Muito bom lembrar o tempo em que lecionava em Canoas. Eu tinha entre 24 e 27 anos e é chover no molhado proclamar que é um tempo de entusiasmo. Mas vá lá. Eu ainda me sentia experimentando o magistério e tanto me emocionava acompanhando os alunos numa festa cívica (como o desfile de 7 de setembro), quanto participando de reuniões com os pais dos alunos nos bairros Harmonia e Mathias Velho nos períodos de greve.
Numa dessas reuniões de professores grevistas com os
pais dos alunos, um senhor se aproximou de mim e disse que não sabia que
ganhávamos tão pouco.
Estávamos numa sede de CTG, na Mathias Velho, o
senhor tinha um jeito de gaúcho e explicou:
– Me desculpa a franqueza, mas eu não estudei grande
coisa e ganho muito mais do que vocês. Assim não está certo.
Não lembro a atividade profissional do homem (certamente
um operário qualificado) e apenas recordo o meu constrangimento. Sim, eu fiquei
sem jeito. Meu pai já havia cantado a pedra, alguns anos atrás, quando tentara
me dissuadir de prestar vestibular para o Curso de História e ser professor.
– Tu vais te sentir melhor no Direito – ele falou. –
E não precisa advogar, se não quiseres. O Curso de Direito abre um leque grande
de possibilidades, o Judiciário tem cargos muito bem remunerados, e tu vais ter
condições de comprares os livros de História que quiseres – acrescentou.
Aquele homem de rosto envelhecido me observava de
alto a baixo e eu o ouvi como se fosse meu pai (falecido há pouco tempo, naquela
época). Os alunos também já haviam me dito algo parecido:
– Meu pai não completou o ginásio e tá melhor que
muito professor de faculdade completa.
O pai desse aluno trabalhava numa fábrica
barulhenta em Canoas. Lembro desse detalhe porque ele falava do cuidado do pai com
os ouvidos (“Não dá pra trabalhar sem fones de proteção”, ele dissera), mas não
se queixava do salário.
– Ossos do ofício aquela barulheira toda – esse aluno
comentou, numa aula em que eu abordava a industrialização, as condições de
trabalho no interior das fábricas, a construção do mundo contemporâneo. Uma realidade
fabril da qual Canoas era um exemplo e que eu conhecia muito pouco.
Cruzava as ruas da cidade, entrava nas casas e me
espantava com o que me contavam. Me admirava, por exemplo, com o modo como as
pessoas encaravam as condições de vida (a precariedade, a dureza das jornadas
de trabalho), sem grandes esperanças quanto à alguma possibilidade de mudança.
– Olha, Vítor – me disse uma colega, numa tarde em
que saímos de uma reunião do Núcleo do CPERS e fomos na direção da sua casa
tomar café. – Eu sou filha de pai e mãe operários. Meus irmãos também trabalham
em fábrica. Minha mãe não trabalha mais. E eles nunca falaram em revolução e
socialismo para transformar o mundo. Isso eu aprendi só na universidade. E, se
eu contar para eles, vão achar que não é coisa muito certa.
– As coisas andam devagar por aqui – ela me avisou.
– É um mundo muito diferente do que imaginas.
Acho que ela sabia dos meus entusiasmos
mirabolantes. Eu não queria apenas ensinar, eu pretendia colaborar “na construção
de uma consciência crítica capaz de transformar a realidade”. Eu não queria
apenas conhecer o mundo da periferia das metrópoles, eu queria intervir na sua
dinâmica ou algo assim.
E escrevo isso lembrando que eu pousei a caneca de
café sobre a mesa, me servi de uma fatia de bolo, e não esmoreci. O mundo podia
ser muito diferente do que eu imaginava, mas isso não mudava coisa alguma
dentro de mim.