quarta-feira, 28 de julho de 2021

Francesca e Paolo no Museu d'Orsay

           No Museu d’Orsay, em Paris, encontra-se uma cópia em gesso da “Porta do Inferno”, de Rodin. Uma escultura enorme, com dezenas de figuras, das quais, posteriormente, o artista desenvolveu algumas peças independentes, como “O Pensador” (no alto da porta) e “O beijo” (no canto inferior, à direita).

Confesso que, quando me deparei com a obra, fiquei zonzo. Não sabia o que olhar primeiro. As figuras em gesso ficam um pouco perdidas, falta alguma coisa (é um “esboço”, afinal de contas) e é preciso atenção. A versão acabada, em bronze, se encontra no Museu Rodin e não fui até lá.

Em Paris, fiz visita de uma semana (em outubro de 2019) e o passeio ao d’Orsay durou apenas uma manhã. Tempo suficiente apenas para ter uma visão geral do museu. Mas guardei fotos, um catálogo das obras e uma infinidade de impressões que guardo feito um tesouro. De tempos em tempos, me vem uma e outra lembrança (de uma obra ou um detalhe, de uma impressão ou um comentário) e a memória vai adquirindo novos contornos.

      A “Porta do Inferno” foi inspirada na Divina Comédia, de Dante, e abrange pouco mais de cem figuras. No canto inferior à direita, está um casal de amantes, inspirado em Francesca de Rimini e Paolo Malatesta (citados no Canto V). Famoso casal de uma história de amor adúltero, do século XIII, que foi recriada inúmeras vezes a partir do século XIX. Atualmente, o castelo de Gradara (em Rimini, na Itália), onde Francesca viveu sua história com Paolo, se tornou um point turístico dedicado à celebração do amor.

Francesca foi prometida pelo pai (governador da cidade de Ravena) ao filho mais velho do governador de Rimini, nas tratativas de um acordo de paz entre as duas cidades em guerra. Francesca, sem conhecer o noivo, serviu para selar a negociação política. Reza lenda que o noivo era muito feio (deformado) e foi o irmão dele (mais jovem e belo) quem tratou dos acertos finais. O resultado foi uma variação de Tristão e Isolda: a noiva se apaixonou pelo emissário do noivo...

No poema de Dante, o momento em que o casal sucumbe ao pecado (isto é, incorre na lascívia que os conduz ao adultério, na visão severa do poeta) é quando eles estão lendo um romance de cavalaria e Lancelot beija Guinevere (a esposa do Rei Arthur). Francesca e Paolo se excitam com a cena e beijam-se também.

Ingres pintou a cena em 1816 e colocou Giovanni (o marido de Francesca) surgindo atrás de uma cortina, tirando a espada da bainha e prenunciando o assassino duplo que cometeria: a morte dos amantes.

Guia de visita ao Castelo de Gradara
com reprodução do quadro de Ingres.

Com o passar dos séculos, a abordagem moralista de Dante a respeito do casal de amantes arrefeceu e a obra de Rodin já indica isso: Francesca e Paolo foram o ponto de partida para a celebração do amor. Em “O beijo” não há ecos do amor carnal sendo condenado (e conduzindo os casais de amantes aos círculos do Inferno).

          Pensando bem, não foi por nada que fiquei zonzo diante da cópia em gesso da “Porta do Inferno”. Quantos séculos de história e transformações a respeito do que seja o amor (e especialmente o amor erótico) estão esculpidas naquela obra! Séculos em que a visão do amor mudou, o amor se transformou e nos transformamos todos nós.