segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Filmes que marcaram (2)


Dou continuidade à lista e comentários dos dez filmes que me marcaram. E acrescento: não são necessariamente as produções mais geniais do cinema, mas os filmes que me emocionaram, me empolgaram e, por uma razão ou outra, não esqueci. Às vezes foi devido à temática (um tema histórico, por exemplo), à eficácia da narrativa, ao desempenho dos atores, ao erotismo e assim por diante. Ou tudo isso junto.

Curiosamente, os cinco primeiros filmes listados (na crônica anterior) foram assistidos quando eu era criança e morava em Pelotas. Em 1967, com 11 anos de idade, minha família veio para Porto Alegre e foi nos cinemas dessa cidade que assisti os filmes abaixo. Filmes da minha adolescência e juventude. Todos eles inesquecíveis.



6. “Les femmes”. Direção de Jean Aurel. Com Brigitte Bardot. França/Itália, 1969. 86 min.
 Filme erótico. Não lembro a trama. Brigitte Bardot corre nua pelo campo. Brigitte Bardot rola na cama com o seu amante, os dois insinuando relações sexuais – nada muito explícito, mas o suficiente para excitar as plateias dos anos 60. (Escrevo baseado apenas na memória, nunca mais revi o filme.) A câmera percorre lentamente o corpo da atriz deitada de bruços (fotografia acima) e o amante a acaricia e beija com vagar e delicadeza. Eu tinha 14 ou 15 anos e cursava o ginásio numa escola católica. O professor de Língua Portuguesa fazia discursos furibundos na sala de aula, criticando os filmes “com cenas de nudez e carícias lascivas” e “Les femmes” parecia ser uma dessas fitas que ele atacava. Justamente o filme que o Cine Colombo, a quatro quadras do colégio, estava exibindo e que todos nós, alunos, tínhamos visto os cartazes. Um amigo conhecia porteiro do cinema e nos garantiu que conseguiríamos entrar desde que pagássemos uma gorjeta ou algo assim. Entramos no cinema. Corremos para o mezanino e lá ficamos “escondidos”, extasiados. Não, não lembro de algum de nós utilizando uma das mãos para dar continuidade à empolgação. Tudo no maior respeito. Isso fazia parte do acordo com o porteiro.

7. "Toda nudez será castigada". Direção de Arnaldo Jabor. Com Darlene Glória, Paulo Porto e Paulo César Pereio. Brasil, 1973.

Esse filme foi minha porta de entrada na obra literária de Nelson Rodrigues – que eu conhecia apenas das crônicas (Confissões) que o jornal “Folha da Tarde” publicava. Fiquei fascinado com o retrato debochado, trágico-cômico, da tradicional família brasileira apresentada no filme. Uma família regida por padrões de moralidade sexual extremamente rígidos e com forte marca católica. Muita repressão sexual e muita culpa. De certa forma, uma abordagem dos dramas humanos semelhante ao do romance “O casamento", no qual um padre afirma: "Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva". A mesma exacerbação das paixões e da culpa. No filme, um viúvo transtornado pelo recente falecimento da esposa, promete ao filho nunca mais conhecer outra mulher. Depois, induzido pelo irmão malandro e aproveitador (interpretado por Pereio), conhece a prostituta Geni (interpretada maravilhosamente por Darlene Glória) e gama (fotografia acima). Ele se casa com a prostituta, traz a mulher para morar com a sua família e ela se envolve com o filho do viúvo. Geni desperta as paixões de pai e filho, vira ao avesso a família, desmonta os seus valores e ela própria também se desestrutura. Os principais personagens se afundam na culpa (Geni se suicida) e nada se salva – mas a plateia do cinema se diverte. Visto hoje, uma interpretação demasiadamente cômica da tragicomédia rodriguiana. Um filme datado – não consegui rever até o final. Mas sem dúvida impactante naquele início dos anos 70: uma leitura ousada da sociedade brasileira do período, que, apesar da modernidade capitalista promovida à força pelo Regime Militar, ainda estava mergulhada em valores arcaicos (do tempo da República Velha e muito mais).


8. “O amuleto de Ogum”. Direção de Nelson Pereira dos Santos. Brasil, 1974. 112 min.

Um violeiro cego (interpretado por Jards Macalé – foto acima - também autor da trilha sonora) canta a história de um retirante nordestino que vêm para o município de Caxias (no estado do Rio de Janeiro) e se transforma num pistoleiro de bicheiro (este último, interpretado por Jofre Soares). Detalhe importante: quando criança, o futuro pistoleiro viu o pai ser assassinado e foi levado pela mãe a um terreiro de Umbanda para ter o corpo fechado. A narrativa reúne a tradicional violência rural nordestina com a nova violência das vertiginosas metrópoles do Sul Maravilha. Vinculação entre os dois espaços sociais (o rural tradicional e o urbano moderno) por meio de um personagem com atributos sobrenaturais. A cena da ressurreição do pistoleiro – o rapaz salta do fundo das águas com armas em punho – é inesquecível. Um enfoque surpreendente do universo religioso e social das classes populares. A religiosidade de matriz africana e as condições de vida das classes populares na periferia da megalópole carioca. Para o estudante de História que eu era na época, uma narrativa cinematográfica que inovava as abordagens da realidade brasileira, na medida em que era mais dinâmica e mais vinculada ao ponto de vista popular – diferente das narrativas de outros filmes do Cinema Novo (que eu andava assistindo nas sessões de cineclube). Me parece que o filme é um ponto de virada na abordagem do universo popular. Mas nunca mais revi o filme. Escrevo com a lembrança do grande prazer que o filme me proporcionou. “E quem não gostou dessa história vá pra puta que pariu”, canta o violeiro cego na última cena do filme.

9. “Último tango em Paris”. Direção de Bernardo Bertolucci. Com Marlon Brando, Maria Schneider e Jean-Pierre Léaud. Música de Gato Barbiere. Itália/França, 1972. 129 min.
O filme foi um sucesso na Europa e censurado no Brasil. Enquanto não chegava às telas brasileiras, li o romance que deu origem ao filme e não gostei. Quando a película foi liberada e entrou na programação do Cine Cacique (ou será que foi no Scala?), fui dos primeiros a assistir (em dezembro de 79, provavelmente). O desempenho dos atores, a trilha sonora jazzística, a fotografia, a trama, os diálogos, tudo funciona muito bem. A princípio parece apenas uma aventura erótica entre um homem maduro (Paul) e uma mulher jovem (Jeanne) – homem e mulher que recusam revelar suas identidades e apenas viver seus impulsos sexuais –, mas logo a trama entre o casal se revela muito mais complexa, de uma densidade impressionante. O ponto de virada talvez seja o monólogo de Paul (Marlon Brando) diante do corpo da sua esposa, que havia se suicidado. Fica explicado o desespero e a desesperança do personagem. Enquanto Paul quer distância da lembrança da esposa morta, Jeanne (Maria Schneider) parece quer algo mais vital que a sua relação com um noivo enlouquecido por cinema (Jean-Pierre Léaud). Jeanne e Paul se relacionam como se apenas o sexo bastasse. Quando Paul tenta mudar o padrão da relação e revelar a sua identidade, Jeanne recua. No final, a cena do assassinato de Paul é um tango argentino desesperador, trágica e debochada. Paul entra no apartamento de Jeanne, a moça pega o revólver do pai, dispara e o amante morre na sacada, diante da paisagem parisiense. Antes de cair no chão, Paul sorri, tira o chiclete da boca e o gruda no parapeito da sacada. Enquanto isso, a moça murmura o que dirá para a polícia: que ela não conhecia aquele homem, que ele a perseguiu pela rua, invadiu sua casa e tentou violenta-la. A mocinha vence o homem madurão, cínico e debochado – e talvez vá casar com seu noivinho alucinado por cinema. Assisti várias vezes esse filme e sempre me surpreendi. Uma obra-prima.

