras, colocado para ser morto ritualmente e depois banqueteado. Mas ele implora para ser solto, para poder ajudar o pai – velho e cego, que está perdido na floresta – e, quando o pai sabe disso – que ele não se deixou ser sacrificado –, o pai sente profundo desgosto pelo filho. Que covarde!, grita o pai.
Ao me sentar diante de uma das mesas da confeitaria e saber que o almoço tinha terminado – “Só lanches a partir de agora”, avisou o garçom –, o poema ainda ecoava dentro de mim. Na verdade, era minha mãe recitando  o poema que eu lembrava. Era a sua voz.
“Tu choraste em presença da morte?” – grita o pai para o filho que implorou pela vida para ajuda-lo. “Na presença de estranhos choraste? / Não descende o cobarde do forte; / Pois choraste, meu filho não és!”
Eu ria lembrando da mãe, as diferentes ênfases que ela dava à voz de cada um dos personagens do poema, e pedi um conhaque (um brandy, estava escrito no cardápio) em homenagem a ela. Ela aprovaria na certa e talvez dissesse que era a pedida certa para aquecer o corpo depois da chuva.
Pedimos sanduíches que valiam uma refeição (o meu – um beirute – seguramente uma refeição) e nos refestelamos. Observamos as pessoas que nos rodeavam – um casal de alemães que se deliciavam com sorvetes coloridos, um casal gay que se mirava gulosamente (na verdade, o homem mais velho olhava o jovem parceiro de maneira intensa, quase engolindo-o, enquanto o rapaz não se desprendia do celular) e conversamos sobre a Ilha Fiscal.


Guarita e cais da Ilha Fiscal. Ao fundo, o Rio de Janeiro.
Divertido ser turista numa cidade com tantas camadas de história, ritmos e sabores. Na Ilha Fiscal, chegamos a ficar emocionados com o fim do Império brasileiro e a Rose lembrou sua professora de História do Brasil comentando “o último baile da monarquia”. Eu tentei falar de Gonçalves Dias, do seu romantismo – o seu modo idealizado de abordar o mundo – e do quanto tudo isso me moldou, mas desisti. 
– Sou um pouco de tudo isso, esse romantismo, essa idealização. Ou era, sei lá. – Tentei falar. Mas tudo muito complicado. Complicado demais para um dia de turistagem no Rio de Janeiro. E fomos caminhar pelo centro da cidade. Agora sem precisar abrir a sombrinha, pois havia parado de chover.
Pegamos o metrô na Estação Carioca, descemos na Arco Verde. A Rose queria comprar uma bolsa, numa sorveteria colada ao Copacabana Palace, e eu não esquecia Gonçalves Dias.
Naquele dia, catei o poema no Google e o reli. E, ao meu modo, o recriei lembrando minha mãe: Um velho professor, de poucas glórias, / Guardou na memória um antigo poema. / E nos lugares mais inusitados – na Confeitaria Colombo – / Ele o repete para quem quiser ouvir: / Meninos, eu ouvi / Minha mãe cantar esses versos.
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Para quem não lembra o final do poema (eu não lembrava), conto aqui o final. O pai leva o filho de volta a tribo dos timbiras e o rapaz arma um escarcéu – “A taba se alborota, os golpes descem, / (...) / Vozes, gemidos, estertor de morte”. O chefe timbira se convence que ele é valente e diz que ele merece ser honrado em morte ritual e depois ser devorado pelos guerreiros. “Este, sim, que é meu filho muito amado!”, diz o pai.

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