segunda-feira, 26 de junho de 2023

Tempo de entusiasmo

             Muito bom lembrar o tempo em que lecionava em Canoas. Eu tinha entre 24 e 27 anos e é chover no molhado proclamar que é um tempo de entusiasmo. Mas vá lá. Eu ainda me sentia experimentando o magistério e tanto me emocionava acompanhando os alunos numa festa cívica (como o desfile de 7 de setembro), quanto participando de reuniões com os pais dos alunos nos bairros Harmonia e Mathias Velho nos períodos de greve.

Numa dessas reuniões de professores grevistas com os pais dos alunos, um senhor se aproximou de mim e disse que não sabia que ganhávamos tão pouco.

Estávamos numa sede de CTG, na Mathias Velho, o senhor tinha um jeito de gaúcho e explicou:

– Me desculpa a franqueza, mas eu não estudei grande coisa e ganho muito mais do que vocês. Assim não está certo.

Não lembro a atividade profissional do homem (certamente um operário qualificado) e apenas recordo o meu constrangimento. Sim, eu fiquei sem jeito. Meu pai já havia cantado a pedra, alguns anos atrás, quando tentara me dissuadir de prestar vestibular para o Curso de História e ser professor.

– Tu vais te sentir melhor no Direito – ele falou. – E não precisa advogar, se não quiseres. O Curso de Direito abre um leque grande de possibilidades, o Judiciário tem cargos muito bem remunerados, e tu vais ter condições de comprares os livros de História que quiseres – acrescentou.

Aquele homem de rosto envelhecido me observava de alto a baixo e eu o ouvi como se fosse meu pai (falecido há pouco tempo, naquela época). Os alunos também já haviam me dito algo parecido:

– Meu pai não completou o ginásio e tá melhor que muito professor de faculdade completa.

O pai desse aluno trabalhava numa fábrica barulhenta em Canoas. Lembro desse detalhe porque ele falava do cuidado do pai com os ouvidos (“Não dá pra trabalhar sem fones de proteção”, ele dissera), mas não se queixava do salário.

– Ossos do ofício aquela barulheira toda – esse aluno comentou, numa aula em que eu abordava a industrialização, as condições de trabalho no interior das fábricas, a construção do mundo contemporâneo. Uma realidade fabril da qual Canoas era um exemplo e que eu conhecia muito pouco.

Cruzava as ruas da cidade, entrava nas casas e me espantava com o que me contavam. Me admirava, por exemplo, com o modo como as pessoas encaravam as condições de vida (a precariedade, a dureza das jornadas de trabalho), sem grandes esperanças quanto à alguma possibilidade de mudança.

– Olha, Vítor – me disse uma colega, numa tarde em que saímos de uma reunião do Núcleo do CPERS e fomos na direção da sua casa tomar café. – Eu sou filha de pai e mãe operários. Meus irmãos também trabalham em fábrica. Minha mãe não trabalha mais. E eles nunca falaram em revolução e socialismo para transformar o mundo. Isso eu aprendi só na universidade. E, se eu contar para eles, vão achar que não é coisa muito certa.

– As coisas andam devagar por aqui – ela me avisou. – É um mundo muito diferente do que imaginas.

Acho que ela sabia dos meus entusiasmos mirabolantes. Eu não queria apenas ensinar, eu pretendia colaborar “na construção de uma consciência crítica capaz de transformar a realidade”. Eu não queria apenas conhecer o mundo da periferia das metrópoles, eu queria intervir na sua dinâmica ou algo assim.

E escrevo isso lembrando que eu pousei a caneca de café sobre a mesa, me servi de uma fatia de bolo, e não esmoreci. O mundo podia ser muito diferente do que eu imaginava, mas isso não mudava coisa alguma dentro de mim.

 

Detalhe: essa reunião do Núcleo do CPERS que nós participáramos era para tratar da preparação de uma greve cuja pauta incluía um piso salarial de 2,5 salários mínimos. Uma luta e tanto, da qual eu estava certo de que sairíamos vencedores. Assunto para outra crônica, mais adiante. Assunto difícil de encarar.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Tu sabias que não existe racismo no Brasil?

 

Em 1978 e 1979, lecionei no Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza. Recém concluíra a Licenciatura em História, tinha 22 anos, e estava super disposto a entrar na lida.

A escola ficava na entrada de Alvorada, numa baixada, e, às sete da manhã, não era raro estar envolta pela neblina, devido a um rio que passava nas imediações e que nunca conheci. Eu desembarcava do ônibus, atravessava a estrada e entrava pelo portão da escola. Pouco conhecia dos arredores da escola.

Uma escola sem muro de tijolos. Apenas uma cerca de tela com um grande furo numa das extremidades, que a D.E. já avisara que não tinha verba para consertar. A escola que providenciasse.

Um dia, por volta do meio-dia (a escola sem alunos, algumas professoras almoçando numa sala), um homem arrastou uma menina para debaixo dos prédios das salas de aula e ninguém viu nem ouviu coisa alguma. (A escola era do tipo brizoleta, com os prédios de madeira erguidos a uma pequena distância do chão, numa altura que dava para um homem entrar, se arrastando.)

O homem queria violentar a guria, mas ela escapou. Saiu correndo, gritando, pelo pátio da escola, e o sujeito escapou pelo mesmo buraco da tela por onde havia entrado.

As professoras acudiram a menina e ela, logo que viu que o homem sumira, também escapuliu.

As professoras contavam aliviadas que nada havia acontecido. O estupro não se consumara. A menina não era aluna da escola, estava passeando por ali e o homem a atacou. Eram conhecidos.

Escutei essa história na sala dos professores, ao lado de uma janela, olhando o espaço entre o chão e os prédios, onde volta e meia se escondia algum cachorro com o qual a gurizada tinha se divertido jogando pedras.

Um mundo girando ao meu redor com os seus fatos comezinhos e eu preocupado com o fato da escola ser “um aparelho ideológico do Estado” e eu não saber como atuar para não ser um agente da reprodução da dominação burguesa... Sem saber como desenvolver o pensamento crítico na gurizada.

Boa essa, não é mesmo? Mas eram essas as minhas preocupações centrais. Um dia entreguei para a Coordenadora Pedagógica as provas que iria aplicar nos alunos das quintas séries (a escola só atendia até a quinta série do 1º Grau) e ela só corrigiu um e outro deslize no português. O tema era a colonização, a montagem do sistema colonial e escrevi a palavra “açúcar” (cana-de-açúcar, engenho de açúcar) sem acentuar. Que cochilo!

Havia uma questão sobre escravidão e racismo, a Coordenadora não fez nenhuma objeção, mas me avisou que havia uma determinação da D.E. recomendando que racismo não fosse abordado, pois isso não existia no Brasil.

– Tu sabias que não existe racismo no Brasil?

A Coordenadora era uma mulher de cabelos louros, pele alva, muito alva, e eu não sabia se era para rir ou não. Ela percebeu meu embaraço e sorriu.

Apliquei a prova e os alunos não se saíram mal na questão sobre as relações entre o nosso passado escravista e o racismo existente na sociedade brasileira dos anos 1970.

Tenho a impressão de que a maioria dos alunos não era negra, o tema, porém, era conhecidíssimo deles todos. Não houve polêmica. Certamente eles ignoravam o que os pedagogos da D.E. pensavam a respeito das relações raciais no Brasil.