10. “Sonata de outono”. Direção de Ingmar Bergman. Com Ingrid Bergman e Liv Ullmann. Suécia, 1978. 99 min.
         No meio da enxurrada de filmes de temática histórica, social e política que assisti nos anos 70, a cinematografia de Bergman era um aviso de que havia muito mais a investigar e entender que “o mundo determinado pelas condições materiais da existência”. Mais do que a realidade sócio-política, havia a complexidade da “alma humana”, sua psicologia e também sua inquietação com o sobrenatural. O primeiro filme que assisti desse cineasta foi “A hora do amor” (1971), considerado menor na sua produção, mas com uma cena que me marcou: um arqueólogo descobre uma estátua de Nossa Senhora esculpida em madeira e identifica nela uma colônia de insetos que a estão devorando. Em determinado momento ele a ilumina com uma lanterna e diz para a mulher a seu lado (com quem está tendo um caso) que aquela representação do sagrado, como tudo, está com data marcada. As palavras não são essas, claro, mas creio que o sentido é esse. O adolescente que eu era ficou impactado: o mundo do sagrado também era devorado pelo tempo, o implacável tempo. “Sonata de outono”, por sua vez, é um dos títulos mais elogiados de Bergman. Relembrei tudo outro dia revendo o filme no Telecine. Liguei a TV e peguei justamente na cena da fotografia acima: uma filha (Liv Ullmann) dialoga com a mãe, célebre pianista (Ingrid Bergman). As duas estão diante de um piano. A filha toca uma peça de Chopin para a mãe constatar o seu progresso e a mãe não é nada condescendente. Até tenta ser compreensiva com a filha, mas logo assume seu papel de exímia pianista e pouco a pouco corrige a filha e a ensina a interpretar corretamente aquela peça musical. Nem naquela hora, na intimidade de uma conversa com a filha, Charlotte (esse é o nome da exímia pianista) consegue ser uma mãe amorosa. Os olhos de Helena, a filha, vão se transformando (na medida em que a mãe fala e corrige), os olhos vão deixando aflorar as mágoas que a filha traz desde criança. “Eu te amava, mamãe, era uma questão de vida ou morte (...). Quando eu era criança, eu a sentia no meu corpo todo. Mas eu sentia que você não falava com o coração”. A mãe continua não falando com o coração. O filme é isso: uma tentativa de acerto de contas entre uma filha madura e sua mãe. Elas se dizem praticamente tudo que é possível dizer (muito mais do que a maioria das filhas e mães conseguem se dizer, imagino) e as coisas não se resolvem. Se a trilogia “O tempo e o vento”, de Érico Veríssimo, me ensinou a respeito do lugar do Pai na vida de um filho (por meio da relação entre Floriano e seu pai, o doutor Rodrigo Cambará), acho que esse filme me ensinou a respeito do lugar da Mãe. Especialmente quando a mãe não desempenha o papel amoroso que os filhos desejam. Tudo nesse filme é primoroso – as atrizes, então, excepcionais. Revendo o filme na TV, tive a certeza de que o cinema ocupa uma posição especial na minha vida. Diversão, aprendizagem, reflexão, prazer.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Filmes que marcaram (1)


Um amigo me propôs uma brincadeira: postar durante dez dias, no Facebook, uma imagem de cada um dos dez filmes que mais me impactaram. Topei. A regra do jogo era não fazer comentários. Apenas postar imagens. Segui o roteiro proposto, mas retomo aqui a lista com um pequeno comentário a respeito de cada um dos títulos.
Fiz a escolha entre os filmes que assisti na infância e juventude. Só aqueles que me fascinaram. Não necessariamente os melhores. Mas os que marcaram, conquistaram meu coração & mente e me constituíram. Narrativas cinematográficas, personagens, paisagens, atores e trilhas sonoras que forjaram meu imaginário.

1. “Os 300 de Esparta”. Direção de Rudolph Maté. EUA, 1962.


Filme ambientado na Grécia antiga, no período das lutas contra os invasores persas. Os exércitos de diversas cidades-estados gregas se comprometem a deter os persas no desfiladeiro das Termópilas, mas na hora H só os espartanos - com uma tropa de elite de 300 homens - aguentam o rojão. Mesmo sabendo que não terão reforços, que não terão chance de vitória, os espartanos não recuam e optam pela morte heroica. O filme me pegou por aí: a opção pelo sacrifício. A grandeza do sacrifício por uma causa grandiosa. O guri de calças curtas que eu era ficou fascinado. O filme foi a minha porta de entrada para esse importante episódio da Antiguidade e também do tradicional elogio do martírio. Adulto, li e reli o longo capítulo do livro de Heródoto em que essa batalha é abordada e sempre lembrei do filme, da emoção que tive ao assisti-lo. Contei isso diversas vezes para os meus alunos de História Antiga.

2. “O Vigilante Rodoviário”. Direção de Ary Fernandes. Brasil, 1962.


O menino que eu era ia ao cinema todos os finais de semana e não se alimentava apenas de épicos norte-americanos. Devo ter visto mais de uma vez esse filme do inspetor Carlos e seu fiel auxiliar, o cão Lobo. Hoje sei que a fita reunia episódios de um seriado da TV Tupi, mas na época era apenas uma das poucas opções de filme nacional que havia (junto com os de Oscarito e Grande Hotel). O Vigilante Rodoviário ficou na memória como garantia de um prazer semelhante ao das histórias em quadrinhos: a certeza da vitória do mocinho contra qualquer malfeitor – e ainda ajudado pela esperteza de um cachorro muito especial.

 3. “O Rei dos Reis”. Direção de Nicholas Ray. Roteiro de Philip Yordan e Ray Bradbury. EUA, 1961. 168 min.


        Entre os filmes de temática católica que assisti na infância (entre eles, “Marcelino, pão e vinho”) esse soou completamente diferente. Um épico hollywoodiano, certo – mas nem um pouco sentimental como era o padrão dos filmes religiosos. Criança, levei à sério a representação da Palestina no tempo de Cristo apresentada pela produção. Não sei como entendi a questão política apresentada, isto é, a do domínio romano sobre a Palestina e as várias opções para enfrenta-lo: o colaboracionismo do rei Herodes, a luta de libertação nacional liderada por Barrabás, a proposta pacifista de Jesus Cristo. Filme político-religioso, a película claramente leva a plateia a simpatizar com a doutrina de Cristo e o seu exemplo. É ele quem tem a melhor proposta e atitude para se contrapor a crueldade da dominação do Império Romano e também de transformar o mundo para melhor. O menino que eu era (que não perdia a missa aos domingos) de alguma maneira percebeu isso: o poder da mensagem cristã para o estabelecimento de um marco civilizatório. Mas não compreendeu, claro, que esse marco civilizatório implicava no reconhecimento do domínio do Império Norte-Americano. Decifrar os truques do cinema seria exigir demais de um menino que ainda não terminara o Curso Primário.

4. “Rastros de ódio”. Direção de John Ford. Com John Wayne e Natalie Wood. EUA, 1956. 120 min.


Assisti a esse faroeste quando criança, junto com tantos outros de John Ford, como “No tempo das diligências”, “Forte Apache” e “Rio Bravo”. Eu era parceiro de cinema de meu pai e ele adorava western, especialmente aqueles com John Wayne. Ele deve ter assistido a maioria dos filmes que esse ator encenou e não deixava de revê-los quando eram reprisados – e geralmente me levava junto. “Rastros de ódio” me caiu como um filme estranho – talvez devido ao aspecto sombrio do personagem interpretado por John Wayne – e só percebi a sua grandeza quando era estudante universitário, num memorável ciclo de faroeste no auditório da Assembleia Legislativa, em Porto Alegre. Memorável porque nesse ciclo de cinema vi filmes de John Ford que havia assistido quando criança, gostado, e jamais imaginado que fossem tão prestigiados pela crítica. Em “Rastros de ódio”, uma dupla de cowboys procura durante anos umas meninas raptadas por índios. Ao final, descobrem que apenas uma sobrevive e um deles (o sombrio cowboy interpretado por John Wayne) deseja matá-la, pois não admite um familiar aculturado pelos indígenas. A cena em que o cowboy é conquistado pela mocinha e ele enfim decide salva-la é impactante (fotografia acima) e talvez indique um emblemático e esperançoso episódio de superação do ódio racial. Provavelmente o maior de todos os faroestes. O embate do homem de fronteira (o cowboy) com seus sentimentos de repulsa e ódio diante do que lhe estranho (o mundo indígena, a cultura e a presença dos nativos que vivem no território que os brancos lutam para ocupar e dominar). Seguramente uma grande reflexão sobre o expansionismo norte-americano tanto no Velho Oeste quanto no mundo após a Segunda Guerra Mundial. Aos olhos de um espectador latino-americano, o drama contundente das figuras que protagonizam o imperialismo ianque – figuras que são, ao final, conquistadas por uma proposta humanista, o convívio com o diferente. Para o estudante de esquerda que me tornei nos anos 70, uma película imperialista genial. Filme impecável - desses que vou continuar revendo.

5. “El Cid”. Direção de Anthony Mann. Com Charlton Heston e Sophia Loren. EUA/Itália, 1961. 182 min. 


Assisti no Cine Pelotense e saí em estado de êxtase. Talvez eu tivesse 10 anos de idade. Vivi, naquela tarde, uma das maiores emoções que o cinema me proporcionou. Fiquei fascinado com a bravura do herói e impactado com a utilização da figura do guerreiro cristão morto, encaixado em cima do cavalo, empolgando seus soldados na batalha decisiva contra os mouros, para garantir a conquista da cidade de Valência. Mas estranhei o fato do herói ter matado o pai da mocinha, sua amada, e ela ainda assim ter ficado com ele. Devo ter cravado o meu pai de perguntas a respeito do filme. Fiz o álbum de figurinhas que foi lançado na época e o guardei por vários anos. Mas terminei perdendo-o. O épico dos épicos. Recordo de um colega de aula, no Curso de História, afirmando que o filme foi a maior criação mítica do cinema norte-americano. Um símbolo da luta contra os adversários da Cristandade. Anos mais tarde li o “Poema de Mio Cid”, uma das referências para a construção do roteiro, e fiquei decepcionado. A conquista de Valência está no meio do poema e não ocupa o lugar central que tem na narrativa cinematográfica. Nem a luta com os mouros é o tema central do poema. A criação hollywoodiana é muito melhor. Também tive contato com a peça teatral de Corneille – “El Cid”, 1637 – e entendi que foi dali que os roteiristas se inspiraram para criar o conflito do herói com o pai da mocinha, Ximena (fotografia acima). Conflito que resultou em duelo, morte do pai de Ximena e banimento do herói para fora de reino de Castela. Descobri, então, que minha cabeça foi feita pelo cinema hollywoodiano. Afinal, durante anos, achei que a filme era a história verdadeira de Rodrigues Dias de Bivar ou coisa assim. Me enganei redondamente. Mas não deixei de gostar do filme e me comover com as lutas do Ocidente Cristão. Em especial, com o romance entre o bravo guerreiro e a delicada e também determinada Ximena. Que mulher – ou melhor, que interpretação brilhante a da atriz Sophia Loren.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Memórias de Lygia Fagundes Telles


Encontrei numa livraria de shopping um livro de memórias de Lygia Fagundes Telles – Durante aquele estranho chá – e me deparei com uma pergunta que a autora se fez quando começou a ler a poesia de Drummond, em 1944: “aquele mundo de desencanto e de náusea devia mesmo ser cantado em verso?” A escritora tinha 21 anos de idade, era estudante da Faculdade de Direito, em São Paulo, já conhecia os autores modernistas – Mário de Andrade, Bandeira, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes –, mas nenhum tão radical como Drummond. Ficou impactada.
Livro de memórias e ficção, Durante aquele estranho chá me fisgou completamente e o li em poucas horas. Uma prosa cativante, na qual “a grande dama da literatura” reconstitui parte da sua formação e vivência. Memórias de seus encontros com escritores, leituras, participação em congressos internacionais, conferências e também viagens com o segundo marido, Paulo Emílio Sales Gomes. Encontros com Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Jorge Luís Borges, Simone de Beauvoir, Hilda Hilst e Clarice Lispector, entre outros – e, principalmente, leitura de Machado de Assis, um autor fundamental na sua obra de contista e romancista. Livro revelador dessa autora que admiro muito.
Aos 21 anos, além de entrar em contato com a poesia de Drummond, a escritora – já autora de alguns contos – escreveu para Mário de Andrade e este a convidou para um chá (o estranho chá referido no título). Um chá na Confeitaria Vienense, na Rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, durante o qual ela revelou as suas “ousadias”: ingressar numa “escola masculina” (a Faculdade de Direito do Largo São Francisco) e exercer “um ofício de homens” (escrever literatura de ficção). A autora calçava luvas, havia sons de piano e violinos – “tudo era finíssimo naquela confeitaria” – e os poucos passantes que cruzavam a rua eram bem vestidos, com chapéus de feltro e gravatas (até os estudantes usavam gravatas). Recordando a cena quase sessenta anos depois, Lygia se perguntou onde estava o povo, os camelôs e os mendigos...
Uma moça da “classe média em decadência”, segundo ela própria, a autora não se considerava uma feminista nem nunca se viu como tal. Como explicita numa das crônicas, entende que uma das maiores revoluções do século XX foi a Revolução da Mulher e não a Revolução Feminista – e foi naquela que ela se integrou. Uma revolução feita de forma prudente e paciente, na qual a mulher foi saindo da condição de invisibilidade e foi "se desembrulhando e se explicando" – como fez Gilka Machado escrevendo sobre o amor sexual em “flamejantes poemas”. Uma revolução sem os ressentimentos e agressões – “contra o primeiro sexo e até contra o próprio” – como foi o caso da revolução feminista, segundo a autora.
Lembrei do romance As meninas (1973), que li e reli, ao entrar em contato com as reflexões da autora sobre o movimento feminista. Nessa obra, três moças vão se explicando, se revelando – se desembrulhando de todos os silêncios a que as mulheres foram submetidas – e a mais prudente é a que teve melhor sorte. Um grande livro, um dos meus preferidos, talvez emblemático dessa fabulosa escritora, que nunca abandonou o lirismo (aprendido na leitura dos românticos, de Álvares de Azevedo e outros) e que soube articulá-lo com o desencanto, a náusea e a miserabilidade do mundo (que talvez tenha lido primeira vez em Drummond). Autora de uma literatura delicada, “palpitante de emoção e humanidade”, como disse Caio Fernando Abreu.

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TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 160 p. Livro escrito em 2002, a pedido de um pós-graduando que preparava dissertação sobre a autora, e revisto em 2010.


quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Meu avô e Mussolini


Meu avô paterno não conheceu Mussolini. Nunca fez parte da multidão que o assistiu discursar da sacada do Palazzo Venezia, em Roma, e apenas o escutou pelo rádio. Pelo menos era isso que meu pai e meus tios falavam a respeito dele: que ele ligava o rádio em alguma emissora italiana, escutava as notícias de sua terra natal e às vezes a voz do Duce. Ele se emocionava com o grande líder. Admirava as suas realizações – provavelmente a conquista da Abissínia (1935), o ingresso da Itália no conjunto das nações colonialistas europeias – e a fama que conquistava no mundo, na elite europeia inclusive.

Anticomunista e autoritário, meu avô não teve resistência em relação ao fascismo. Apenas em 1942, quando Vargas declarou guerra ao Eixo e os italianos que viviam no Brasil passaram a sofrer alguns constrangimentos, ele calou a sua admiração. A partir daí, ligava o rádio bem baixinho e escutava as notícias da sua terra com o ouvido colado ao aparelho. Deve ter sido com pesar que tomou conhecimento das derrotas do grande líder: a sua deposição do cargo de ditador (pelos companheiros de partido, em 1943) e o seu fuzilamento pelos partigiani (em 1945).

Pois foi desse avô que lembrei quando me deparei com o Palazzo Venezia, quase dois anos atrás. Estava com meus colegas de Campus Magnolle nas escadarias do Monumento a Vittorio Emanuele, a professora explicava o que há para conhecer no Monte Capitolino e apontou para o famoso palácio. “Era daquela sacada que Mussolini discursava às multidões”, ela disse. Apesar do meu precário italiano, consegui compreender a referência ao Duce e lembrei do meu avô – um homem que admirava Mussolini. Um homem que, de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, nas décadas de 1920 e 30, diante de um rádio, estava – de coração – com pés na Piazza Venezia, na frente do palácio, escutando o grande líder.
Palazzo Venezia, em Roma - antigo quartel-general de Mussolini.
Não conheci meu avô (ele morreu quando eu era criança) e sei dele apenas pelos relatos do meu pai, tios e minha mãe. Mas sua figura sempre me acompanhou (meu pai tinha verdadeira veneração por ele) e não foi por nada que sua lembrança irrompeu quando eu estava em Roma. Entre outras coisas, a admiração desse avô por Mussolini sempre foi motivo de conversa com meu pai e devo ter perguntado mais de uma vez se o vô sabia o que era a doutrina fascista. Meu pai garantia que não, que tudo não passava de uma relação sentimental com a Itália e fui aprendendo que foi assim com muitos imigrantes italianos. 
Os imigrantes vivenciaram com muito sofrimento a inserção nos países da América (tanto no Brasil e Argentina, quanto nos Estados Unidos) e Mussolini restabeleceu neles o orgulho de serem italianos. No final da década de 1920, o Duce era festejado como uma resposta à “decadência da democracia liberal” e não faltavam elogios ao seu estilo de governar. Muitas celebridades passavam por Roma para conhecer o ditador – Gandhi, entre elas, em 1931 – e até falava-se de uma “Internacional fascista
”. Em 1933, em Nova Iorque, um dos emissários políticos de Mussolini discursou para os seus compatriotas e afirmou: “É para vocês, operários, que se dirigem o orgulho e o amor do Duce. Sintam orgulho de serem italianos [...] sobretudo vocês, operários de braços incansáveis e corações simples. [...] Mussolini encerrou a era das humilhações. Ser italiano é um título honorífico.”
Se meu avô escutasse isso, um imigrante que colheu café em fazenda paulista e depois se fez ferroviário no Rio Grande do Sul, o que sentiria? Natural que se enchesse de orgulho e se fizesse um fascista também. Predisposição para isso ele tinha (o anticomunismo e o pouco apreço pela democracia liberal) e o grande líder na certa o fazia reparar antigos ressentimentos.
Mesmo depois do alinhamento com Hitler e as primeiras derrotas na guerra europeia, meu avô manteve a simpatia pelo líder. Ligava o rádio baixinho (para não se incomodar com os vizinhos nem com as autoridades brasileiras) e acompanhava as notícias da Itália. De coração, meu avô devia andar pela Piazza Venezia – e foi com a sua lembrança (especialmente o sentimento que meu pai me passava desse austero imigrante) que também atravessei a mesma praça.

sábado, 8 de setembro de 2018

A polêmica a respeito dos Romanov

         O historiador francês Marc Ferro coloca em xeque a versão de que a família do último czar da Rússia foi fuzilada pelos bolcheviques, na noite de 16 de julho de 1918. Segundo Marc Ferro, apenas o ex-czar Nicolau II foi morto naquela noite – ele, mais o médico e três empregados da família (mortos esses últimos para fazer número e/ou ocultar a farsa montada). A czarina, suas quatro filhas e o herdeiro, Alexei, foram poupados.

Para isso, houve uma negociação entre o governo comunista e o kaiser Guilherme II, que desejava salvar os membros da família real russa com sangue alemão (a czarina era alemã). No acordo, a Alemanha se comprometeu a sair da Bielorrúsia, entregar dois membros da organização spartaquista, enquanto os Sovietes reconheciam a independência dos Estados Bálticos, deixavam de incentivar a propaganda revolucionária entre o proletariado alemão e entregavam a imperatriz alemã e seus filhos.

Assim, após o assassinato do ex-czar, um comboio conduz secretamente os sobreviventes da família real em direção a Moscou e dali para fora da Rússia. No caminho, porém, desaparece Alexei e a princesa Anastasia foge com um guarda. Sobre Alexei não há pistas plausíveis (apenas uma história rocambolesca), mas Anastasia aparece mais tarde, na década de 1920, e sua identidade vai ser contestada. Injustamente contestada, segundo o autor.

Enquanto isso, ainda segundo Marc Ferro, a imperatriz e suas três filhas são acolhidas por membros da nobreza europeia, sem alarde, pois assim convinha ao movimento contrarrevolucionário que pretendia reinstaurar a monarquia na Rússia. Restaurar a partir de outra linha sucessória que não a estabelecida por Nicolau II, visto que esse soberano era avaliado como incompetente e sua memória incapaz de empolgar os nostálgicos do Antigo Regime.
Para muitos historiadores, a hipótese que Marc Ferro encampa – a da sobrevivência da imperatriz e das princesas – não passa de uma lenda. O historiador francês, porém, argumenta com tanta propriedade, levanta documentos e testemunhos tão contundentes, que, ao menos no meu caso, convence. Essa tese ele já anunciara em 1990, ao publicar na França uma biografia de Nicolau II – recebida, segundo ele próprio, “com uma indiferença e um silêncio glaciais”. Em 2012, o autor sintetizou o assunto num pequeno livro – A verdade sobre a tragédia dos Romanov –, o qual foi publicado no Brasil (Editora Record, 2017, 160 p.).
É um pequeno livro impactante, recomendável para quem se interessa por Revolução Russa e/ou gosta de histórias de famílias reais. No meu caso, os dois temas agradam. São assuntos para muitas leituras e conversas. Para quem indiquei o livro, uma professora apaixonada por História, a leitura foi daquelas de varar a noite. Um tema polêmico que ainda rende.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Museu Nacional - tragédia anunciada

           Difícil assimilar a destruição do acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no último domingo. Enquanto escrevo, ainda não há nada conclusivo a respeito das causas do incêndio. No noticiário de TV, ouvi que pode ter sido um curto circuito. Um risco apontado há muitos anos e até discutido no Conselho Estadual de Cultura, do Rio de Janeiro, em 2014, quando foram apresentadas denúncias de fiações expostas. O próprio diretor do museu na época, Sérgio Azevedo, reconheceu a situação complicada e disse que tal quadro era ruim desde meados dos anos 90. De lá para cá, a situação só se agravou e o Museu foi fechado várias vezes.

Quando visitei o Museu Nacional pela primeira vez, em 2007, a situação não era boa. Fiquei chocado com a precariedade, mas maravilhado com o seu acervo (mesmo que apresentado de maneira um pouco confusa). Quando o visitei novamente, no final de julho desse ano, o choque foi muito maior. Alguns espaços estavam interditados, havia salas fechadas, e já se notava o reboco de uma parede externa se deteriorando.

Fiquei parado numa sacada, olhando os jardins e um guarda me pediu para não ficar ali muito tempo. “Não é seguro”, ele disse, e percebi certo constrangimento quando ele explicou que “o prédio é antigo, não está bem conservado e é necessário tomar cuidado”. Mesmo assim, mesmo com essa precariedade, a visita foi excelente, e revi algumas peças com muita satisfação e conheci outras que não dei atenção na primeira vez.

Privilegiei as salas com material histórico e antropológico – como a maioria dos visitantes, sou magnetizado pela Sala Egípcia –, mas também apreciei o acervo paleontológico e, especialmente, os seus pequenos visitantes, a meninada. Uma gurizada que dava gritos de alegria e espanto vendo a reconstituição de um dinossauro – o Maxakalisaurus topai, de 13 metros de comprimento – e outros animais pré-históricos, como a fantástica preguiça-gigante. 
Sala de Paleontologia - reconstituição de uma preguiça-gigante.
Uma gurizada que deve estar agora com os olhos cheios de lágrimas, pensando que nunca mais visitarão aquele Museu e viverão o mesmo espetáculo daquela tarde: o da reconstituição de animais pré-históricos e o contato direto com vestígios de outras civilizações, como a egípcia, a romana e de povos pré-colombianos, como os Incas, os Jivaros, os Tikunas. Uma gurizada que talvez esteja experimentando pela primeira vez o sentimento da perda, da perda irremediável, da perda incompreensível.
Sala de Etnologia Indígena Brasileira - no primeiro plano, máscara Tikuna.
Ainda não consegui assimilar a destruição do que aconteceu com o Museu Nacional. Mas seguramente se trata de uma tragédia anunciada, como declararam à imprensa vários funcionários e pesquisadores do Museu.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Roma no cinema e na porta da geladeira


Uma noite dessas peguei na TV o filme “A princesa e o plebeu” (1953), com Audrey Hepburn e Gregory Peck. Estava recém começando e resolvi conferir. Já tinha visto trechos desse filme e ouvido minha mãe falar a respeito (ela gostava muito de cinema), mas acho que nunca havia assistido do início ao fim.

“A princesa e o plebeu” se passa em Roma, no início da década de 1950, e tem belíssima fotografia em P&B. Uma princesa foge da sua comitiva, conhece um jornalista norte-americano e os dois passam um dia de pequenas e inocentes aventuras pelas ruas da cidade. A princesa é a mais pura inocência (Audrey Hepburn no auge da sua juventude), enquanto o jornalista é um madurão esperto, sempre gentil, que a princípio quer produzir um furo jornalístico (uma entrevista exclusiva). Pouco a pouco, porém, o madurão esperto se deixa seduzir pelos encantos da moçoila e desiste de suas intenções profissionais. Enquanto isso, eles passeiam pelos cenários de cartões postais de Roma: o Coliseu, o Monumento a Vittorio Emanuele, o Panteão, o Rio Tibre e assim por diante. Circulam de lambreta pelas ruas de Roma, provocam divertidas confusões, e o amor (ou qualquer coisa parecida) se impõe entre eles. A comédia romântica no seu melhor estilo.

Assisti ao filme até o fim porque lembrei dele quando visitei Roma (e também por causa de minha mãe e das nossas conversas sobre cinema). Um dia, passeando na região do antigo Fórum, entrei numa tenda de souvenires e encontrei um imã de geladeira com uma cena do filme (“Vacanze romane”, na tradução para o italiano). A cena em que a princesa come um sorvete de casquinha na escadaria da Piazza di Spagna, as escadas que ligam a praça à Igreja Trinità del Monti – um local de destaque em qualquer roteiro turístico da cidade - e que eu acabara de visitar.


Quando olhei aquele imã de geladeira, senti que estava diante de uma das matrizes do imaginário que assimilei a respeito de Roma. Como todo mundo que se criou na sala escura dos cinemas (ou varou madrugadas assistindo filmes na TV), percebi que estava pagando o meu tributo ao cinemão norte-americano. Gostando ou não desses filmes, hollywoodianos, foram eles que primeiro me informaram a respeito do mundo – e da cidade de Roma inclusive. Depois é que vieram o cinema de Rosselline, Vittorio de Sicca, e a literatura de Stendhal e Moravia.

Naquele dia, comprei o imã e gostei de passear pelas ruas de Roma com o pequeno souvenir no bolso do casaco. Era como se o guri que não passava semana sem ir ao cinema estivesse revivendo dentro de mim e cobrando alguma coisa. Aquilo que tantas vezes nas salas escuras – as ruínas do Coliseu, as águas do Rio Tibre –, agora estava conferindo in loco. De certa forma, feliz da vida, eu estava pagando o meu tributo aos estúdios cinematográficos norte-americanos. 


Um bom assunto para conversar com minha mãe, penso hoje, se ela ainda estivesse viva. Afinal, filmes, atrizes e atores eram um dos nossos temas. E quase sempre concluíamos a respeito do quanto conhecemos o mundo (ou conhecemos inadequadamente) através do cinema e suas representações.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Copacabana e seus roteiros


Copacabana fascina e provavelmente me engana. Nem sei que Copacabana eu conheço. Passei alguns dias hospedado num hotel desse bairro, na última semana, e constatei isso mais uma vez. É um espaço privilegiado, que provoca e seduz. Cada vez que visito o lugar tenho uma impressão diferente. Conheci Copacabana primeiramente através da literatura e do cinema, e é com essas informações que ainda vejo o lugar.

Assim, antes de viajar, procurei na estante de casa alguma coisa do que João Antônio escreveu sobre o bairro – “Ô Copacabana” (1978), por exemplo – e não encontrei. Mas achei um livro de Rubem Mauro Machado com três histórias policiais ambientadas no Rio de Janeiro, que li ao longo da viagem. Em uma dessas histórias – “Assassinato em Copacabana” –, um policial frequenta um boteco na Avenida Prado Júnior (Boteco do Aristeu) e ali encontra o escritor João Antônio “de bermudas, camiseta e chinelo de dedos, um tanto barrigudo, escondido atrás de um bigode mexicano”. O escritor convida o policial para uma partida de sinuca e ele recusa. João Antônio era bom jogador e o policial não quis ser encarar.

Caminhando pelas ruas de Copacabana, eram esses autores e suas histórias que conduziam o meu olhar. João Antônio deixou São Paulo para viver no entorno da praça Serzedelo Corrêa e produziu textos excelentes sobre a população do bairro, especialmente os tipos marginais. Em 1996 foi encontrado morto em seu apartamento. Tinha 59 anos e tornara-se um homem amargurado. Sua visão a respeito do bairro não é das mais agradáveis – mas nem por isso menos fascinante.



Mas nem tudo é literatura e muito menos literatura sobre os excluídos. Num fim de tarde, minha companheira me convidou para irmos ao bar do Copacabana Palace e lá fui eu conhecer esse território da elite. Seguramente um espaço desconhecido pelos personagens de João Antônio, mas cenário, isso sim, de algumas crônicas e memórias de Danuza Leão, cronista do mundo elegante.

Então, como se fosse um bacana, me instalei com minha mulher numa mesa próxima a piscina do famoso hotel. Pedi vinho branco e ela me falou sobre algumas figuras que frequentam o local, artistas globais e socialites que conheço de ver na TV ou de nome. O garçom que nos atendeu tinha sotaque castelhano e perguntei de qual cidade ele vinha. “Salta”, ele disse. Minha companheira comentou a respeito das múmias de crianças incas que estão expostas no museu de Salta e ele contou que estudou arqueologia. Foi aluno dos pesquisadores que descobriram as meninas incas, sacrificadas há 500 anos. As "múmias" mais bem preservadas do planeta.

Na véspera, na filial da Confeitaria Colombo (dentro do Forte de Copacabana), a garçonete que nos atendeu contou que era moradora da Rocinha. Falou com tranquilidade a respeito da vida que leva nesse bairro,  criando um filho pequeno, e disse que às vezes não podia sair de casa por causa dos tiroteios. Mas não falou isso de modo dramático, ao contrário.

Copacabana me parece que é isso: um espaço que se abre em várias possibilidades, todas elas devidamente tematizadas por boa literatura e bom cinema. O território dos marginais de João Antônio e o da elite perfumada que circula no Copacabana Palace. E seus habitantes, vindos dos mais variados recantos – de Salta, na Argentina, ou da Rocinha –, ampliam e reinventam as histórias do bairro.

Nem sei que Copacabana conheço. Leio o que os literatos escrevem, o que os cineastas filmam (revi “Copacabana me engana”, dias atrás), e vou criando um universo a partir disso. A literatura e o cinema são meus roteiros para esse bairro fascinante. E, sentado num banco da Avenida Atlântica, olhando o mar, observando o movimento dos banhistas num início de manhã, constato que o local bem merece a mitologia que se criou a seu respeito. Uma mitologia para todos os gostos.


Obs.: O livro de Rubem Mauro Machado citado acima é O executante (Rio de Janeiro: Record, 2000) e o filme – Copacabana me engana (1968) – foi dirigido por Antônio Carlos Fontoura, com Odete Lara e música-tema de Caetano Veloso, “Baby”, interpretada por Gal Costa.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

"Silêncio", de Scorsese

Foi um dos melhores filmes que assisti ultimamente: “Silêncio”, de Martin Scorsese, baseado no romance japonês de mesmo nome, de Shusaku Endo. 
Arrisco dizer que o filme é melhor que o livro. Li o livro com entusiasmo, assisti ao filme pela segunda vez e gostei ainda mais. Uma narrativa contundente. Mas sou suspeito. A temática religiosa tem me pegado: a busca do martírio, o embate com o silêncio de Deus – o “insondável silêncio de Deus”, como diz um dos personagens. Temas caros na história da Cristandade. Grandes santos procuraram o martírio – como São Francisco, Santo Antônio, Santa Teresa de Ávila – e alguns conseguiram. Uma aspiração de muitos católicos, até hoje. E, pairando sobre essas sensibilidades religiosas, sempre a esperança de um sinal divino. Um sinal que nas histórias eclesiásticas geralmente se evidencia, de um jeito ou de outro. Mas nas narrativas realistas, mais humanas – como é o caso do romance de Shusaku Endo e do filme de Scorsese –, é o silêncio que se impõe. E a constatação, como faz o personagem narrador do livro de Endo, que não somos tão fortes como Jó.

O filme inicia em Lisboa, em meados do século XVII, quando dois jovens jesuítas decidem partir para o Japão em busca de notícias sobre seu mestre, o padre Cristóvão Ferreira, que dizem ter renegado o Catolicismo. Os dois jovens não acreditam nisso. Por pior que tenha sido a tortura que infringiram ao mestre, os jovens imaginam que ele resistiu.

Nessa época, o Catolicismo iniciado pelo trabalho missionário de São Francisco Xavier não era mais aceito pelas autoridades japonesas. Os cristãos eram perseguidos e geralmente mortos. A repressão iniciara no final do século XVI, mas o catolicismo apenas refluiu, não desapareceu. A crucificação de 26 católicos, em 1597, em Nagasaki, é um marco dessa perseguição que se prolongou e se sofisticou (em técnicas de repressão e tortura) ao longo do século seguinte.

Cena do filme: os dois jovens missionários que buscam o padre Ferreira.
Ao chegar ao Japão, os jovens jesuítas são constantemente atormentados por essa conjuntura repressiva. Os portugueses não são bem-vindos. E os missionários descobrem que padre Ferreira (interpretado por Liam Neeson) foi confrontado com a tortura – com a possibilidade do martírio – e recuou. Segundo a rígida norma religiosa, ele fracassou. As cenas do padre Ferreira exposto à dor da tortura e da abjuração são um dos pontos altos do filme. Grande interpretação do ator Liam Neeson. Cenas dolorosamente humanas. Narrativa muito distante do tradicional padrão de história religiosa, que costuma representar o martírio como algo glorioso. No filme de Scorsese isso não acontece. Ao contrário.
Nem por isso o filme é menos religioso. A cena final que o diga. Diante do brutal silêncio de Deus – ou insondável, como diz um personagem –, diante da brutalidade dos homens também, se contrapõe a esperança humana. Frágil e tortuosa esperança, no caso. Humana esperança – muito distante daquela corajosa postura do bíblico personagem Jó, que não fraquejou um só momento.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Guerra do Paraguai e literatura de ficção


A Guerra do Paraguai (ou Guerra da Tríplice Aliança) não ocupa muito espaço na nossa literatura de ficção. No gênero romance, conheço apenas “A solidão segundo Solano López” (1980), de Carlos de Oliveira Gomes, “O rastro do Jaguar” (2009), de Murilo Carvalho – ambos com características de romance histórico, isto é, sem ruptura com a discurso historiográfico – e “Avante, soldados: para trás” (1992), de Deonísio da Silva – de caráter satírico, com intenção de subverter o discurso historiográfico. Provavelmente existam outros títulos (tomara que existam), mas fico com os citados, especialmente os dois primeiros por se adequarem ao meu modo de pensar o mundo e a literatura.

Reli “A solidão segundo Solano López” semanas atrás e gostei muito. Tinha uma boa lembrança do livro e confirmei essa impressão. Escrito no final dos anos 70, o romancista faz um prólogo onde explicita o seu alinhamento com o revisionismo histórico da época (que entendia a guerra contra o Paraguai devido às pressões do imperialismo britânico), e se propõe a um quadro geral do conflito militar. A tese da pressão imperialista foi contestada posteriormente (um dos seus principais expoentes, o argentino Leon Pomer, reconheceu o exagero da interpretação), mas a narrativa ficcional de Oliveira Gomes não fica prejudicada por conta disso.

Romance vigoroso, a narrativa acompanha a invasão dos exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) a partir dos seus comandantes militares (Mitre, Caxias, Osório), enfoca também o lado paraguaio, sob o comando absoluto de Solano López, e o leitor tem uma visão geral do conflito, o passo a passo da guerra. No que diz respeito ao lado paraguaio, a narrativa também enfoca as disputas internas, como o surgimento de uma resistência ao ditador Solano López e o modo como esses opositores são neutralizados – neste último caso, com o auxílio da “terrível” Madame Lynch, esposa do ditador.

Mas o autor não enfoca apenas os ilustres personagens históricos (Mitre, Caxias, Osório, Solano López e Madame Lynch). Cria também um outro eixo narrativo, composto por personagens menores (provavelmente fictícios), e amplia o leque social dos atingidos pela guerra. Nesses personagens menores (homens e mulheres que não conquistaram lugar nos tradicionais livros de História) a guerra escreve de forma mais dolorosa o seu espectro de horrores e parece ser essa a intenção do autor: revelar o sofrimento que grandes interesses econômicos e políticos em confronto são capazes de produzir na população em geral. Presidentes e imperadores, diplomatas e generais movem-se orientados por grandes projetos – de organização da economia internacional, de formação de Estados Nacionais –, arrastam exércitos para a concretização de seus objetivos (às vezes caprichos), e isso se faz com uma soma de sofrimentos incalculáveis, não apenas de soldados, mas da população civil também.

Detalhe de quadro de Cándido López.
Já  em “O rastro do Jaguar”, de Murilo Carvalho, a abordagem é diversa, com outro tom (menos épico) e outra maneira (originalíssima) de enfocar o mesmo conflito militar. Nesse romance, um jornalista europeu (nascido em Portugal, criado na França), na virada do século XIX para o XX, se põe a escrever suas memórias, tendo como foco a trajetória de um amigo que ele acompanhou em viagem pelo Brasil (Bahia, Rio Grande do Sul) e Paraguai. O amigo fora levado criança para a França (pelo viajante Auguste Saint-Hilaire, que o adotara quando passou pelo Rio Grande do Sul, em 1820-21) e criado no continente europeu como se fosse francês. Aos 40 anos esse amigo do narrador descobre sua identidade guarani e decide voltar ao Brasil em busca do seu povo. Esse regresso coincide com a Guerra do Paraguai e tanto o jornalista quanto o índio se veem envolvidos pelo conflito.

Pelo olhar do jornalista (que envia artigos para um jornal parisiense) temos uma visão geral da guerra, enquanto pelo lado do índio ganhamos a perspectiva da grande massa indígena que atende aos apelos de Solano López e luta bravamente sob seu comando. Segundo o personagem narrador, os guarani (que constituíam o exército paraguaio) aguardavam um profeta-guerreiro que viria reerguer a nação indígena e identificaram no ditador essa figura mítica. Daí o engajamento dos índios e seu comprometimento na luta. Equivocadamente os guarani lutaram pelo projeto de Estado Nacional de López entendendo como um projeto que recuperasse também a dignidade indígena.

Como o romance é narrado por um europeu, a nação guarani é comparada aos antigos povos bárbaros que se constituíram em nações organizadas na Europa, posteriormente em Estados, num longo processo histórico que atravessou a Antiguidade, a Idade Média e se consolidou nos séculos XVIII e XIX. Um tempo histórico que os guarani não tiveram para si. Os indígenas foram engolfados por um processo civilizatório no qual eram os sócios menores e, durante a Guerra do Paraguai, estavam envolvidos numa luta de Estados Nacionais em formação, todos de matriz europeia (Paraguai, Brasil, Argentina), e para esse banquete os indígenas não eram convidados – a não ser como bucha de canhão.
Muito melancólico esse romance de Murilo Carvalho e muito atual também, na medida em que as lutas indígenas se renovaram nos últimos vinte anos, tanto no Brasil como na América Latina. Os povos indígenas procuram se recolocar na cena político-cultural e as lutas do século XIX seguramente ainda servem de material para reflexão. A Guerra do Paraguai continua sendo um depositário de grandes histórias – histórias importantes na nossa formação social – e às vezes estranho que poucos ficcionistas se aventurem a revive-la.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Tiro de Guerra




A foto acima é um recuerdo familiar: meu avô materno com sua turma do Tiro de Guerra, em Pelotas, no dia 15 de novembro de 1919. Na fileira dos atiradores de pé, ele é o terceiro, da direita para a esquerda. Um rapaz de estatura baixa, 22 anos, filho de imigrante português, muito bonito. Na sua turma do Tiro de Guerra ele aprendeu a manejar o fuzil Mauser (é isso que lembro ele contar), fazer “ordem unida” e se orgulhar disso. Contava que a arma pesava quase cinco quilos (mais precisamente 3,8 kg, se fosse uma Mauser Modelo 1908), muito difícil de apoiar no ombro e fazer a mira. Pelos seus comentários, imagino que teve apenas noções de tiro, mas era reservista e seria convocado pelo Exército em caso de necessidade.

Quando encontrava algum antigo companheiro do Tiro de Guerra, recordo que ele e o amigo riam, lançavam algum olhar nostálgico e sempre falavam de alguma lembrança saborosa desses tempos de “treinamento militar”. Ou, pelo menos, era isso que o neto criança imaginava. Mais tarde, já crescido e interessado em história militar, conversei com ele sobre o assunto, mas ele não contou (ou não lembro) nenhuma história específica. Falava apenas da Mauser pesada no ombro e o orgulho que sentiu pelo fato de poder ser "chamado pela Pátria” quando ela precisasse de homens para defende-la. Mas fazia esse último comentário com um riso maroto, que me fazia pensar que não acreditava muito que sua turma pudesse ter condições de defender a Pátria militarmente.

Com a foto acima nas mãos, minha mãe e eu tentamos várias vezes reconstituir as histórias do avô, mas não fomos muito longe, isto é, não fomos além de recordar a satisfação que ele revelava ao contar que se tornara “reservista do Tiro de Guerra”. Uma foto pequena do avô, com este mesmo fardamento, sem o quepe, minha mãe às vezes trazia na carteira e outras vezes deixava dentro de uma caixinha de joias da Joalheria Pinto Ferreira... Lembranças que se embaralham na minha memória, hoje em dia.

O Tiro de Guerra teve origem numa Sociedade de Tiro criada na cidade de Rio Grande e ganhou impulso após a Grande Guerra. O vô nunca deixou de se referir à 1ª Guerra Mundial como a “Grande Guerra” e parece nunca ter esquecido as notícias de barbaria daquele conflito. Em 1923 (durante a hoje chamada “Revolução de 23”) a tropas rebeldes de Zeca Netto tomaram Pelotas por um dia e esse parece ter sido o acontecimento militar que meu avô mais viveu de perto.

– O Exército convocou vocês para defender a cidade? – eu lembro de ter perguntado.

– Não, isso era coisa entre os rebeldes e o Presidente do Estado (Borges de Medeiros). O Exército nem se meteu nisso – ele deve ter explicado ao menino que eu era.

Minha mãe e eu várias vezes tentamos reconstituir a história desse avô e sempre nos faltou informação. Mas restou essa foto, a foto de um rapaz fardado e orgulhoso, que olha altivo para a câmara, que olha altivo para mim e parece perguntar se tenho alguma noção de arma de fogo para defender a Pátria em caso de necessidade.

– Certamente que não – eu digo mentalmente, imaginando que essa resposta seria motivo para mais conversa entre nós. Afinal, o rio-grandino que criou a sociedade de tiro que deu origem ao Tiro de Guerra, em Rio Grande, no início do século XX, imaginava uma sociedade de civis armados (com fuzis em casa inclusive) prontos a serem chamados para defender a Pátria, como se fossem habitantes da antiga Roma e isso – ter esse preparo militar – nunca foi coisa que tivemos.[i]



[i] Segundo o historiador militar Claudio Moreira Brito, o rio-grandino (Antônio Carlos Lopes) que criou a Sociedade de Propaganda do Tiro de Guerra, em Rio Grande (1902), organização que deu origem ao Tiro de Guerra no país inteiro, se inspirou no sistema de defesa militar da Suíça, no qual homens com formação militar tinham armas em casa e seriam chamados em caso de guerra (como era na antiga Roma antes da profissionalização do exército).

terça-feira, 19 de junho de 2018

Guerras napoleônicas: "O retorno do herói"


O retorno do herói foi um dos filmes selecionados no recente Festival Varilux de Cinema Francês. Uma comédia ambientada no período das guerras napoleônicas, na qual um elegante hussardo francês (integrante da cavalaria) pede a mão de uma jovem aristocrata e no mesmo dia é convocado para a Campanha da Áustria (1809). Ele promete escrever todos os dias para a adorável noivinha, não escreve uma única carta e desaparece. Alguns anos depois, quando regressa, descobre que a irmã da noiva escreveu cartas por ele (para salvar a irmã de terrível depressão) e que ele se tornou um herói para a família da noiva e para a cidade. Sem escrúpulo, encarna o personagem criado pelas cartas imaginárias e narra as suas peripécias heroicas para uma plateia encantada. Em resumo, passa a faturar em cima da sua fama de herói.




Um dia, porém, conta a sua verdadeira história: a de um oficial que participou de uma carga de cavalaria contra as tropas austríacas – durante a batalha de Essling, nos arredores de Viena – e assistiu durante poucos minutos mais de 300 cavalarianos do seu regimento morrerem devido ao bombardeio dos canhões inimigos. É o único momento do filme em que o tom de comédia desaparece. De forma emocionada e pausada, o personagem narra o espetáculo de horror que presenciou para uma plateia em estado de choque. Um clarão de horror numa comédia ligeira e logo o filme volta ao seu tom de humor, por sinal muito bom. Divertimento garantido, como se diz.

Não conto mais a respeito do filme para não tirar a surpresa de um possível espectador. A guerra é sempre um tema empolgante e é muito bom quando o cinema a aborda de forma humorada, indicando as diversas maneiras que os homens têm de lidar com o horror dos combates (um horror que nos constitui, que é parte integrante da nossa civilização). No caso desse filme, a saída do personagem não é nada honrosa do ponto de vista da ética militar – mas, sem dúvida, é uma alternativa muito humana. Afinal salvar a própria pele é sempre algo humano, vergonhosamente humano às vezes.

O filme, ou melhor, a cena em que o personagem narra a sua participação na batalha de Essling me lembrou um conto de Prosper Mérimée que nunca esqueci (e várias vezes citei em sala de aula): “A tomada do reduto”, escrito em 1829. Nesse conto, um oficial francês narra a sua vivência em outra das guerras napoleônicas (a Campanha da Rússia, 1812), na tomada do reduto de Chevardino, próximo a Moscou. O personagem é um oficial de infantaria, ele marcha contra os russos entrincheirados no reduto e assim narra o ataque:

Vibraram todos os fuzis. Fechei os olhos, e ouvi um espantoso fragor, seguido de gritos e gemidos. Abri os olhos, surpreso de ainda me encontrar no mundo. [...] Achava-me cercado de feridos e mortos. Meu capitão jazia estendido a meus pés, com a cabeça estraçalhada por uma bala de canhão, e eu estava coberto de seu cérebro e seu sangue. De toda a minha companhia, só restavam de pé seis homens e eu.

Algo semelhante viveu o personagem do filme O retorno do herói: ele também se viu “cercado de feridos e mortos”. Os dois, o hussardo da batalha de Essling e o infante da tomada de Chevardino, sobreviveram aos massacres que Napoleão Bonaparte protagonizou na Europa do início do século XIX, massacres fundamentais para a constituição da Civilização Européia. Os dois foram sobreviventes e testemunhos do horror napoleônico.
Um bom filme. Saí do cinema pensando que o indicaria para os meus alunos, se ainda fosse professor de História.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A Revolução de 1932 no Rio Grande do Sul


Em 1932, as lideranças da Frente Única sul-rio-grandense romperam com Getúlio Vargas e comprometeram-se com os paulistas num movimento de rebelião ao Governo Provisório varguista. Entre esses líderes gaúchos estavam Borges de Medeiros e Flores da Cunha, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), mais Raul Pilla e Batista Luzardo, do Partido Libertador (PL). Flores da Cunha era o interventor no estado (nomeado por Vargas) e o movimento dependia dos recursos que Flores dispunha como chefe de governo (o comando da Brigada Militar) para o sucesso militar da revolta.

Quando se aproxima a eclosão do movimento, no entanto, Flores retoma os laços de lealdade para com Vargas e deixa os companheiros na mão. As operações militares contra o Governo Provisório iniciam em São Paulo, no mês de julho, as lideranças paulistas contam com o apoio gaúcho, mas as lideranças gaúchas não conseguem se mobilizar. Borges de Medeiros e Batista Luzardo são “presos” em Porto Alegre e os focos de revolta no estado ficam contidos no nascedouro. Flores conhecia os planos dos rebeldes e traz as lideranças do movimento sob estrita vigilância.

Uma vigilância, no entanto, que não implicava em trancafiar os líderes em prisões. Luzardo vivia num hotel da Rua Andrade Neves, Borges na sua residência na Rua Duque de Caxias, e eram apenas vigiados por agentes policiais. Luzardo se disfarça de padre e burla os policiais, Borges também engambela os seus secretas durante um passeio matutino e ambos partem para o interior do Estado com o propósito de estabelecer um “foco revolucionário”.

Forma-se então a Coluna Luzardo e o propósito inicial é tomar Santa Maria (em função do papel estratégico da cidade quanto ao controle da malha ferroviária), mas o projeto não vinga e a coluna, com um efetivo de aproximadamente 200 homens, se encaminha para o sul. Enquanto isso, apenas na região de Soledade um outro foco de luta é criado (pelo general Candoca), porém logo contido.

A Coluna Luzardo marcha pela região da Campanha e no dia 19 de setembro acampa na estância de Cerro Alegre, nas proximidades de Piratini.  No outro dia, 20 de setembro, 700 homens das forças legalistas cercam os rebeldes e os levam à rendição após algumas horas de tiroteio. É o último combate da Revolução de 32 no Rio Grande do Sul. Alguns dizem que é o fim de um ciclo revolucionário que iniciou com a Revolução Farroupilha, mas isso é um exagero. Historiadores mais apegados a ideia de uma tradição revolucionária sul-rio-grandense costumam endossar essa interpretação, no entanto trata-se apenas do esgotamento das revoltas oligárquicas no estado, as quais, no que diz respeito ao quesito “revolucionário” (mudança de estrutura social) são questionáveis.

Seja como for, essa temática histórica (a do ciclo revolucionário) é um filão que alimenta boa parte da nossa literatura de feição memorialística, historiográfica e ficcional, e muitos de nós gastam horas em torno desse assunto. Um tema fascinante, constitutivo da nossa identidade regional. No caso da Revolução de 32 – e em especial do compromisso que os gaúchos assumiram com os paulistas – trata-se de um episódio histórico que muitos de nós ouviram os avós, os pais e os tios comentarem animadamente, xingando-se uns aos outros e também fazendo piadas, rindo. Menino, eu ouvia o pai e meu avô materno tratarem desse assunto, indagarem por que os gaúchos romperam a palavra dada aos paulistas, e me empolgava.



Foi com essa memória de menino que li essa semana o livro Pela palavra empenhada: a Revolução de 1932, de Blau Souza e Zeno Chaves (PoA: AGE, 2012. 184 p.), uma investigação histórica e memorialística sobre o episódio revolucionário de 32 no cenário sul-rio-grandense. Como o próprio título indica, uma investigação que tem como eixo a pergunta a respeito de como as lideranças gaúchas lidaram com a “palavra empenhada” aos paulistas. Uma palavra (compromisso) que a gauchada não manteve.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Batalha da Ponte Mílvea


A batalha da Ponte Mílvea é daquelas que se estuda na história romana devido ao seu papel na reorganização do Império após a crise do século II d.C. É o confronto militar no qual Constantino derrota Maxêncio, às margens do rio Tibre, em 312, e dessa maneira prepara o caminho para a reunificação dos impérios do Ocidente e Oriente (criados por Diocleciano) e seu coroamento como único imperador. Para quem tem alguma intimidade com a história do Cristianismo, no entanto, é muito mais do que isso.

Segundo a lenda católica, às vésperas da batalha, Constantino teria tido uma visão na qual se apresentou uma cruz com a legenda  In hoc vince (Através disso vence) e ele se converteu ao Cristianismo. O general mandou desenhar nos escudos da sua tropa o signo da Cruz e derrotou seu adversário. Na sequência, foi promulgado o Édito de Milão (assegurando a liberdade de culto), terminaram as perseguições aos cristãos e abriram-se as possibilidades do Cristianismo se estabelecer como religião oficial e estruturar-se como igreja imperial. Para alguns, Constantino encerrou a Antiguidade (o domínio do paganismo) e inaugurou o início da Cristandade (um modelo sócio-político no qual o Cristianismo ocupa o polo central).

A Batalha da Ponte Mílvia (detalhe), de Rafael Sânzio. Vaticano.
Escrevo isso porque há pouco mais de um ano passei diante da Ponte Mílvea, em Roma, e a cena se gravou em mim como uma espécie de iluminação. Estava dentro de um ônibus, a professora de italiano se referiu à ponte rapidamente... e fui transportado ao meu mundo de criança. Uma experiência e tanto, dessas que a gente volta e meia relembra.

E me refiro a essa vivência como “iluminação” porque a minha infância se fez presente naquele momento como um jato de luz. Fui iluminado pela lembrança do tempo em que era aluno de catequese, me preparava para a primeira comunhão e me enfronhava nas lendas e histórias da Igreja Católica. Em algum momento daquele período da infância aprendi sobre a visão de Constantino, a cruz marcada nos escudos dos soldados, e acredito que a História Geral de Souto Maior (um livro muito adotado pelas escolas na década de 60) tenha sido uma das referências. Provavelmente foi nesse livro didático (do meu irmão mais velho) que li pela primeira vez a respeito do assunto.

Essa semana, relendo A Igreja no Império Romano, do historiador gaúcho Martin Dreher, descobri que a matriz dessa lenda é Eusébio de Cesaréia, contemporâneo de Constantino. Eusébio escreveu uma história eclesiástica na qual afirmava que o general implorou ao “Deus dos céus e de seu Logus, Jesus Cristo” a vitória no campo de batalha. Mais tarde, após a morte de Constantino, Eusébio acrescentou mais detalhes. Contou que, às vésperas da batalha com Maxêncio, o futuro imperador teve uma visão ao meio-dia e viu uma Cruz se colocar diante do Sol com a famosa inscrição afirmando que ele venceria com aquele símbolo cristão.
Martin Dreher comenta que Constantino não se converteu ao Cristianismo às vésperas da batalha de Ponde Mílvia e só foi batizado 25 anos depois, no leito de morte. Constantino era adepto do culto a Mithras, mas nem por isso deixou de perceber que a nascente Igreja Cristã poderia ser útil para a reorganização do então fragmentado Império Romano. Um político sagaz que soube fazer um pacto com a Igreja muito proveitoso para os dois lados. 
A história romana é um tema que não tem fim e imagino que um dia, se voltar a Roma, procurarei a Ponte Mílvea. Mas não será apenas para homenagear as glórias do imperador Constantino ou a inauguração da Cristandade. Será, principalmente, para lembrar de um guri que foi coroinha na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Pelotas, e um dia acreditou que as forças divinas eram capazes de intervir na história dos homens.


- DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993. (vol. 1 da coleção "História da Igreja".)
- SOUTO MAIOR, A. História Geral: para o ensino de 2º Grau e vestibulares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s/ data.